A pintura vai-se fundir com outras artes na construção da vida. É o Urbanismo. Por João Bernardo
Leia aqui a primeira parte deste texto.
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Piet Mondrian foi o primeiro obreiro do verdadeiro sentido da pintura; foi ele quem compreendeu plenamente as suas novas necessidades, quem conjugou todos os anteriores esforços para atingir o autêntico e desalienado quadro.
As suas técnicas inovadoras resumem o desaparecimento dos artifícios narrativos.
Começa por analisar o que é uma tela; e vê que tudo o que nela se possa construir tem de obedecer às suas qualidades; e que só assim o quadro poderá evoluir plenamente na única direcção que lhe dá inteira liberdade. E para ele a tela é, antes de mais, um quadrilátero imóvel, de superfície plana; são estas as três características que vão determinar a sua pintura.
Piet Mondrian, Composição em Vermelho, Azul e Amarelo, 1930
«Para ele a tela é um quadrilátero imóvel, de superfície plana»
Um dos primeiros passos dados por Mondrian foi, tal como em muitos outros artistas, a destruição da figura. Mas desapega-se tão completamente dela que nem lhe vai buscar a raiz dos elementos dos seus quadros: cria-os, não em função das imagens tradicionais, mas sim em função do próprio quadro; é este que domina inteiramente. É o grande senhor da sua pintura.
E é também em função do quadro que acaba de destruir a perspectiva. Aquela superfície plana só pede elementos planos; a sua geometria é extremamente cuidadosa na eliminação de qualquer artifício. E o cuidado que põe na forma põe-no também na cor; anula a tão descritiva sombra, mestra em dar ao quadro profundidade e movimento. Acaba por utilizar só as cores puras e radiantes, afastando os tons sombrios que com elas pudessem contrastar.
O quadro torna-se, assim, abstracto, plano e estático. A imobilidade da pintura é uma das grandes preocupações de Mondrian. Àquela compensação dos elementos que produz um equilíbrio dinâmico, ele substitui o mais rigoroso equilíbrio estático. Por isso os contornos das suas figuras são paralelos às bermas da tela; não há ali nada do movimento de um Klee ou de um Kupka (este último até, em certos aspectos, tão próximo de Mondrian). E a sua severidade era tão grande que criticou asperamente Doesburg [1], amigo e companheiro de luta, por colocar as figuras fazendo com os lados do quadro [2] ângulos de quarenta e cinco graus, o que lhes dava certa animação.
Paul Klee, Halme, 1940
«Não há em Mondrian nada do movimento de um Klee…»
Františec Kupka, Planos Verticais em Azul e Vermelho, 1913
«…ou de um Kupka»
Theo van Doesburg, Contracomposição XIV, 1925
«Mondrian criticou van Doesburg por colocar as figuras fazendo com os lados do quadro
ângulos de quarenta e cinco graus»
Até que por fim atingiu o quadro puro; ele próprio nos disse como procedia [3]: dividindo a tela em quatro quadriláteros desiguais, que com ela formavam ângulos de noventa graus; e um desses quadriláteros [4] sendo, do mesmo modo, dividido em quatro partes. Evidentemente que não seria o único, mas era, no entanto, o mais perfeito método de se encaminhar na pintura não-narrativa; tão perfeito que se parecia ter chegado a um fim, a um limite inultrapassável. Mondrian parecia ter decidido a destruição do quadro.
Ele próprio teria tido a noção disso [5]: o quadro antecipa, dizia, a relação desejada entre os elementos da natureza; e enquanto essa relação não existir de facto no mundo, existirá na tela; mas a pintura extinguir-se-á, perderá a razão de ser, logo que a realidade seja mudada, se transforme em harmonia, se torne plenamente apta à vida humana.
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E a pintura vê então apontada a sua nova função: prevê a futura relação entre as coisas. Não de um modo distante e inactivo; prevê revolucionariamente, para ela contribuindo. Vai começar a criar no mundo os princípios da harmonia. Vai oferecer toda a sua pujança ao trabalho de harmonização da natureza. E deixa de ser a pintura que se vê, para passar a ser a pintura em que se vive.
E assim, para quê o quadro? Com efeito, Mondrian condenou-o à inutilidade. A tela era a derradeira herança da pintura narrativa; agora, é insuficiente para o que se deseja; que desapareça também; como desapareceu o movimento; e a perspectiva; e a figura. Que desapareça, como desapareceu a narração!
A pintura vai-se integrar em algo mais vasto. Vai-se fundir com outras artes na construção da vida. É o Urbanismo.
As experiências da «De Stijl» já haviam seguido por este caminho, embora não se libertando inteiramente do quadro; e se Hans Arp foi quem mais avançou neste sentido, muito, na altura, lhe ficou por fazer. No entanto, a decoração do café «De Unie» [6], de Amesterdão [confundi a participação de Hans Arp na decoração do café de l’Aubette, em Strasburgo, com a fachada desenhada por Jacobus Oud para o café De Unie, que para mais estava situado em Roterdão], é já bem sugestiva das preocupações da escola de Mondrian.
Hans Arp, Sophie Taeuber-Arp e Theo van Doesburg, Decoração do Café de l’Aubette,
Strasburgo, 1926-1928
Jacobus Oud, Desenho da Fachada do Café de Unie, Roterdão, 1925
«As preocupações da escola de Mondrian com o urbanismo»
Mas só com o Construtivismo é pela primeira vez formulada a necessidade de se ultrapassar o quadro, de fazer mais alguma coisa que preencher uma tela [7]. Tatline, com o seu projecto de monumento à III Internacional, é um dos seus máximos exemplos.
