É sempre positivo que no actual contexto político se diga explicitamente que não são as propostas proteccionistas que podem romper com a austeridade. Por Passa Palavra
A discussão política só faz sentido dentro de um quadro em que não se percam de vista as divergências, mas, ao mesmo tempo, quando possível, se utilize o que é partilhável.
Num texto recente (leia aqui), André Barata, dirigente do recém-criado partido Livre, procura discutir politicamente de que modo é que a esquerda pode aspirar a modificar o actual estado de coisas marcado pela austeridade. De acordo com o diagnóstico do autor, a dívida estaria a substituir-se «de facto ao soberano» e «a precariedade restitui ao poder político atributos de um absolutismo que não conceberíamos há alguns anos atrás». Ou seja, o poder dos Estados estaria condicionado pelos mercados, no caso pelo mercado financeiro de transacção de títulos da dívida pública.
Se é verdade que o endividamento massivo do Estado coloca sempre problemas económicos e sociais profundos, tendencialmente resolvidos à custa da compressão do emprego e do rendimento dos trabalhadores, também é verdade que o Estado não é independente dos chamados mercados. Pelo contrário, o Estado tem-se definido progressivamente como uma empresa que, por um lado, auxilia na regulação e na articulação das condições gerais de produção de uma sociedade e, por outro, mascara essa sua conexão com a classe dominante sob a ideologia de que seria uma emanação da comunidade nacional. E que, por conseguinte, teria como missão defender o bem comum, isto é, nacional.
Em suma, enquanto a esquerda continuar a suspirar por um Estado livre de interferências externas, sejam elas o mercado, a dívida ou a banca, continuará aprisionada na ilusão que o Estado propaga para justificar a sua existência e, desse modo, prolongar o poder da classe capitalista dos gestores.
Mas se o texto de André Barata não consegue romper com o mito do Estado benfazejo e da sua falsa oposição ao mercado, o autor procura afirmar o que seria uma alternativa que considera democrática e que rompa com a integração da social-democracia ao cânone neoliberal. No fundo, face à falência do projecto preconizado pelo Bloco de Esquerda, o Livre aparenta querer apresentar-se como o substituto, mais responsável e consequente. Enquanto o Bloco de Esquerda corre, como um menino perdido, em busca de aceitação pelo Partido Comunista, o Livre aparenta prosseguir um projecto tão inteligente quanto oportunista. Consciente da sua incapacidade em se tornar numa esquerda grande, o horizonte do Livre parece assentar na formação de uma esquerda pequena, com poucos quadros, mas que consiga reunir votos suficientes para governar com o Partido Socialista.
Num texto publicado neste local (leia aqui) foram apresentadas as contradições e os perigos da ambiguidade entre querer manter um pendor de contestação e aspirar a chegar ao governo. A ilusão de que o Estado pode ser independente ou ter supremacia sobre as empresas e o mercado pode desembocar, no plano parlamentar, numa nova cooptação de sectores da esquerda. Em vez de esgotar energias e activistas pretendendo mudar o mundo a partir do parlamento, a esquerda deveria preocupar-se em ajudar a construir movimentos sociais de base dinamizados por desempregados, precários, entre outros trabalhadores, em torno de temas concretos que afectam directamente os visados.
Apesar deste cenário, não podemos deixar de destacar um excerto do texto de André Barata que nos parece representar um ponto positivo e convergente: «Não deve preocupar à esquerda apenas as suas dificuldades em convergir, mas também de se renovar ideologicamente a sua capacidade propositiva. Não é certamente esse o caso de uma esquerda refugiada no patriotismo em extremidade peninsular ou, ainda, na nostalgia do regresso ao passado do escudo». Esta é uma crítica bastante pronunciada ao nacionalismo do Partido Comunista e, pelos vistos, do próprio Bloco de Esquerda. A este título, e independentemente das divergências que relevamos nos parágrafos anteriores, é sempre positivo que no actual contexto político se diga explicitamente que não são as propostas proteccionistas que podem romper com a austeridade. Achamos curioso, porém, que esta declaração de princípios ocorra em paralelo com a aproximação à Manifesto, a ex-corrente do Bloco de Esquerda, cujas principais figuras advogam a saída de Portugal do euro e o regresso ao escudo.
O que levanta uma questão: até que ponto é que a formação de um campo político antinacionalista, reivindicada por André Barata, constitui uma questão menor face ao mito da unidade de esquerda? Com o Partido Socialista, diga-se.
Caríssimos, deixo-lhes o link de uma resposta, um pouco mais longa, às vossas observações.
http://www.andrebarata.com/entry/a-esquerda-e-o-estado-resposta-ao-passa-palavra