Podemos avançar rumo à radicalização das lutas por meio da articulação pela base de pautas específicas e métodos organizativos de revolta popular para além do modelo de protesto em massa que se reapropria e obstrui as principais ruas da cidade? Por Eugênio Varlino.
Que limite?
Na jornada de luta contra o aumento da tarifa de ônibus de junho de 2013, vigorou uma tática que podemos chamar de “revolta popular” [1]. Esta tinha em seu centro gigantescos atos que bloqueavam as principais vias da cidade, decorando tais ruas e avenidas com cartazes e palavras de ordem. A radicalidade dos protestos muitas vezes residia no próprio trajeto percorrido, uma vez que se operavam reapropriações populares do espaço público, dessacralizando não apenas algumas instituições, que se tornaram alvo privilegiado de depredações etc., como também ruas e avenidas que simbolizam o poder capitalista, tal como a Avenida Paulista. Em 2013 a presença massiva e insistente dos manifestantes nas ruas, o caos urbano subsequente à revolta em face da violenta repressão policial contra os manifestantes, os danos ao patrimônio público e privado e o amplo apoio da chamada opinião pública exerceram pressão suficiente para levar os governantes a anular os aumentos da tarifa em diversas cidades de todo o Brasil. A tática da revolta popular foi portanto vitoriosa e aquele modo de luta se mostrou “suficiente” para garantir a demanda imediata da revogação dos aumentos. [A tentativa de ampliação/diluição da pauta e apropriação dos atos pela direita, na chamada “revolta dos coxinhas”, constitui tema paralelo ao assunto destas notas].
Embora tenha conquistado em 2013 seu objetivo imediato, parte da militância demonstra enxergar que a tática da revolta popular continha desde o início um forte limite se a estratégia das lutas se radicalizasse e a demanda popular passasse a visar a garantia da tarifa zero por meio da autogestão popular do transporte, para não dizer a autogestão da cidade. Planejados pelo restrito grupo do Movimento Passe Livre (MPL), os protestos funcionavam por meio da adesão popular a uma pauta imediata (revogação do aumento) e ampla (tarifa zero), desdobrando-se em atos que negavam o serviço de transporte nos moldes capitalistas, seja bloqueando ruas, pulando catracas ou depredando ônibus etc. Os protestos canalizavam, ainda, o descontentamento e a rebeldia popular frente à barbárie cotidiana a qual somos submetidos, o que ficou comprovado pela expansão da revolta para outros espaços periféricos da cidade, e tendo outras pautas, nem sempre diretamente relacionadas à questão do transporte público, como por exemplo os protestos contra a repressão policial nas favelas “pacificadas” pelas UPPs cariocas. Nesse sentido os protestos apareceram como forma de liberação e desencadeamento de uma rebeldia mais ou menos instintiva contra a ordem de coisas e contra algumas das facetas mais desagradáveis do capitalismo, como por exemplo a expulsão da classe trabalhadora para a periferia das cidades, o que visa manter a especulação imobiliária no centro e tem como consequência que aqueles que ali trabalham se veem forçados a perder até 5 horas de seu dia dentro de meios precários e caros de transporte de casa ao trabalho. Essa liberação da rebeldia já fez de 2013 um ano paradigmático da história brasileira, uma vez que ninguém poderá negar que a classe trabalhadora conquistou naquele ano aquilo pelo qual lutou, e isso num país em que as principais mudanças societárias jamais foram reconhecidas como fruto da luta do povo e sim como concessão dos poderosos.
