Por João Valente Aguiar
As últimas eleições para o Parlamento Europeu saldaram-se num avanço da votação em agrupamentos nacionalistas. Tanto à direita como à esquerda, subiram as votações das formações partidárias defensoras de uma implosão da União Europeia e da subsequente substituição da integração supranacional por uma Europa de nações independentes e quase-autárcicas. Neste contexto, a vitória do Syriza na Grécia é a excepção (moderadamente europeísta) que confirma a regra do crescimento eleitoral do nacionalismo. Os resultados eleitorais convergem, assim, com uma certa nostalgia pela nação, presente em vastos segmentos das populações europeias.
Mas se no plano das percepções e dos resultados eleitorais os nacionalismos ganham força, será que o mesmo se passa no quadro político das instituições europeias? No momento em que escrevo ainda não se sabe quem será o próximo presidente da Comissão Europeia e o que era visto como o mais provável vencedor – o luxemburguês Jean-Claude Juncker – corre hoje o risco de ser chumbado por governos actualmente contaminados pelas vitórias eleitorais de sectores eurocépticos (França e Inglaterra).
Nesse sentido, renovo a questão acima formulada. Até que ponto a histeria nacionalista, que vai de sectores da extrema-direita a sectores da esquerda e da extrema-esquerda, está a moldar o percurso da União Europeia? O nacionalismo tem sido um travão político ao avanço da integração europeia, tendo tido consequências nefastas nas respostas que a União Europeia (não) teve à crise económica. Procurarei demonstrar como, mesmo assim, a integração económica europeia tem avançado pé-ante-pé. Só compreendendo o real carácter de supranacionalização da economia europeia poderá alguém defender um projecto supranacional democrático e anticapitalista. Só a partir deste nível a austeridade poderá ser travada.
1. O Tratado Orçamental: instrumento da tecnocracia europeia para alavancar a integração europeia
Na esquerda portuguesa tem vingado a tese de que o Tratado Orçamental estipula a redução do Estado Social e dos serviços públicos para cumprir os critérios de 60% para a dívida pública e de 3% do PIB para o défice.
Na actual conjuntura tem sido por via da contracção dos serviços públicos de saúde e de educação que as instituições europeias e os governos nacionais esperam baixar o défice e a dívida. Por muito trágico que este processo seja para os trabalhadores, esta é apenas uma parte da história, por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, em si mesmos os objectivos do Tratado Orçamental não são nocivos, no sentido capitalista. A maior fatia da dívida pública nos Estados intervencionados pela troika advém ou do negócio que se estabeleceu entre entidades bancárias e a compra massiva dos cupões emitidos pelo Estado ou da salvação (bail out) dos balanços dos bancos. Por conseguinte, é imprudente olhar para o Tratado Orçamental desligado da União Bancária. Dito de outra maneira, os objectivos do Tratado Orçamental parecem ligar-se intimamente aos propósitos do Banco Central Europeu (BCE) de, com a União Bancária, quebrar o nexo entre o soberano e a banca. Este é um tema que será desenvolvido na segunda parte deste artigo, a ser publicada na próxima semana. Mas, para já, sublinhe-se que os capitalistas sabem que é ali que está a criação de condições para o controlo da emissão privada de instrumentos monetários e de controlo da própria banca a partir do BCE. Nesse sentido, o Tratado Orçamental é claramente federalizador. Não no sentido imediato para a construção de um Estado europeu (que é o anátema lançado por toda a esquerda nacionalista), mas no sentido de ser mais um passo na articulação europeia. A sua base é totalmente europeia e é o corolário das intenções dos gestores posicionados nas instituições de regulação supranacional. Muito mais do que reduzir o financiamento dos serviços públicos, o objectivo do Tratado é de abrir caminho ao controlo supranacional dos Orçamentos de Estado. Aliás, o Tratado nunca refere que o seu objectivo é reduzir as verbas dos Estados para os serviços públicos, mesmo sabendo que esta é uma das políticas preconizadas pela troika. A questão que se deve colocar é saber se se pode combater a espiral da dívida no plano nacional.