Vladimir Tatlin, Projecto de Monumento à III Internacional, 1919-1920
«Tatlin é um dos máximos exemplos do Construtivismo»
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Foi esta a transformação da pintura. De arte alienada, porque forçada a uma tarefa que a impedia de se completar, ela passou a uma arte actuante e vivente. Quando pôde enfim abandonar as suas funções narrativas, quando se conseguiu desapegar de todas as suas heranças, descobriu o caminho que lhe permitia a correcta evolução. Hoje ela existe ao lado de todos os revolucionários; ao lado dos homens que constroem casas e dos que constroem sociedades. Hoje ela existe como todo o real humanismo; torna o mundo à medida de se poder viver nele. E poderemos passar por ruas que são pintura. Em casas que são pintura. Em jardins que são pintura.
Plano do artigo
1
– Localização do artigo: acerca das polémicas do figurativo e do não-figurativo em arte.
2
– À pintura, à literatura, ao cinema, etc., se chama artes.
– «Arte» corresponde a um estado de sincretismo inicial.
– Mas as artes foram-se especializando e o termo continuou o mesmo.
– Porque a palavra tem um carácter de convenção e, como tal, precisa de ser aceite e conhecida por todos. Se se quer expor ao público uma ideia nova têm de se utilizar palavras que este conheça e possa compreender. Assim: palavras relacionadas com antigos conceitos. Acontece termos de exprimir ideias inovadoras com palavras antiquadas (o que acentua ainda mais o carácter de convenção dado à palavra).
– Mas por vezes, em vez de ser a palavra a ser dominada, é ela quem domina, e isto porque é por ela que temos de nos exprimir.
– Daí mantermos um mesmo termo «arte» a significar realidades diferentes que é forçoso destrinçar.
3
-Todos os modos de expressão artística conseguem fazer surgir ideias e figuras.
– Mas alguns só artificialmente, forçando o seu carácter, e assim: de uma forma limitada e imperfeita.
– Outros conseguem fazer surgir repetidamente ideias e figuras; isto é: conseguem descrever a evolução duma ideia ou de uma figura. São artes que dão ideia que existe o movimento.
– Podemos assim distinguir as artes em narrativas e não-narrativas.
4
– Mas antes do aparecimento do cinema, e quando a literatura não era facilmente acessível, teve de se forçar o carácter de outras artes e torná-las narrativas. A que mais se prestava a esse fim era a pintura.
– A evolução dos modos de narração na pintura (quanto mais estes se aperfeiçoavam, mais ela se desviava do seu verdadeiro caminho): 1) os painéis 2) os motivos simultâneos no mesmo quadro 3) a descoberta da ilusão do movimento (o movimento, em pintura, é a sua maior alienação): a) as distorções b) as compensações c) o contraste com a sombra.
– Para a pintura ser narrativa a sua simbologia variava consoante o público. Numa mesma época: Greco, Velazquez e Brueghel. Mas isto não significa que as técnicas de narração variassem.
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– O aparecimento das artes narrativas (o cinema e a alfabetização) liberta a pintura da imposição de ser narrativa.
– Deixando a pintura de contar uma história, a tradição deixa-lhe os modos de a contar: o símbolo (a figura) e a técnica do movimento.
– E deixando a pintura de ser narrativa, o símbolo perde o seu significado (de história) e transforma-se em arabesco.
– E a figura já não precisando do movimento, este torna-se independente.
– A análise do movimento; a pintura do movimento. O Futurismo. Os seus continuadores. O sem saída desta via.
– Mas continuando as pesquisas dos que utilizaram a figura como motivo puramente estético, há pintores que chegam ao motivo estético sem figura. As experiências de Teo [Theo] van Doesburg.
– A pintura começa a antever os seus novos caminhos.
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– Mondrian como pintor desta nova função da pintura.
– As suas técnicas resumem o desaparecimento do artifício narrativo:
– análise do que é um quadro
– desaparecimento da figura
– desaparecimento da perspectiva; as cores puras
– a ausência de movimento; o equilíbrio estático e o equilíbrio dinâmico.
– Assim, o quadro, para M., era uma previsão das relações que um dia existissem.
– Quando elas existissem, a pintura desapareceria.
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– E a pintura não só prevê a relação entre as coisas.
– Prevê de um modo revolucionário, para ela contribuindo.
– A pintura vai, assim, começar a criar no mundo essa relação.
– A tela era a derradeira herança do artifício narrativo; o quadro desaparece; a pintura integra-se no Urbanismo.
– As experiências da «De Stijl»; o Construtivismo.
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– A nova pintura como arte verdadeiramente actuante.
Notas
[1] Ou Vantongerloo? Ou provavelmente os dois?
[2] Ou consigo próprias? Ou as duas coisas?
[3] Se possível, arranjar citação.
[4] Seria sempre o inferior direito?
[5] Se possível, arranjar citação.
[6] Certificar o nome.
[7] Certificar se só com o Construtivismo esta necessidade é perfeitamente sentida, e se as suas experiências se enquadram bem na linha que eu lhes dou.
A Nota 7, de fato, mereceria uma consideração a mais, uma continuação. No entanto, sei que o João Bernardo publicou o artigo tal como estava rascunhado – e, claro, está tudo muito bom e é de grande aprendizado.