Há quem defenda que enquanto o automóvel for o meio de transporte mais amplamente usado e as ruas o principal meio de escoamento das mercadorias seus bloqueios continuarão a gerar transtornos político-econômicos suficientes para que a luta obtenha resultados. O limite da tática da revolta popular residiria, então, somente no âmbito da estratégia mais pretensiosa (a consolidação da tarifa zero e a viabilização da autogestão da cidade), enquanto a tática da revolta popular seguiria sendo suficiente para garantir o atendimento da demanda defensiva pela revogação dos aumentos. Por outro lado, existe um outro aspecto do limite da tática, o qual reside, e talvez este seja o nó górdio da questão, no próprio modus operandi da organização da luta e dos protestos, em geral feita por uma vanguarda constitutiva do MPL e coletivos afinados politicamente com ele. É verdade que essa organização contava e ainda conta com o aprimoramento espontâneo das táticas no calor das lutas. Quanto a isso caberia lembrar a formação espontânea, ainda no início daquele junho, de grupos de manifestantes que se colocavam nas extremidades dos atos, assumindo a tarefa de conter a violência policial, preservando a integridade física dos demais. Essas fileiras “militares” eram inicialmente simplesmente reconhecidas como “vândalos”, mas acabaram por se cristalizar, no refluir daquele ascenso de massas, sob a identidade do ”black bloc”, incorporando a referência de uma cultura de resistência que surgira em contextos de outros países. Esta logo tornou-se pauta preferida dos grandes meios de comunicação e dos inquéritos policiais, e entre os adeptos do black bloc a ação passou a ser um fim em si mesma. Esses setores passaram a ser um problema extra a ser manejado pelos movimentos de rua, na medida em que recorrentemente se recusavam a se submter às propostas coletivas nos atos, e também do fato de que o caráter mascarado e “incontrolável” de cada black bloc tornou essa fileira a mais frágil para a infiltração de P2 [policiais infiltrados].
Pontuadas essas questões, cabe questionar se bastaria ao MPL e coletivos amigos repetir um “novo junho” em janeiro de 2015 para vermos atendidas nossas demandas pela redução da tarifa. Será?
Pistas
A nova onda de lutas contra a tarifa iniciou há algumas semanas e já lança luz sobre os limites e possibilidades da tática vitoriosa em 2013. Até aqui tivemos de 3 a 4 atos nas principais cidades do país, os quais demonstraram, acima de tudo, que o que não falta é disposição para a luta. Nos quatro atos que tivemos até aqui em São Paulo o Governo Estadual através da Polícia Militar tentou minar tanto a tática do bloqueio das ruas quanto a dos danos às propriedades, sendo inclusive competente em evitar que os protestos ocorressem na Avenida Paulista. Tal fato indica que ainda existem problemas na tática, mas tais problemas bastam para que atestemos que ela contém em si mesma um limite estrutural, insuperável? Cabe pensar com cuidado essa questão, fundamental para a realização da própria estratégia da tarifa zero sob controle popular.
Pode-se dizer que a forma organizativa mais ou menos “conspiratória” da revolta popular e a estratégia de pressionamento do poder público via ocupação em massa das principais vias da cidade, levando-a a “parar”, constituiu uma tática que chegou ao ápice e se tornou parcialmente anacrônica ainda em 2013. De fato, não obstante os atos sigam empolgando os manifestantes e a população urbana que toma contato direto com os protestos, apoiando-o a partir de suas casas, apartamentos e locais de trabalho no decorrer das passeatas, ao que parece a nova onda de protestos em 2015 surge e se desenvolve num ritmo diferente. O grande número de manifestantes, bem como a forte repressão policial, não mais surpreende e não chega a encher de indignação à população que não participa dos atos e não sente na própria pele a violência gratuita dos policiais, tal como ocorreu em 2013, o que até aqui tem dado certa folga aos governantes e capitalistas do setor de transporte. Se nos atermos à opinião pública em geral e aos resultados atingidos até aqui, poderia parecer que estamos diante de uma progressiva saturação da revolta popular enquanto forma de luta, muito embora contra todas as adversidades essa tática ainda se mostre sedutora ao ponto de levar milhares de pessoas às ruas. Tal é a energia da revolta popular, que não toma ciência dos próprios limites e encara de frente a repressão do Estado.
Se quisermos pensar seriamente os limites e potencialidades da tática da revolta popular precisamos ter em mente que todos os atores envolvidos no novo ciclo de lutas contra a tarifa já se apresentam diante dos protestos a partir de um outro patamar de experiência e, exatamente por terem vivenciado as jornadas de 2013, se colocam desde o início a partir de um outro lugar, munidos de táticas mais ou menos renovadas.
