Por Amigos de Gongchao[*]
O trecho abaixo foi publicado no livro “China – Avanço do capital e revolta na nova fábrica do mundo”, pela Consequência Editora, Rio de Janeiro, 2014. Ralf Ruckus e Timo Bartholl (orgs).
Na primavera de 2010, os trabalhadores de uma fábrica da Honda na cidade industrial de Foshan, Guangdong, entraram em greve. A separação entre trabalhadores permanentes e estagiários técnicos em formação foi ultrapassada, levando a uma paralisação de toda a produção da Honda na China. A companhia transnacional foi forçada a aumentar os salários dos trabalhadores em mais de 30%. Este conflito originou uma onda de greves em várias indústrias e por várias regiões que durou cerca de dois meses. No outono de 2011, os habitantes de Wukan, Guangdong, tomaram o controle da sua cidade rural expulsando os membros do Governo e Partido locais. Alguns administradores corruptos tinham vendido terras sem as devidas compensações aos camponeses. Após as lutas da população contra a polícia e a constituição de grandes assembleias no centro da cidade durante várias semanas, o governo aceitou a realização de uma investigação sobre a venda dos terrenos e a eleição de um novo governo local.
Estes são exemplos proeminentes do sucesso e fracasso das políticas de contrainsurreição do governo chinês. O mal-estar social tem vindo a crescer desde meados da década de 1990, envolvendo as três classes perigosas – camponeses, trabalhadores urbanos e trabalhadores migrantes. Os conflitos por terra, as greves, os motins nas zonas rurais bem como nas cidades são talvez os percursores de uma explosão de lutas que podem vir a rebentar com a estrutura de poder socioeconômico que atualmente existe. Não obstante, as políticas contrainsurrecionais têm sido bem sucedidas, uma vez que a explosão não se deu ainda, apesar de todas as tensões e fricções. A turbulência social colocou uma enorme pressão sobre o regime, mas não afetou o seu domínio. A nova classe dirigente, composta por velhos membros do Partido e sua descendência capitalista[1] e aliados, não só modernizou e fortaleceu o dispositivo antimotim como criou, também, um leque de instituições para mediar, pacificar e integrar os conflitos sociais.
A explosão não se deu ainda, mas poderá vir a acontecer. As razões que poderão explicar o insucesso da repressão e da integração – assim como de uma certa melhoria nas condições de vida – no enfraquecer da chama da revolta deverão ser lidas através de uma lista de horrores sociais: um fosso gigante entre rendimentos; deslocações; baixos salários; longas jornadas de trabalho; falta de segurança no trabalho, com milhões de mortes e trabalhadores incapacitados; inexistência de um sistema de segurança social efetivo; despedimentos massivos; pobreza na velhice; corrupção disseminada e desvios de fundos – por cada um deles, uma razão para continuar a lutar. Há duas questões que terão de ser, mais cedo ou mais tarde, respondidas pelos proletários, camponeses e indignados na China, ou em qualquer outro lugar: uma vez que o capitalismo reproduz estes horrores sociais, como nos livramos dele? E o que virá depois?
Sem comunismo antes ou não mais comunismo?
Em 1978, o regime do Partido Comunista Chinês (PCC) estabeleceu uma longa marcha do socialismo de Estado capitalista para um capitalismo de Estado socialista. O antigo sistema socialista combinava a crença modernista num desenvolvimento industrial (taylorista, fordista) com a massificação dos cuidados de saúde, bem-estar social e reforma agrária, por um lado, e com o apartheid urbano-rural, nacionalismo, militarismo, autoritarismo e patriarcado, por outro. A crise política, econômica e social do socialismo de Estado nas décadas de 1960 e de 1970 forçou o regime a adotar o método de tentativa e erro em reformas que não sabia aonde iriam levar. A esse processo podemos chamar as três longas décadas de reforma e desenvolvimento.
