Whitechapel deve ser um dos bairros mais fantásticos do mundo. Fora as histórias de Jack Estripador e do Homem Elefante, passou por uma das primeiras reformas higienistas e resiste até hoje à gentrificação. Sua estação de metrô deve estar propositadamente há um século sem reparos, as estruturas ainda em madeira, e ao sair dela com poucos passos se chega a uma das regiões mais dinâmicas do capitalismo global. Na calçada, orientais vendem mariscos frescos, roupas e bugigangas. Negros desfilam com o status de donos da área e os poucos brancos em nada se parecem com o que esperamos de um britânico. Indianos, bangladeshianos e paquistaneses têm seus pequenos negócios e volta e meia uma mulher coberta pela burca atravessa o seu caminho. O verdadeiro paraíso multicultural. O único problema é descobrir em qual pub você será bem recebido. Passa Palavra
PESADELO?
Do sonho multicultural-democrático-racial ao policromático-despótico-segregacionista mundo real…
Camaradas, olhem que vivi lá perto e posso garantir-vos que não faltam pubs onde toda a gente se sente à vontade, seja qual for a religião ou origem geográfica. Esta vossa cruzada (se me é permitida a expressão) contra o multiculturalismo está-se a tornar um pouco forçada e este “os poucos brancos” tem qualquer coisa de English Defence League (http://www.englishdefenceleague.org/) que me arrepia um pouco.
A mim o que me arrepia, Ricardo, é tu teres escrito isto, porque se conhecesses o camarada que narra esta experiência e se lhe visses a cor da pele…
Quanto ao multiculturalismo, cada qual come do que gosta. Bom, e ainda há quem não coma do que não gosta.
Ricardo, eu não acho o multiculturalismo todo ruim, só não é o meu projeto para a humanidade. Prefiro mesmo que as pessoas construam muros invisíveis do que muros de tijolos. Mas prefiro ainda mais que os muros deixem de existir. Para quem vive em uma cidade segregada como a minha, onde o apartheid não está nas leis, mas é reforçado cotidianamente pelas instituições e pela forma como a espaço é produzido, minhas poucas horas em Whitechapel me causaram uma forte impressão. Entretanto, se sentir estranho entre aqueles que eu considerava ser os meus foi a novidade. Muros, mesmo os invisíveis, são muros. Não fui agredido em Whitechapel, mas, pelo menos durante o dia, encontrar um estabelecimento no qual não fosse olhado de cima a baixo, onde eu não fosse o diferente, não foi tarefa simples. Assim como para mim foi estranho querer completar uma partida de futebol que não conseguia montar dois times e não me sentir a vontade. Nada muito diferente da sensação de entrar em um restaurante das classes altas, de um negro entrar em um espaço de brancos, e por aí vai. Se derrubar os muros de concreto, se apagar das leis do apartheid, se poder dividir a mesma calçada lhe basta, então não cabe outra coisa a não ser celebrar o multiculturalismo. Eu quero congregar com toda a humanidade.
É estranho que se fale aqui em “cruzada” contra o multiculturalismo, quando, na verdade, ao que me parece, são os multiculturalistas que se afirmam a si mesmos – sobretudo nos departamentos acadêmicos, que são o seu quartel-general, e, por aí, em outros lugares – por meio de uma, esta sim, verdadeira cruzada anti-marxista, vistas a obra de Marx e as de quase todos os marxistas como um último dinossauro do pensamento ocidental iluminista eurocêntrico imperialista totalitário, que pouco explica, que pouco vale e que, sobretudo, pouco contribuiu, pouco contribui e, certamente, pouco contribuirá para a construção de uma sociedade nova, verdadeiramente livre da opressão (sobre a exploração, os multiculturalistas, na verdade, não costumam falar), já que partem, todas as formulações teóricas inspiradas em Marx, de uma outra tradição, de caráter discursivo, a partir da qual não se pode ter acesso ou abrir caminho para a liberdade, uma tradição discursiva voltada para a subordinação – e, no limite, para a supressão da existência – do “outro”, seja do negro, seja do índio, seja da mulher, seja da natureza (ou, melhor, do “afrodescendente”, dos “povos da floresta”, do “gênero feminino” e da “mãe-terra”). Não se pode ser marxista, sem querer, ao mesmo tempo, hierarquizar e oprimir. A fúria que certos mestres e doutores direcionam ao marxismo, que costumo testemunhar nos espaços universitários, é notável: se se fica na presença de um multiculturalista por algum tempo, a quantidade de vezes que se ouve a palavra “marxismo” é impressionante, mas ela é proferida, lógica e geralmente, para depreciá-lo. Quando muito, num ou noutro pensador marxista, é reconhecido algum mérito… Num Gramsci, por exemplo; ou, talvez, somente no Gramsci, se não me falha a memória (mas, esse tipo de concessão, só com os acadêmicos mais sofisticados, menos dogmáticos, com os quais, volta e meia, pode-se aprender alguma ou até muita coisa, embora não sem certas ou muitas ressalvas; certas vezes é até bom, pois que aprendemos pelo exemplo