Por Ruth Kinna[1]
Não é surpresa alguma descobrir que Kropotkin se interessava pelo Natal. Na cultura russa, São Nicolau (Николай Чудотворец) é reverenciado como um defensor dos oprimidos, dos fracos e dos desamparados; Kropotkin partilhava destes sentimentos, mas havia também uma ligação familiar. Como todos sabem, Kropotkin localizava seus antecessores na linha da antiga dinastia Rurik que dominou a Rússia antes dos “novos-ricos” Romanovs e que, a partir do primeiro século da era atual, controlou as rotas comerciais entre Moscou e o Império Bizantino. O ramo da família de Nicolau foi enviado para patrulhar o Mar Negro. Mas Nicolau era um homem espiritualizado, que buscou uma saída da pirataria e do banditismo que fizeram a fama de sua família viking russa. Então, estabeleceu-se com um novo nome nas terras meridionais do império, hoje a Grécia, e decidiu usar a fortuna acumulada em sua vida de crimes para aliviar o sofrimento dos pobres.
Fontes arquivísticas inéditas recentemente descobertas em Moscou revelam que Kropotkin era fascinado por este laço familiar e pela surpreendente similaridade física entre ele e a figura do Papai Noel, popularizada pela publicação, em 1823, de “Uma visita de São Nicolau” (mais conhecido como “A noite anterior ao Natal”[2]). Kropotkin não era tão corpulento quanto Papai Noel, mas, com uma almofada a rechear sua túnica, sentiu que ficava passável. Seu amigo Elisée Reclus aconselhou-o a tirar o ornamento de pele da roupa. Foi uma boa ideia, pois também lhe permitiria usar um pouco mais de preto com o vermelho. Ele havia decidido também seguir o conselho de Elisée sobre as renas, e usar um trenó de tração humana. Kropotkin não costumava se fantasiar, mas o uso da semelhança para divulgação da mensagem anarquista seria uma excelente propaganda pelo fato. Antecipando “V”, Kropotkin pensou que todos poderíamos agir como São Nicolau. Na margem de uma página, Kropotkin escreveu: “Infiltrem-se nas lojas, distribuam os brinquedos!”
Vestígios desbotados no verso de um cartão postal dizem:
Na véspera do Natal, vamos todos passear
Enquanto dormem, nosso poder vamos mostrar
Porque é justo, as lojas vamos expropriar
E distribuir tudo, tudo para quem mais precisar
Suas notas sobre este projeto revelam também vislumbres valiosos sobre suas ideias a respeito dos traços anarquistas do Natal e de seu pensamento sobre os modos pelos quais os rituais natalinos vitorianos deveriam ser adaptados.
“Todos sabemos”, escreveu, “que as grandes lojas – John Lewis, Harrods e Selfridges – estão começando a explorar o potencial de vendas do natal, criando cavernas mágicas, grutas e fantásticos reinos de fadas para atrair nossas crianças e pressionar-nos a comprar presentes que não queremos e pelos quais não podemos pagar”. “Se você é um de nós”, continuou, “verá que a mágica do Natal depende do sistema de produção do Papai Noel, não das tentativas das lojas de seduzi-lo ao consumo de inúteis bens de luxo”. Kropotkin descreveu as vastas oficinas do Polo Norte, onde elfos trabalhavam o ano inteiro alegremente, porque sabiam que estavam produzindo para o prazer de outras pessoas. Notando que estas oficinas eram estritamente sem fins lucrativos, baseadas em mão-de-obra artesanal e geridas em modelo comunal, Kropotkin tratou-as como protótipos para as fábricas do futuro (delineadas em “Campos, fábricas e oficinas”). Algumas pessoas, ele sentia, pensavam que o sonho do Papai Noel, de ver que todos haviam recebido presentes no dia do Natal, era quixotesco. Mas ele poderia ser realizado. De fato, a extensão das oficinas – cuja localização no Ártico tornava difíceis de manter – facilitaria a generalização da produção pautada pelas necessidades e a transformação da troca ocasional de presentes em partilha regular. “Precisamos dizer às pessoas”, Kropotkin escreveu, “que oficinas comunais podem ser estabelecidas em qualquer lugar, e que podemos combinar nossos recursos para assegurar que todos tenham suas necessidades satisfeitas”!
Uma das questões que mais incomodou Kropotkin sobre o Natal dizia respeito ao modo pelo qual o papel inspirador que São Nicolau desempenhara na conjuração dos mitos natalinos havia confundido a ética do Natal. Nicolau fora erroneamente representado como um homem caridoso e benevolente: pio, porque beneficente. Absorvidas na figura do Papai Noel, as motivações de Nicolau para as doações haviam sido ainda mais enviesadas pela fixação vitoriana por crianças. Kropotkin realmente não entendera as ligações, mas sentia que refletiam uma tentativa de moralizar a infância através de um conceito de pureza simbolizado pelo nascimento de Jesus. Naturalmente, ele não poderia imaginar a criação do Grande Irmão Papai Noel, que sabe quando as crianças estão acordadas ou adormecidas e chega à cidade aparentemente sabendo quais entre elas ousaram chorar ou fazer birra. Mas, cedo ou tarde, alertava, esta ideia da pureza seria usada para distinguir crianças más e boas, e só aquelas do primeiro grupo seriam recompensadas com presentes.