Na primeira longa década de 1978 a 1992, o PCC e as estruturas do Estado começaram a cooperar com o capital transnacional para alterar as condições de acumulação de capital e de reprodução da força de trabalho. Algum capital estrangeiro foi autorizado a entrar no país. O Estado chinês providenciou as condições para uma industrialização lucrativa mediante, por exemplo, a moderação das inflexíveis políticas de migração interna, o que permitiu a libertação de uma nova força de trabalho para as recém criadas Zonas Econômicas Especiais. As primeiras fendas começaram a emergir na iron rice bowl socialista [2] – um conjunto de medidas sociais disponíveis para uma minoria, sobretudo de trabalhadores urbanos. Além disso, o PCC começou a substituir a retórica antiga da luta de classes por conceitos reacionários de estratificação social[3], enquanto mantinha outros elementos da “cola social” maoísta, como o nacionalismo chinês e a repressão. Enquanto isso, uma intensa mercantilização do trabalho, várias crises econômicas e uma crescente pressão no trabalho levaram a situações de descontentamento popular em muitas zonas do país, culminando no Movimento de Tiananmen, em 1989. Contrariamente à visão mais comum, este não foi apenas um movimento de estudantes e pró-democracia, mas antes um levantamento massivo e popular contra as condições sociais e o regime. A repressão do movimento, com dezenas de milhares de mortos, penas capitais e detenções, enfraqueceu a oposição popular e abriu caminho a um ataque ainda mais severo à classe trabalhadora.
Na segunda longa década, de 1992 a 2002, o Estado reestruturou toda a economia estatal, privatizando ou encerrando pequenas e médias empresas públicas e transformando as maiores em empresas reorientadas para o lucro. Milhões de trabalhadores tornam-se excessivos, muitos deles não conseguindo encontrar emprego no novo setor privado e constituindo assim os novos desempregados e pobres urbanos. O fim da iron rice bowl na segunda metade da década de 1990 gerou lutas massivas da classe trabalhadora urbana, que não pôde parar a reestruturação mas apenas desacelerá-la e obter algumas concessões monetárias. Entretanto, a entrada de capital transnacional nas províncias mais orientais da China estalou. Ao longo dos anos 1990, grande parte da população rural mais jovem mudou-se para as cidades a fim de trabalhar nas fábricas, na construção civil ou nos serviços urbanos. O regime percebeu que precisava modernizar as formas de repressão e de resolução de conflitos. Enquanto preparava uma enorme força policial contrainsurrecional, desenvolveu um novo quadro legal de trabalho para a mediação de conflitos laborais.
A terceira longa década começou por volta de 2002. O PCC consentiu que a nova elite se juntasse a ele, tornando-se um Partido Comunista de capitalistas. A nova composição de classe, envolvendo um número crescente de migrantes, começou a tomar forma no crescente número de lutas. A segunda geração de trabalhadores migrantes que chega às cidades nos anos 2000 aprendeu pela experiência dos familiares ou conterrâneos que tinham chegado antes. Eles querem ficar nas cidades, querem uma parte da riqueza que produzem e estão dispostos a lutar por isso. São considerados parte da “população rural” e têm de encontrar formas para transpor o ainda existente regime hukou, que lhes confere um estatuto de insegurança social semelhante ao dos emigrantes “temporários” nos países ocidentais. Acrescente-se que durante essa década as zonas rurais assistiram a incontáveis lutas de camponeses contra a expropriação, o roubo de terra, a poluição industrial e a corrupção governamental. O aumento no número de lutas obrigou o regime a desenvolver políticas de “apaga fogos”. No caso de lutas em grande escala, proletárias ou camponesas, passou a enviar não apenas polícia antimotim, mas também representantes do governo com malas cheias de dinheiro. Mais uma vez, novas leis foram sendo introduzidas e novas agências governamentais criadas para canalizar o mal-estar social, apoiadas numa ridícula propaganda confucionista de Estado que fala de uma “Sociedade Harmoniosa” – e que se traduz numa ameaça a todos aqueles que “rompem” a paz social e desafiam a autoridade do Partido Comunista.[4]
A quarta longa década ou o início do fim?