Sejamos racionais. Se a economia da União Europeia não tivesse entrado numa espiral de endividamento (do Estado às empresas e aos particulares) as coisas teriam sido muito diferentes. Se uma grande parte das dívidas públicas advém do processo de bailing out do sistema financeiro, essa responsabilidade não pode ser assacada aos trabalhadores. Não é esse processo que está aqui em discussão e com o qual a opinião é relativamente consensual. O que é desavisado é considerar que a existência de mecanismos institucionais europeus e supranacionais de controlo das contas públicas é um factor nocivo. Os críticos do estabelecimento desse tipo de critérios preocupam-se fundamentalmente com a soberania nacional. Recorrentemente clamam contra os especuladores internacionais e a tirania da dívida. Enquanto berram contra a finança internacional, que estaria a sorver a riqueza da pátria, estes mesmos críticos não contemplam um programa que, na realidade, se proponha baixar a dívida pública. Pelo contrário, as medidas mais radicais preconizadas por alguns deles (por exemplo, a saída do euro) resultariam num aumento colossal da dívida pública. Lembremos que alguns destes críticos do euro, como João Ferreira do Amaral, defendem a tese de que o Estado deveria tomar para si as dívidas da banca, no caso de uma saída do euro. E são estes os críticos da tirania da dívida…
2. A austeridade não é um plano de ingerência externa mas é parte de um processo de reforço da regulação dos gestores
Por outro lado, e em segundo lugar, todas as instituições internacionais e a imprensa representativa dos interesses da classe dominante têm referido o sucesso do Programa de Ajustamento aplicado pela troika ao Estado português. Todavia, a dívida pública continuou a crescer e mesmo assim todos os organismos da classe dominante consideram o Programa um sucesso. No geral, os capitalistas não se orientam pela demagogia e têm plena noção dos efeitos sociais e humanos da austeridade sobre os trabalhadores. Nesse sentido, porque consideram eles a intervenção da troika um sucesso?
Os impactos da troika devem ser vistos no âmbito do que são os seus reais objectivos. A intervenção nestes anos passou por três pontos fundamentais:
1) Limpar o balanço dos bancos de modo a que a quebra da relação entre a banca nacional e a dívida soberana seja mais visível – passo essencial para o avanço da união bancária. Por exemplo, na Irlanda, a intervenção do Estado para salvar a banca ter-se-ia cifrado no número astronómico dos 65 mil milhões de euros. Como se verá na segunda parte deste artigo, é deste tipo de intervenções que os gestores que se encontram nas instituições de regulação supranacional procuram livrar-se daqui para a frente. No imediato, e no passado recente, dada a ausência de um organismo e de um fundo europeu de garantias bancárias, os Estados foram chamados a intervir, acabando por exponenciar os seus valores de dívida pública de modo a cobrir as perdas do sector financeiro. Onde a esquerda vê nisto a mão malévola da União Europeia, na verdade foi a incompleta integração europeia (ausência de um credor de última instância, de um Tesouro europeu e de instâncias europeias de efectiva supervisão bancária) que levou ao recurso da dívida pública dos Estados para cobrir as perdas do sistema financeiro. É o nacionalismo vigente em parte das elites políticas de alguns Estados como o Reino Unido, na extrema-direita e em grande parte da esquerda que tem impedido, ao longo das últimas duas décadas, a criação de mecanismos institucionais supranacionais que teriam evitado os piores efeitos da austeridade;
2) Controlo do défice das contas públicas. Se a União Europeia conseguir que a generalidade dos Estados membros controle o défice do Estado, certamente que eles passarão à fase seguinte prescrita por Jens Weidemann, presidente do Bundesbank, no médio prazo: «uma genuína união fiscal pode ser um passo rumo a uma estrutura que equilibre o risco e o controlo. Neste cenário, o controlo e os direitos de intervenção poderiam ser transferidos para o nível europeu. Se este pré-requisito for cumprido, uma maior mutualização dos riscos tornar-se-ia possível – e até justificada». O que tem sido veiculado nos discursos oficiais em torno do controlo das contas públicas não é, portanto, um fim em si mesmo, mas um requisito imprescindível para uma subsequente uniformização fiscal.
Em termos orçamentais, sabe-se que já a partir de Novembro a União Europeia pode alterar directamente o Orçamento de Estado. Ora, isto também corresponde a um passo no sentido de uma unificação ao nível orçamental. Para a vida concreta dos trabalhadores, para a vida dos trabalhadores dentro do capitalismo, o problema não é o controlo das contas públicas. A prazo, instituições estatais com equilíbrio orçamental favorecem a actividade económica, têm uma menor carga fiscal sobre as populações e permitem manter serviços públicos de qualidade. Em suma, um Estado com baixo défice orçamental ajusta-se ao desenvolvimento dos mecanismos da mais-valia relativa. Neste processo o mais preocupante para os trabalhadores é o facto de os Estados com elevados défices ajustarem por via da compressão dos gastos sociais e do aumento da carga fiscal, deixando intocados os financiamentos a determinadas iniciativas privadas. No caso português, os baixos ou quase nulos cortes no financiamento do Estado a Parcerias Público-Privadas nas áreas da saúde ou das auto-estradas coincidem com os cortes massivos em salários e investimentos na educação. As lutas contra a austeridade deveriam incidir muito mais neste tópico do que nas investidas catastrofistas em torno da saída do euro. Entre a crítica do carácter de classe do Estado e o elogio do Estado nacional liberto da ingerência externa, e portanto descarnado de conteúdo de classe, vai um oceano de diferença. No quadro de discussão das propostas formuladas dentro do capitalismo – as mais nacionalistas e as mais federalistas – o que deve estar em causa é o conteúdo das políticas de austeridade e o seu impacto nas condições de vida dos trabalhadores. A austeridade é tanto mais nociva quanto menos integradas e globais forem as respostas macroeconómicas. É nesse sentido que a capacitação de instrumentos supranacionais permite que, dentro do capitalismo, se responda mais eficazmente à crise económica e aos seus efeitos.