Os governantes, por exemplo, já largam a disputa em várias cidades do país com a carta na manga do “benefício” do passe livre estudantil, visando com isso arrefecer as lutas por meio da não participação dos estudantes contemplados, ao mesmo tempo em que procuram reverter essa concessão (conquistada na luta) em ganhos para sua própria imagem pública.
A polícia, por outro lado, aperfeiçoou sobremaneira suas táticas contra-insurgentes e já não deixa escapar rotas de fuga aos manifestantes, cercando permanentemente todo o ato e antecipando ataques com vistas à dispersão, quando não evitando o próprio ato de ocorrer [2].
A mídia comercial já não gasta tanto tempo de seus noticiários divulgando a luta e denunciando os abusos, e quando noticia os atos demonstra o quanto aprimorou seus métodos próprios de contra-informação e manipulação da opinião pública a favor de seus próprios interesses, que em geral coincidem com os do poder público e dos capitalistas do ramo do transporte.
Já os manifestantes também contam com seu acúmulo de experiência pós-junho de 2013, o que todavia não se mostrou ainda suficiente para contrabalançar a evolução tática dos mecanismos contra-insurgentes de governo, mídia e aparato policial. Uma interessante inovação da parte da extrema-esquerda reside nas Assembleias populares para decisão do trajeto do ato, o que dá menos tempo para as forças policiais armarem suas estratégias repressivas e se posicionarem de antemão ao longo do trajeto a fim de garantir a eficácia de seus estratagemas. Ao mesmo tempo, tais Assembleias permitem aos manifestantes colocar em prática os mecanismos de democracia direta que se pretende pôr em prática quando a tarifa zero for conquistada e a autogestão do transporte público estiver nas mãos dos usuários.
Já da parte da esquerda governista, há a articulação de uma Frente de Esquerda [3] que no âmbito dos protestos contra a tarifa tem repercutido no sentido de uma inovadora tentativa de minar os protestos por fora, via acordos [4] [5] em reuniões arranjadas com os governantes e/ou promoções de atos paralelos aos do MPL, porém com a mesma pauta de revogação do aumento da tarifa. Não por acaso tais atos não recebem o mesmo tratamento repressivo da parte do aparato policial: levados a cabo por organizações menos combativas e mais voltadas para os acordos institucionais entre Estado e movimentos sociais, esses atos vão na mesma mão dos interesses do governo e por isso sua realização agrada aos governantes: basta vermos o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que fez em São Paulo, dois dias antes do 2º Ato do MPL-SP, um ato que passou por dentro de um terminal de ônibus e se encerrou com a entrega das reivindicações na Secretaria de Transporte, sendo aclamado pela mídia como um ato “de caráter pacífico”, enquanto os atos do MPL são propositalmente reprimidos pela polícia, reforçando o discurso midiático de que o MPL seria intransigente, violento etc., e visando distribuir o medo entre os manifestantes, na tentativa de diminuição do contingente nestas manifestações.[6] [7] E temos também uma decidida tentativa de disputa, da parte da esquerda governista, da hegemonia dentro dos próprios atos do MPL. As ofensivas vêm de toda parte, é preciso estar atento para antecipar os movimentos dos adversários da tarifa zero.
Esse novo cenário não foi suficiente para impedir que novos atos organizados pelo MPL ocorressem e sigam ocorrendo, com massiva presença de dezenas de milhares de manifestantes descontentes com o aumento da tarifa. O que mudou é que até o momento esses gigantescos atos parecem exercer uma pressão muito menor sobre o poder público, no sentido deste se ver impelido a atender às reivindicações, se compararmos à pressão que atos até mesmo de igual magnitude exerceram há cerca de um ano e meio. Será que a persistência da luta e sua ampliação, mesmo que chegue outra vez a levar milhões de pessoas às ruas, bastará para reverter esse quadro e incomodar o poder público e os capitalistas do transporte o suficiente para que vejamos atendida a demanda pela revogação do aumento? Nesse caso a tática da revolta popular mostraria que ainda tem o que render enquanto forma de luta contra a tarifa. Mas e se o fôlego deles for maior que o ânimo da rebeldia popular, que faremos além de seguir ocupando e nos reapropriando das ruas e principais vias da cidade? Quem terá mais fôlego, os estratagemas contra-insurgentes ou a rebeldia popular?