Em poucos anos poderemos ver 2010 como o início de uma quarta longa década de reformas. A crise global e o aumento das lutas sociais por todo o mundo alteraram o contexto. Na China, as crises sociais e conflitos poderão abrir portas para uma mudança. A greve na Honda e subsequente onda de greves, a que se juntou uma série de suicídios no gigante produtor eletrônico Foxconn (um texto sobre o assunto pode ser lido aqui), teve um grande impacto no debate público em torno do descontentamento laboral e da justiça social na China. Enquanto alguns proletários utilizam a greve como forma de luta (uma vez que trabalham em unidades industriais com centenas ou milhares de outros com os mesmos interesses), outros recorrem ao levantamento popular e ao motim como forma de expressar a sua raiva e de “negociar coletivamente através do motim”. A disseminação de formas autônomas de organização entre trabalhadores e camponeses elevou o espectro da revolta, conduzindo a um renovado debate no interior das estruturas de poder sobre como lidar com a pressão social vinda de baixo.
Por sua vez, correlacionado com a intensificação do antagonismo de classe muitas das instituições que sustentam a sociedade chinesa sofreram alterações profundas desde 1980. Isso levou a uma crise de reprodução social e das relações de gênero, tendo resultado em lutas (de mulheres) em torno da organização da reprodução e da liberdade social. A emigração, a Política de Uma Criança, e a desintegração latente da família biológica contribuiu para a transformação do estatuto das mulheres nas famílias e na sociedade, e uma profunda “crise de cuidados”.
Como é hábito, o capital utiliza os desejos dos oprimidos por melhores condições de vida para implementar novas formas de controle e exploração. Nesse caso, muitas mulheres agarraram as oportunidades dadas pela migração para escapar ao controle patriarcal e opressão nas vilas e acabaram sujeitas a um novo mundo industrial de exploração sob um regime patriarcal diferente. Ao combinar a mercantilização e custos progressivos do trabalho doméstico, cuidados de saúde e educação, geraram-se uma enorme miséria social e receios existenciais marcados. Os trabalhadores na China são forçados a aperfeiçoar o seu suzhi pessoal (qualidades sociais ou capital humano) de forma a melhorar as hipóteses no mercado de trabalho e cumprir os requisitos de reprodução[5], enquanto as longas jornadas de trabalho e a migração de longa distância resultaram em dramáticas “crises de tempo” no dia a dia dos trabalhadores.[6] Outras tensões sociais decorreram da existência coincidente de desemprego, precariedade, exploração, discriminação racista continuada sobre migrantes e minorias, e políticas industriais que favorecem uma força de trabalho jovem em detrimento dos mais velhos.
O Estado sabe que terá de continuar a orquestrar essas tensões, inventar e recorrer a tecnologias sociais para enfraquecer as revoltas sociais. Está a tentar adaptar os mecanismos de regulação de conflitos às novas relações laborais. Isso inclui uma maior modernização do regime de migrações (huhou), novos regulamentos laborais, e a rígida canalização dos conflitos através de agências e sindicatos estatais. Acima de tudo, o regime está a usar o seu novo poder econômico e imperial para experimentar e assegurar o crescimento econômico – apesar dos seus efeitos catastróficos sobre a natureza e o ser humano. Tem de garantir que atinja os autoproclamados 8% de taxa de crescimento, de forma a criar empregos suficientes para velhos e novos proletários e assim evitar mais e maiores conflitos sociais. Esse crescimento deve ainda suportar a bandeira do sonho capitalista da melhoria material contínua e da promessa de uma vida melhor para a classe suprimida que se mantém no trabalho, agrilhoada e de bom ânimo.
