Por Vavá Oliveira e Janis Corda

“Blaise Campaoré é como o ébola!” Foi o que se ouviu nas ruas de Ouagadougou, capital de Burkina Faso, enquanto manifestantes incendiavam o Parlamento, tomavam emissoras de TV e depunham o presidente que estava há 27 anos no poder. Indignados contra a pobreza, corrupção e concentração de poder, milhares de jovens enfrentaram  o aparato repressor do Estado em protestos que tomaram as principais cidades do país durante a última semana de outubro. No dia 31, o presidente anunciou a sua renúncia, mas as estruturas do regime mais antigo da África Ocidental continuam de pé.

27 anos em quatro dias

Como aconteceu na Guiné-Conacri (2009) e no Senegal (2012), a revolta teve início após o presidente submeter ao parlamento uma lei que autorizaria a sua candidatura à reeleição nas eleições de 2015. Em oposição ao projeto que alteraria a Constituição, o Fronte Progressista Sankarista (FPS)[1] e os jovens do movimento Balai Citoyen convocaram manifestações de rua. Quatro dias de protestos (28 a 31 de outubro) pacíficos reprimidos com violência pelo Estado levaram à morte de oito manifestantes, prisão de dezenas de ativistas e à desestabilização do regime liderado por Blaise.

Nos dois primeiros dias da revolta, manifestações contra a lei foram reprimidas com bombas de gás lacrimogêneo, bastonadas e prisões arbitrárias. Manifestantes ficaram feridos pela ação policial na capital e em Bobo-Dioulasso, segunda maior cidade do país.

No dia 30, os protestos adquiriram características de insurreição. Era a data prevista para a votação no parlamento do polêmico projeto de lei, e partidos de oposição junto a movimentos sociais convocaram a população a protestar em frente ao Parlamento. Mas os anseios das massas superaram o roteiro preestabelecido.

Na manhã do dia trinta, sem qualquer aviso prévio, jovens tomaram as ruas de Bobo-Dioulasso e enfrentaram a polícia pedindo a libertação de todos os ativistas presos na noite anterior. Nem mesmo o exército conseguiu conter os manifestantes e todos os detidos foram libertados. Em Ouagadougou, as barricadas criadas pelos militares e policiais não surtiram efeito frente à decisão das massas de chegar a qualquer custo ao Parlamento. Rebelando-se contra decisões dos seus superiores, a maioria dos soldados se recusou a abrir fogo contra os manifestantes.

No caminho rumo ao parlamento, os revoltosos incendiaram o hotel onde deputados estavam alojados, com recursos doados pelo presidente, para escapar à pressão popular. Ao se depararem com o Parlamento esvaziado, os manifestantes incendiaram setores do edifício antes de se dirigirem ao Palácio presidencial – onde chegaram a tempo de ver Campaoré evadir-se de helicóptero enquanto a sua guarda pessoal lançava bombas de gás lacrimogêneo. Ao menos quatro parlamentares tiveram suas casas saqueadas na capital.

No mesmo dia, 30 de outubro, seguindo o script ditado pela comunidade internacional para diminuir o ímpeto popular, o presidente destituiu o governo, fechou o parlamento e declarou estado de emergência, com toque de recolher entre às 19h e 6h. O chefe do Estado Maior das Forças Armadas e aliado do regime, General H. Traoré, foi encarregado de repor a “ordem” no país. Contudo, a medida não surtiu efeito e as manifestações tornaram-se ainda mais intensas.

Outros movimentos e partidos sankaristas aderem aos protestos e apesar das diferenças ideológicas entre eles, as organizações conseguem definir dois objetivos prioritários em comum: a destituição do presidente e a instauração de um governo de transição encarregado de realizar eleições presidenciais.

Na manhã do dia 31, as manifestações tomam mais uma vez as ruas da capital e, no interior, minas de ouro[2] exploradas por uma empresa russa com participação do estado burkinabê são pilhadas. As casas da família Campaoré são também depredadas e saqueadas pela população. As manifestações já não seguem qualquer roteiro e as organizações declaram que a população passou a agir por conta própria. Os manifestantes exigem a imediata renúncia do presidente. Saques a casas de parlamentares do regime se alastram pela capital Ouagadougou, mas os pedidos de serenidade feito pela oposição já não surtem efeito. O movimento Balai Citoyen declara em nota que “o poder caiu nas ruas” e que só a renúncia do presidente traria o país de volta à “normalidade”.

No início da tarde, o presidente Blaise Campaoré declara em comunicado a sua renúncia, a vacância do poder e a convocação de eleições presidenciais em 90 dias.  Conforme prevê a Constituição, assume a liderança do Estado o porta-voz das Forças Armadas, o Tenente-Coronel Isaac Zida, militar apoiador do regime de Blaise e sub-comandante da guarda presidencial. De imediato, a sede do Estado Maior das forças Armadas foi cercada por integrantes do Balai Citoyen e simpatizantes que exigiam a nomeação do General Lougué – antigo Ministro da Defesa exonerado por Campaoré em 2004 por suspeita de complô contra o regime.

Ao mesmo tempo, a frente partidária sankarista se opõe à nomeação de um militar e defende a indicação de um presidente de transição civil; o coletivo de Organizações da Sociedade Civil Burkinabê (OSC) defende a mesma posição em comunicado. No dia 3 de novembro, a plataforma dos partidos políticos de oposição comunicou em coletiva de imprensa que em breve enviará ao Tenente-Coronel Zida um plano político que permita uma “transição civil e democrática”.