Rotas de fuga do limite
O desenvolvimento dos aparatos e táticas repressivas, bem como o aperfeiçoamento das técnicas midiáticas de contra-informação e todo o conjunto de dificuldades que os protestos de rua apresentaram e seguem apresentando levaram o MPL a prever esse cenário crítico e chegar à conclusão de que um novo junho talvez não bastaria para se ver atendida a demanda pela anulação do aumento, e muito menos a tarifa zero. Era preciso, portanto, antecipar o limite da tática oxigenando-a, se o movimento quisesse obter novas vitórias rumo ao passe livre.
Por esse motivo o MPL vem promovendo e incentivando, paralelamente aos tradicionais atos de rua no centro, atos diferenciados nas periferias das grandes cidades, e recentemente tem se esforçado, com sucesso, para realizar os próprios Atos na periferia da capital paulista.[8] O intuito é potencializar a amplitude política e geográfica dos protestos, descentralizando-os, o que pode dificultar sua repressão policial e reforçar a pressão sobre o poder público. Ao mesmo tempo esse movimento de abertura do leque político traz consigo a potencialidade de radicalização das revoltas populares nos bairros e locais de trabalho, extrapolando em muito o controle e capacidade organizativa do próprio MPL. Essa iniciativa vem sendo seguida de perto pelas organizações afinadas com os governos estadual e municipal. O MTST, por exemplo, passou a reproduzir a tática de realização dos atos contra o aumento da tarifa na periferia, sem somar com os atos convocados pelo MPL, mas tentando adiantar-se a eles.[9] Ao mesmo tempo, tais atos visam manter a posição do MTST enquanto movimento que é capaz de mobilizar a classe e, portanto, um movimento com o qual os governos precisam seguir negociando.
Ao oferecer espaços de mobilização e de organização da classe, o MPL e outras organizações buscam superar um dos supostos limites das revoltas de 2013: a falta de espaços organizativos capazes de garantir o maior envolvimento da classe trabalhadora como um todo (desempregados, trabalhadores informais e assalariados de carteira assinada), não apenas nos protestos de rua, mas em articulação com as lutas específicas nos locais de trabalho e moradia. O foco, naturalmente, reside nos trabalhadores urbanos, mas o movimento feito certamente tem a potencialidade de atingir o entorno da cidade, especialmente as zonas que também sofrem os percalços de um transporte público caro e de péssima qualidade, ou até mesmo bairros que ainda não dispõem de linhas de transporte público.
Além disso, ao trabalhar no surgimento e desenvolvimento de espaços de organização de classe o movimento social abre uma via de escape para a fração da classe trabalhadora que está organizada em siglas assimiladas pelo petismo (por exemplo, em ordem cronológica, CUT, MST e MTST).
Em 2013 algumas cidades, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, foram palco de revoltas explosivas e espontâneas em diversos pontos da cidade, simultaneamente. Foi um belo começo de generalização da revolta popular, mas os trabalhadores não conseguiram manter e estender maciçamente essa revolta popular nas periferias e locais de trabalho, criando assim as condições para uma radicalização das lutas que chegasse a tomar a forma de uma greve geral constitutiva de órgãos de poder popular, o que certamente levaria à contestação de bem mais que os 20 ou 50 centavos da tarifa. Se a classe trabalhadora lograsse essa auto-superação de suas formas de luta tradicional em prol das lutas de base, mais ou menos espontâneas, que surgiram junto e na sequência da onda de protestos do segundo semestre de 2013 (greves selvagens contrárias à posição conciliadora dos sindicatos, tal como no caso da greve dos garis e motoristas/cobradores cariocas, ou ainda ocupações espontâneas de terrenos nos extremos sul e leste de São Paulo), exercendo um tipo de pressão radical por sobre a base dos próprios aparatos de luta historicamente assimilados, teríamos talvez as condições para desdobramentos insurrecionais que justificariam a histeria de alguns sobre a “pré-revolução brasileira” e coisas do gênero. Mas o fato é que estivemos e seguimos ainda muito longe desse patamar de ofensiva anticapitalista.