O que vemos nessa possível quarta fase de reformas é um autoproclamado Estado socialista-de-mercado que se foca ainda no crescimento capitalista e na modernização, considerando agora a “privatização” da terra nas zonas rurais e a industrialização plena da agricultura. Esta é a última grande reforma que poderá concluir a proletarização das populações rurais, ao retirar-lhes os seus (limitados) meios de subsistência. Este Estado está a conjugar estratégias de exploração capitalista e trabalho social com um conjunto de diferentes técnicas sociais de tolerância repressiva com as quais os proletários dos Estados “ocidentais” já têm de lidar. Se observarmos de um ponto de vista de revolução social e emancipação, as componentes repressivas das políticas contrainsurrecionais da China, e as fixes capitalistas (formas de reestruturação que visam ao enfraquecimento dos trabalhadores – como a realocação de capital, automatização, divisão da força de trabalho por gênero etc.)[7] são alvos óbvios de luta. Enquanto isso, outros alvos estão ocultados pelos interesses divergentes dos vários atores e ideologias de esquerda.
O beco sem saída da esquerda versus crítica destrutiva
A disseminação da luta na China pode abrir novas perspectivas de mudança social. Há dez anos, muitas lutas desenvolveram-se sob formas de organização baseadas nas afinidades familiares e limitadas a mobilizações celulares numa fábrica ou bairro. Numa década, uma nova camada de trabalhadores ativistas, assim como os denominados advogados e jornalistas cidadãos emergiram, e grupos de pares e interesses vieram suplantar as redes de parentesco (Pun & Chan). Embora ainda limitada pela divisão hukou (entre trabalhadores rurais e não-rurais) e pela forma como as hierarquias laborais e comunitárias se refletem nos comitês de greve e nas iniciativas auto-organizadas, é já evidente a nova (re)composição de classe e a surpreendente dinâmica social por ela criada: ondas de greve, resistências em dominó e por mimetismo a partir das bases, debates sobre condições de vida, lutas, estratégias de organização e mudança, seja na nuvem digital dos chats e websites, seja ao longo das próprias rotas físicas de migração e nas comunidades proletárias. Tudo isso tem consequências na classe trabalhadora rural, migrante e urbana, incluindo as chamadas formigas (yizu), trabalhadores instruídos e precários de colarinho-branco, que, ambicionando uma carreira, acabam em trabalhos pouco qualificados. O regime chinês teme que esta nova subclasse possa estabelecer alianças com os proletários de colarinho azul e cor-de-rosa e, assim, minar a ordem vigente – como durante as Revoltas Árabes.
Entretanto, o que pode ser amplamente definido como “esquerda” tem uma dimensão pequena e fragmentada na China. Grande parte é influenciada por diferentes interpretações do maoísmo, apoiando as greves dos trabalhadores, enquanto se mantêm fiéis aos conceitos do Partido e ao nacionalismo. Os ativistas das ONGs, muitos deles financiados por fundações, sindicatos ou igrejas de Hong Kong, ou de outros lugares no Ocidente, oscilam entre o trabalho social e o reformismo de Estado, mas também entre o ativismo de base e o empoderamento dos trabalhadores. A propagação de ideias neomarxistas e feministas, assim como um novo interesse pelas lutas dos trabalhadores e o desejo de participação por parte de círculos acadêmicos jovens são sinais promissores. Contudo, essa pequena “esquerda” tem de lidar continuamente com a censura, repressão e ameaças das forças de segurança, de um lado, e, por outro, com uma forte pressão de dentro do aparelho de Estado e do Partido para que sigam o caminho da “harmonia social” e ajudem a transformar o poder de classe numa contundente arma de parceria social.[8]
Um exemplo das ilusões da esquerda e do lobby político é o debate sobre sindicatos. Os sindicatos são uma ferramenta possível para controlar e pacificar a luta dos trabalhadores. Estes podem representar os interesses materiais dos trabalhadores contra o interesse do capital e do Estado, mas apenas dentro de certos limites sistêmicos e aceitando os mecanismos capitalistas – caso contrário, teriam de romper com o seu papel sindical. Na China, os sindicatos são ainda organizações de massa do PCC e estão diretamente dependentes do financiamento do Estado e de diretivas governamentais. Opõem-se a todas as greves e atacam formas independentes de organização dos trabalhadores. Isso não impede que a esquerda defenda um sindicalismo militante ou reformista – maoísta ou não – que exija a “reforma” dos sindicatos estatais para que possam cumprir a função de verdadeiros sindicatos contra o capital e o Estado. Outros protagonistas de esquerda defendem a criação de sindicatos independentes de tipo ocidental, contanto que ajam de acordo com os interesses dos trabalhadores, ignorando, portanto, a longa história de compromisso sindical e de enfraquecimento da luta dos trabalhadores por sindicatos desse tipo mundo fora.