do que não dizer ou escrever). E, quando querem depreciar o marxismo, reduzem-no ao que dele fizeram os marxistas-leninistas (os mais brilhantes dos teóricos marxistas, um Thompson, por exemplo, são, muito habilmente, removidos da narrativa e, assim, do concreto, do material, do empírico, do real, se é que existe tal coisa, da História mesma). Enfim, quando não é fúria, é desdém. E mais interessante ainda é perceber que o desdém se estende também à inteira tradição libertária da esquerda e do movimento operário: os multiculturalistas consideram-se, muitas vezes, representantes de um pensamento novo, verdadeiramente libertário, mas não parecem querer aproveitar muito do que os séculos XIX e XX, nesse sentido, nos legaram. E não parecem se incomodar muito também com a existência do Estado e das instituições estatais, preferindo deixá-los de lado e sublinhar a atuação benéfica de certas ONGs: é, o Estado, como aquele mal que não se pode vencer e contra o qual não vale a pena lutar, porque isso só nos traz mais dores de cabeça. O importante é, por meio de ONGs e instituições afins, conquistar visibilidade para as minorias, para que, então, apenas (e apenas mesmo!) por dentro do Estado e das instituições estatais, sejam conquistados direitos. Ou seja, se você é um multiculturalista niilista apolítico melancólico, não lhe resta muito mais além da atuação no chamado Terceiro Setor, transitando, por meio aí, pelos outros dois setores, tecendo relações, fazendo compromissos, conquistando direitos, tolerando a existência e coexistindo e mesmo colaborando com as instituições (o Estado e o capitalismo) que são o Diabo na terra. Enfim, há pouco tempo, marquei presença num curso de pós-graduação completamente inspirado por autores que teorizam o multiculturalismo, como Homi Bhabha, Stuart Hall etc., mesmo que, não raramente, sentisse a necessidade de projetar a minha consciência, o meu espírito, para fora dali, de alguma maneira, sempre sem sucesso, infelizmente. Uma das aulas contou com a ilustre presença de uma professora de um outro departamento, não menos ocupado hegemonicamente pelos multiculturalistas (aliás, os espaços acadêmicos, conforme já sublinhado acima, mas que não nos custa sublinhar novamente, são ocupados e partilhados por esses senhores e senhoras, por esses moços e moças, com uma voracidade comparável à ocupação e partilha neocoloniais dos continentes africano e asiático pelas potências europeias imperialistas, por esses senhores e senhoras, por esses moços e moças, tão odiadas). A certa altura, diz a professora algo como: “não existe pensamento ocidental não hierárquico e não opressor.” Perguntei: “mas e os pensamentos marxista e anarquista, por exemplo, eles não contestam a hierarquia e a opressão e propõem a sua superação?” A ilustre professora, então, responde: “meu filho, você já viu algum marxista ou anarquista defender as minorias? Pois bem, como eu estava falando…” Encerrou-se a discussão por aí mesmo e um aluno, um aluno apenas, numa sala de aproximadamente dez pessoas, fica perplexo.
De um quase honesto acadêmico alistamultiKultur, citando Heine – implicitamente(?!): “Semeei dragões e colhi pulgas.”
Até ver e pelo menos a julgar pelas fotografias disponíveis, a cor da pele de quem escreveu isto é parecida com a minha, já as experiências dos sítios são, como em tudo, potencialmente infinitas.
O problema aqui não é o multiculturalismo, mas a caricatura dos sítios e a infelicidade dos termos escolhidos para a fazer. Naturalmente que quem vem de uma cidade onde tem os seus laços e relações sociais estabelecidas, chegar a Londres e tentar ter o mesmo tipo de vida é uma experiência frustrante (estive lá 6 meses há pouco tempo e também me aconteceu). Londres é uma cidade de 11 milhões de habitantes, cheia de pessoas que vieram de outro lado qualquer do planeta, muitas das quais não falam inglês. A cidade tem os seus ritmos, códigos e hábitos próprios, que serão necessariamente estranhos e no limite desagradáveis para quem se está a habituar a eles. Mas não é – ou não é apenas, ou não é mais do que qualquer outra metrópole europeia – essa soma de múltiplas segregrações e comunitarismos estanques retratados neste artigo e no outro que se lhe segue.
Stuart Hall não tem certamente culpa que algures num qualquer departamento universitário o seu trabalho seja lido da maneira mais desinteressante possível, extraído do seu contexto e vulgarizado. E já que estamos a partilhar experiências pessoais, ainda há poucos dias uma procuradora judicial portuguesa pediu a condenação de dois jovens negros envolvidos num rolezinho, garantindo que em Portugal não há racismo e todos são tratados como iguais. O multiculturalismo, bem se vê, não é o único problema em cima da mesa, uma vez que muito cinismo se abriga sob o manto do universalismo.
E já agora, Daniel, quando te sentiste “estranho entre aqueles que considerava ser os meus”, exactamente quem eram os “teus”?