Podemos avançar rumo à radicalização das lutas por meio da articulação pela base de pautas específicas e métodos organizativos de revolta popular para além do modelo de protesto em massa que se reapropria e obstrui as principais ruas da cidade? Se conseguirmos, a revolta popular demonstraria que contém em si mesma a semente da organização de órgãos de controle popular da produção e reprodução da vida social, e então a tarifa zero será apenas o começo de uma onda de conquistas substantivas para a classe trabalhadora.
Notas
[1] Revolta popular: o limite da tática. Caio Martins e Leonardo Cordeiro.
[2] Não vai ter protesto: evolução tática da repressão durante a Copa – Eduardo Tomazine.
[3] A saída de Gilberto Carvalho e a Frente de esquerda do PT. O que os anticapitalistas tem a ver com isso? – Passa Palavra.
[5] MPL vai às ruas enquanto Alckmin e Haddad tentam evitar outro junho de 2013.
[6] MTST faz ato por moradia e contra tarifa no centro de SP.
[7] Atos do MTST seguem pacíficos em São Paulo.
[8] MPL incorpora a periferia nos protestos.
[9] MTST faz sete manifestações simultâneas na Grande São Paulo.
O texto traz uma análise interessante sobre os alcances e limites da luta através da revolta popular. No entanto, permanece a dúvida inicial: afinal de contas, a ocupação e reapropriacao das ruas será eficaz enquanto tática de reivindicação? Ainda que com as ações mais descentralizadas e espalhadas pelas periferias, não estão os aparatos contrainsurgentes ainda mais refinados? A população que vai às ruas e que se organiza em seus bairros seguirá até que ponto? Ou a persistência das instâncias governamentais em reprimir a luta vencerá os manifestantes pelo cansaço?
e a pergunta que não vai ser calada: o acúmulo de organização e de comprometimento militante gerados pela construção de base do MPL, serão aproveitados pela população caso o desastre hídrico se confirme nos próximos meses na cidade de São Paulo?
A descentralização das ações não é apenas um resguardo para evitar a concentração da repressão. Ela é uma necessidade para dar um passo à frente na organização. Para evitar que a justa ira popular se esvaia. É nos locais de sociabilidade (trabalho e moradia) onde se constrói a confiança necessária para ações mais audazes e politizadas, e não no centro das cidades. As atividades descentralizadas têm também um tempo “mais lento”, que permite a reflexão coletiva, como classe. E o reconhecimento como classe. E permite também a unificação das lutas “por baixo”, nos capilares.
Também, como Zé Gotinha, que me precedeu, estou pensando nas lutas por água e energia que se esperam. E creio que nos bairros isso pode ganhar a forma mais sólida e nada efémera. As lutas contra a tarifa criam redes de amparo às lutas que servem para outras lutas que vão se configurando.
Eu não tenho muitas dúvidas de que esse tipo de revolta popular tende a se afirmar e intensificar-se com a forte crise que se instala e com a forma truculenta como vem sendo tratada por esse novo governo Dilma. Golpes contra os direitos dos trabalhadores, o aumento da taxa de juros, a política fiscal aplicada, a explosão do desemprego, sobretudo entre jovens, já estão causando um agravamento social espetacular. Essas revoltas populares podem ser um ensaio do que poderá vir a acontecer por exemplo quando a população começar a se insurgir contra a escassez de água e a crise energética. Vamos precisar de muitos MPL’s, muitos movimentos grevistas combativos, muitos black blocs etc etc etc, de muita energia anticapitalista, daquelas que não cabem nas soluções de menor resistência.