Em vez de fornecer o kit de reparação ideal, adequado à desintegração da estrutura social capitalista, que lubrifique as engrenagens da arbitragem e da pacificação das lutas sociais ou que reinvente até o mito do “Estado operário”, a esquerda deveria envolver-se mais profundamente e apoiar os processos de construção de classe, quebrando a censura do Estado e disseminando mais informação sobre as lutas na China e não só, e abstendo-se de um papel construtivo no quadro dos limites do capitalismo, construindo ferramentas para uma crítica destrutiva. Essa forma de crítica terá de olhar para lá da propaganda do Estado assim como da névoa que envolve a exploração capitalista, lançando luzes sobre as lutas que poderão abrir perspectivas para lá do capitalismo. Os métodos concretos deverão incluir pelo menos dois elementos – traços que poderão ser encontrados por toda a história da política revolucionária na China: a análise dos processos de (re)composição de classe na perspectiva dos proletários e de outras pessoas oprimidas; e a co-investigação, uma tentativa através do inquérito militante de quebrar divisões entre proletários, ativistas e os chamados intelectuais, quer na China quer em relação aos proletários e ativistas de outros lugares – como parte de uma nova organização construída a partir de baixo.
Perspectiva Globalizada
Trata-se, claro, de um desafio não só para a esquerda na China e arredores, mas em todo o mundo. É impressionante como – após décadas de projetos de partidos de esquerda falhados, movimentos de libertação nacional e socialismo de Estado ou social-democracia – grande parte da esquerda continua agarrada à velha narrativa esquerdista da construção do Estado, parlamentarismo baseado em partidos, paternalismo e política do poder; mesmo em tempos de crise e miséria globais que levaram a uma raiva social e rebelião sem precedentes.
É este o tempo de atacar o modelo da mão de obra barata, as ideias de parceria social e os compromissos do Estado social. A esquerda tem de deixar para trás conceitos como o boicote ao consumo, responsabilidade social das empresas e lobbismo de esquerda e assumir uma posição de solidariedade não-paternalista que atravesse as fronteiras físicas e virtuais. O já ultrapassado internacionalismo precisa de ser substituído pela perspectiva de uma classe operária global. Essa classe está ainda separada pela divisão norte-sul, pelos mercados de trabalho nacionais (assim como uma divisão sexista e racista do trabalho dentro desses mesmos mercados) e ao longo das cadeias globais de migração, mas a onda de lutas global cria a oportunidade para atacar e abolir essas fronteiras a partir de baixo. O capital global foi para a China, formando uma coligação com um Estado-Partido que tentou sobreviver e defender o seu domínio.