Qualquer que fosse o caso, era importante recuperar desta baboseira confusa tanto o princípio da compaixão de Nicolau quanto as origens folclóricas de São Nicolau. Nicolau deu porque era torturado pela sua consciência das privações de outras pessoas. Ainda que não fosse um assassino (até onde Kropotkin soubesse), ele partilhava da mesma ética de Sofia Petrovskaya[3]. E ainda que fosse obviamente importante preocupar-se com o bem-estar das crianças, o princípio anarquista comandava levar em conta o sofrimento de todos. Similarmente, a prática da doação foi compreendida, erroneamente, como se necessitasse da implementação de um plano dirigido a partir de um centro, supervisionado por um administrador onisciente. Tudo isto estava errado: Papai Noel veio da imaginação do povo (considere-se apenas o número de nomes que Nicolau recebeu – Sinterklaas, Tomte, de Kerstman), e o espraiamento da alegria – através da festividade – era organizado de baixo para cima. Enterrado sob o Natal, argumentou Kropotkin, estava o princípio solidário do apoio mútuo.
Kropotkin apreciou o significado do ritual e o real valor que indivíduos e comunidades associavam ao carnaval, atos de lembrança e comemoração. Ele não queria abolir o Natal, nem tampouco queria vê-lo republicanizado através de alguma reorganização burocrática obstinada do calendário. Era importante, todavia, destacar a ética que o Natal apoiava a partir da singularidade de sua celebração. Dar uma festa era só isso; a extensão do princípio do apoio mútuo e da compaixão à vida cotidiana era outra coisa. Na sociedade capitalista, o Natal abria espaço para bons comportamentos. Enquanto era possível ser cristão uma vez ao ano, o anarquismo era para toda a vida.
Kropotkin entendeu que sua propaganda teria mais chance de sucesso se pudesse mostrar como a mensagem anarquista também estava inserida na cultura hegemônica. Suas notas revelam que ele inspirava-se particularmente em “Um conto de Natal”, de Dickens, para encontrar um veículo para suas ideias. É amplamente atribuído ao livro o crédito pela consolidação das ideias de amor, regozijo e boa-vontade no Natal. Kropotkin encontrou a genialidade do livro em sua estrutura. Que outra coisa seria a história do encontro de Scrooge com os espíritos dos natais passados, presentes e futuros além de um relato prefigurativo da mudança? Ao ver seu presente através de seu passado, Scrooge teve a chance de alterar seus modos miseráveis e remoldar tanto seu futuro quanto o futuro da família Cratchit. Mesmo que lembrado apenas uma vez ao ano, pensou Kropotkin, o livro de Dickens deu aos anarquistas um veículo perfeito para ensinar esta lição: ao alterar o que fazemos hoje, ao modelar nosso comportamento segundo o de Nicolau, podemos ajudar a construir um futuro que é como o Natal!
Notas
[1] Ruth Kinna é professora de Teoria Política na Universidade Loughborough, onde se especializou em filosofia política. Desde 2007 ela é editora do jornal Anarchist Studies. Ela é autora de “Anarchism – a Beginners Guide”, e de “William Morris: The Art of Socialism”.
[2] Poema do filólogo estadunidense Clement Clark Moore (1779-1863) publicado pela primeira vez, ainda anonimamente, em 1823, caracterizou pela primeira vez para o público dos EUA a figura do Papai Noel de modo muito próximo ao que conhecemos hoje (exceto pela cor da roupa e pelo cachimbo, em desuso). (N. do T.)
[3] Sofia Petrovskaya, ou Sophia Perovskaya (1853-1881), como se costuma escrever mais regularmente, foi uma enfermeira e professora. Em 1871, entrou para a Grande Sociedade de Propaganda (Bol’shoe obshhestvo propagandy), também conhecida como Círculos de Tchaikovsky (Tchaikovtsy), sociedade literária de divulgação de livros proibidos pela censura czarista onde conheceu Piotr Kropotkin. Em 1874, como resultado do “julgamento dos 193”, em que 193 estudantes envolvidos em atividades de educação junto a camponeses foram presos acusados de subversão, foi encarcerada na Fortaleza de Pedro e Paulo, tendo sido solta em 1878. O julgamento radicalizou uma geração inteira de estudantes, que passou do protesto pacífico à luta armada; Perovkaya seguiu o mesmo caminho ao entrar na organização Terra e Liberdade (Zemlya i Volya) em 1878, pouco após sua libertação. Subiu rápido na hierarquia da organização, e em 1879 participou de uma tentativa falha de explodir o trem imperial. Com o racha da Terra e Liberdade que adveio em agosto de 1879, rejeitou os métodos de propaganda e agitação do grupo Partição Negra (Chyornyi peredel) e alinhou-se com os defensores do terrorismo político agrupados na Vontade do Povo (Narodnaya Volya). Participou de três tentativas de assassinato do czar Alexandre II: uma em Moscou (nov. 1879), outra em Odessa (primavera de 1880) e a terceira, que finalmente matou o czar, em São Petersburgo (1º de março de 1881). Presa em 10 de março e condenada à morte, foi enforcada em 15 de abril de 1881. (N do T.)
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A ilustração em destaque é de Grace Wilson. O original pode ser lido no site Strike! Magazine. A tradução foi feita por Passa Palavra.