Hoje, 3 de novembro, a situação é a seguinte: o ex-Presidente Blaise Caampaoré saiu do país e encontra-se refugiado na Costa do Marfim.

Relatos indicam que a situação em Ouagadougou é tranquila e os saques cessaram. Carros incendiados por manifestantes foram removidos e as ruas foram limpas. No interior, também não houve registro de incidentes nas últimas 24 horas. A população demonstra sinais de contentamento e não há manifestações previstas.

Quem é Blaise Campaoré?

Blaise Compaoré foi capitão do exército e ministro da justiça no governo do presidente Thomas Sankara. Liderou o golpe de estado que culminou no assassinato de Sankara em 1987 e presidiu um governo militar até 1991, quando foi eleito presidente da República nas primeiras eleições depois o golpe. Em 2008, M. Prince Johnson, antigo chefe militar liberiano, confirmou diante ao Tribunal Especial para a Serra Leoa que “Foi Compoaré quem mandou matar Sankara, com o auxílio do presidente ivoriano Houphouët-Boigny”. Esta versão também foi confirmada por outros testemunhos liberianos que chamam em causa também os serviços secretos franceses e a CIA. Depois de assumir o poder em 1987, Compaoré lança uma campanha de “retificação” da economia, visando reajustar a política econômica do país e restabelecer a cooperação com a França.

A constituição de 1991 instaura o multipartidarismo, mas o cenário político nacional continua dominado pelo partido do presidente, que é reeleito em 1998, 2005 e 2010. Altera a constituição duas vezes, em 1997 e em 2000, para poder estender o seu mandato. Apesar do suspeito envolvimento no tráfico de drogas e da proximidade com Charles Taylor e Muammar Gaddafi, ele goza de uma boa reputação no estrangeiro, sobretudo na França.

A consagração internacional chega em 2008: em visita oficial aos Estados Unidos, os dirigentes do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional felicitam Compaoré “pelo engajamento na boa governação econômica e pela luta contra a pobreza”. No mesmo ano, a ONU classifica Burkina Faso como o país com o maior índice de analfabetismo do mundo (75%). Em 2014, 25% da população ativa encontra-se desempregada e mais da metade da população vive com cerca de um dólar por dia.

“Os filhos de Sankara cresceram”

Apesar das diferentes origens, princípios e objetivos, a maioria das organizações de oposição ao regime Campaoré reivindicam os ideais de Thomas Sankara (1950-1987). Militar de formação marxista-leninista, Sankara chegou ao poder através de um golpe de Estado civil-militar em 4 de agosto de 1983.

Dotado de uma enorme popularidade, o jovem Capitão, em poucos anos, implementou programas que levaram o Alto Volta (antigo nome do país) a melhorar significativamente índices sociais e de saúde, além de superar problemas estruturais como a insegurança alimentar. Para isso, o “Che Guevara africano”, como é lembrado Sankara, criou comitês de base nas vilas do interior,  nacionalizou a produção, expulsou o Banco Mundial e o FMI e determinou que o desenvolvimento nacional seria alcançado com os recursos naturais do país, a agricultura e o comércio interno de produtos nacionais. As práticas culturais nefastas, como a mutilação genital feminina e o casamento forçado, foram combatidas sem concessão a relativismos culturais. A educação foi assumida como prioridade e a “emancipação da mulher” estava na ordem do dia.

Thomas se inspirou no também militar Jonh Rawllings, presidente do Ghana à época, e no cubano Fidel Castro, para estabelecer as bases ideológicas e as instituições do seu regime. Tributário do pan-africanismo de Kuame N’Krumah, ele ainda encontrou espaço para inserir em seu discurso um forte clamor retórico de união supranacional contra o neocolonialismo e o imperialismo. Sankara foi um dos primeiros em África a proclamar a cooperação técnica sul-sul.

Além disso, ele soube construir uma imagem de “chefe de Estado honesto e popular” ao ir morar com a família numa humilde casa em Ouagadougou, diminuir drasticamente o salário dos altos funcionários públicos (inclusive o seu próprio), trocar as Mercedes Benz dos ministros por carros populares e usar uma motocicleta para se locomover da sua casa ao trabalho.

As conquistas sociais e a sua imagem mítica mobilizam hoje os jovens que eram crianças ou sequer tinham nascido quando Sankara foi executado. Ainda que sem recordação clara, eles têm consciência de que o “herói nacional” foi assassinado durante um golpe de Estado apoiado pela França e liderado pelo seu grande amigo e aliado político, Blaise Campaoré.

Por outro lado, a imagem do herói assassinado se sobrepõe à sua ideologia. O povo que se revoltou contra Campaoré e reivindica o legado de Sankara não fala em comunismo nem demonstra preocupação com a igualdade de gênero. “Bom governo e verdadeira democracia partidária” são as metas daqueles que se autoproclamam filhos do mito.

Os jovens herdeiros de Sankara saciaram o desejo de vingança pelo “pai” assassinado, mas veem-se ainda presos a familiares problemas africanos. A começar pelo julgo militar, pela exclusão da mulher da política e, finalmente, pela atribuição a terceiros do exercício do poder conquistado pelo povo.

Notas:

[1] Trata-se do Front Progressiste Sankariste, uma plataforma de partidos políticos que reivindica o legado do ex-presidente Thomas Sankara (1950-1987) e faz oposição ao regime de Blaise Campaoré.

[2] Burkina Faso é o quarto maior produtor de ouro em África (54 países).

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