Seguiu-se o conflito, iniciado nas Zonas Econômicas Especiais, ao longo da costa leste da China e segue agora as rotas da realocação do capital na China central e oeste. Se a pressão vinda de baixo aumentar e forçar o regime a fazer mais concessões – como nos últimos anos – e se a crise global se intensificar e alvoroçar a China, as lutas sociais poderão alcançar um nível global, fundir-se com as revoltas de outros lados, e atrapalhar os projetos capitalistas de gestão da crise. Muitas vezes, as lutas sociais não têm reivindicações políticas – quer na China, quer noutros lados – mas se formarem um movimento de massas poderão romper a rede capitalista de exploração e repressão e abrir a porta para um mundo para lá das relações capitalistas. Esse processo poderá ter agora começado e, certamente, as lutas na China desempenharão um papel fundamental na determinação da sua direção e resultados.
Juntemo-nos.
As imagens que ilustram o artigo são retiradas da obra de Feng Mengbo.
Notas:
[*] Capítulo 9 do livro China – Avanço do capital e revolta na nova fábrica do mundo, Consequência Editora, Rio de Janeiro, 2014. Ralf Ruckus e Timo Bartholl (orgs).
[1] Muitos dos representantes da classe capitalista na China são (antigos) membros do Partido ou governo, ou filhos destes.
[2] The iron rice bowl é uma expressão idiomática que se refere ao sistema de emprego vitalício garantido em empresas estatais chinesas. A segurança do emprego e dos salários não estavam relacionadas com o desempenho no trabalho, mas sim com a adesão à doutrina do partido, desempenhando esse elemento um papel muito importante.
[3] Sobre a forma como o PCC abandonou os conceitos maoístas de luta de classes nos anos 1980 – seguindo a tendência global do “adeus à classe trabalhadora” – e os substituiu por conceitos weberianos de estratificação social, ver: Pun & Chan (2008).
[4] PCC introduziu o conceito de “Sociedade Harmoniosa” (socialista) no início dos anos 2000, destacando publicamente o seu novo foco não apenas no crescimento econômico mas também na justiça social. O conceito foi reabilitado do contexto do confucionismo, criticado como “feudal” nas décadas anteriores pelo PCC.
[5] Para uma descrição de suzhi enquanto noção neoliberal – semelhante à “aprendizagem ao longo da vida” e “autogestão pessoal” – ver: Yan (2006).
[6] Sobre o conceito de falta de controle sobre o tempo e “crises de tempo” resultantes, vistas de uma perspectiva feminista, ver: Liu (2007).
[7] Sobre os fixes, ver: Silver (2003).
[8] Um relato mais detalhado sobre a “esquerda” chinesa vai além do âmbito deste artigo. Para uma discussão sobre o legado maoísta e a Nova Esquerda “liberal” na China, ver: Carter (2010).
Bibliografia
Carter, Lance, A Chinese alternative? Interpreting the Chinese new left politically. Insurgent Notes, Issue 1, junho 2010.
Liu Jieyu, Gender and Work in Urban China. Women workers of the unlucky generation. London/New York, 2007.
Pun Ngai & Chris Chan King-Chi, The making of a new working class: a study of collective actions of migrant workers in South China. The China Quarterly #198, 2009, p. 287-303.
Pun Ngai & Chris Chan King-Chi, The Subsumption of Class Discourse in China. boundary 2, vol. 35 (2), verão 2008, p. 75-91.
Silver, Beverly J., Forces of labor – workers’ movements and globalization since 1870. Cambridge, 2003.
Yan Hairong, Rurality and labor process autonomy – the question of subsumption in the waged labor of domestic service, Cultural Dynamics, vol. 18 (1), março 2006, p. 5-31.
Prezado,
agradeço pelo artigo muito interessante, mas não entendi a afirmação: “A esquerda tem de deixar para trás conceitos como o boicote ao consumo.”
Quer dizer que podemos consumir tudo o que queremos, sem responsabilidade, e seremos livres e felizes?
Será que deixar de fora todo o mundo da esquerda post-FSM e da Economia Solidária (cooperativismo, associativismo, autogestão) é uma estratégia inteligente de enfrentamento atual ao sistema capitalista?
Saudações solidárias.
Alessandro Vigilante