3) Enquanto não se consegue modificar o quadro económico da extracção da mais-valia (e acho que não o farão pelo menos na próxima década), o objectivo da troika na economia portuguesa passa por incrementar as exportações e dar maior pendor aos sectores dos bens transaccionáveis, isto é, dos bens e serviços mais sujeitos à concorrência. Logo, trata-se de internacionalizar ainda mais a economia portuguesa, e isto em dois planos interrelacionados. Por um lado, mantendo o core business (o núcleo central) das exportações dentro do quadro europeu, mas, por outro, aumentando-as também para os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e restantes países emergentes, área de aposta crucial para a União Europeia. Recordo que, em 2013, as exportações de bens e serviços provenientes da Zona Euro equivaliam a 27,1% do seu PIB, ao passo que nos EUA o valor correspondente cifrava-se nos 13,5%, no Japão nos 17,0% e, em 2012, a China exportava o equivalente a 26,3% do seu PIB.
Em suma, estes objectivos da intervenção da troika têm-se centrado numa crescente inserção da economia portuguesa no seio da Zona Euro. Não faz assim qualquer sentido o argumento de que a troika estaria em busca de uma qualquer expulsão do país do espaço da moeda única. Nos planos concretos e objectivos da integração bancária, da fiscalidade, do controlo orçamental e do padrão das exportações, a actuação da troika vai no sentido da integração sistémica da economia portuguesa. Pode e deve discutir-se e criticar-se a orientação de classe desta actuação, que tem recaído sobre os custos de vida, os empregos e os salários dos trabalhadores. O que não se deve é utilizar o falso argumento de que a União Europeia quer a expulsão de Portugal do euro para, na realidade, legitimar uma posição que é exclusiva dos nacionalistas de todos os matizes.
Escrevi no início deste texto que só compreendendo o real carácter de supranacionalização da economia europeia poderá alguém defender um projecto supranacional democrático e anticapitalista. Só a partir deste nível a austeridade poderá ser travada. Enquanto uma certa esquerda insiste no plano nacional da saída do euro, na Grécia, Alexis Tsipras lembra que só «uma solução europeia global» que integre o BCE, o Banco Europeu de Investimento e o Conselho Europeu permitiria anular grande parte da dívida pública grega. Embora eu não compartilhe vários pontos de vista do Syriza, parece-me bom que o principal rosto da esquerda europeia assuma uma posição decisivamente orientada para o plano europeu.
A austeridade acontece porque essa é uma determinação da classe dominante para superar a crise económica fazendo recair esses custos sobre os trabalhadores. Não acontece porque são alemães, chineses ou marcianos. Não é a sua nacionalidade que determina a sua acção política e económica.
As fotografias que ilustram o artigo são de Valerio Vicenzo.
Leia aqui a 2ª parte do artigo.
Para os leitores que tenham dúvidas sobre a integração europeia em marcha sugiro a seguinte leitura: http://www.publico.pt/mundo/noticia/-londres-promete-lutar-contra-ate-ao-fim-contra-substituicao-de-barroso-por-juncker-1659558?page=-1
Ali poderão ver como até governos nacionais inicialmente cépticos acabaram por concordar com a proposta de Juncker, um adepto do avanço da integração europeia e apoiado pela tecnocracia europeia. Como procuro afirmar neste artigo, uma coisa é a percepção da realidade, isto é, a ilusão de que a UE estaria à beira do colapso. Outra coisa é a realidade material e, ao nível das instituições europeias, o caminho tem sido óbvio: a integração tem avançado. Enquanto a esquerda não tomar consciência deste processo e da sua irreversibilidade nenhum projecto político alternativo será possível. E nenhum projecto político da classe trabalhadora pode ser viável se não for capaz de pensar a realidade e a sua transformação no plano supranacional.
A estrita nacionalização das lutas tem dois efeitos nocivos para os trabalhadores: 1) apaga as lutas reivindicativas e concretas e substitui-as por clamores abstractos de “salvação da pátria” ou de “defesa da soberania”, clamores sem possibilidade de ter impacto político real nas suas vidas; 2) faz do Estado uma instituição amiga dos trabalhadores. E neste processo de glorificação do Estado contra as empresas a esquerda contribui para, por um lado, esconder a ligação íntima entre ambas as instituições e, por outro, valorizar as instituições militar, policial e judicial, precisamente as instituições não-eleitas do Estado…