Eu vejo um problema de conceituação do que seja a ‘revolta popular’ como tática neste artigo. O conceito utilizado nesse texto é diferente (e bastante diferente a meu ver) do que aparece no texto referenciado na nota 1.
O conceito do texto na nota 1 me parece que dá conta bem de descrever a dinâmica das chamadas ‘revoltas’ contra aumento de tarifa de transporte nos últimos 12 anos:
“uma tática que podemos chamar de “revolta popular”: um processo de fôlego curto, mas explosivo, intenso, radical e descentralizado. As primeiras manifestações atuam como ignição de uma mobilização que extrapola o controle de quem a iniciou – que perde toda a capacidade de interrompê-la. Há uma escalada de ação direta: ocupação massiva e travamento de importantes artérias da cidade, enfrentamento com a polícia, ataques ao patrimônio público e privado, saques. Ao prejudicarem a circulação de valor e lançarem uma ameaça de caos – desobediência generalizada –, os protestos, que não respondem a um representante com quem seja possível uma negociação, forçam o governo a recuar para restabelecer a “ordem”.”
http://passapalavra.info/2014/05/95701
Esse elemento que caracteriza a ‘revolta’, a quebra da ordem, a fuga de controle, é essencial a meu ver para definição dessa “tática”. Mas no texto aqui ela aparece apenas como se fosse manifestações que bloqueiam ruas.
Acho portanto que aqui se fala de tática de manifestações de rua, e não de revolta.
Acho também que o esgotamento de uma tática de manifestação de rua (ou de revolta) não deve ser posto a partir do momento que não se consegue atingir o objetivo determinada vez, pois muitos fatores entram em questão. Nem toda greve é vitoriosa, nem toda campanha para reduzir tarifa consegue reduzi-la (na verdade são mais as exceções que conseguem).
Acho que o principal limite de formas de luta são as formas de luta mais eficazes. Enquanto formas mais eficazes não são constituídas, não há outra opção senão usar as que se conhece.
Priscilla Prudencio,
A resposta a essas questões não pode ser dada no âmbito teórico, mas tão somente na prática social da luta de classes. O máximo que a teoria pode fazer é sintetizar dilemas dessa luta e estimular a reflexão e superação teórica e prática dos limites dados. Todo o processo é feito de aprendizagens de ambos os lados, e avanços e recuos. Os capitalistas, por exemplo, aprenderam que o melhor momento para aumentar as tarifas é no período de férias, quando a possibilidade de protestos é menor. Já nós estamos aprendendo os limites da tática usada há tempos, creio que desde a revolta do buzu, mas principalmente em 2013. Superar tais limites é tarefa coletiva e prática. O texto só vem depois, pra sintetizar o que já rolou na prática e no máximo apontar as vias abertas e fechadas pra luta de amanhã.
Zé Gotinha, Silvia e Maria,
Nós, anticapitalistas, esperamos que esse acúmulo em construção seja aproveitado e potencializado, não é? Os apontamentos da Silvia me pareceram tocar em pontos centrais: laços de confiança, reflexão coletiva, redes de amparo, enfim, sementes do poder popular.
Leo Vinicius,
Tem toda razão. Eu, sem me justificar, tomei emprestado o conceito elaborado por Leonardo e Caio e o recortei, digamos, em dois lados, o “bom” e o “ruim”. E me centrei, no texto, nesse lado ruim, que vc chamou de “tática de manifestações de rua”, muito embora eu tenha tratado também da questão do modo específico de organização dos protestos por uma vanguarda que não podia e não queria controlar a revolta popular, o que foi seu grande trunfo (penso especialmente em SP, posto que no Rio a organização via Fórum era bem mais amadora, precária e, talvez por isso, abria mais margem ainda para a espontaneidade das massas desde a concentração até o fim dos atos – o que também acabou sendo bom, e deu aos protestos do Rio um caráter talvez ainda mais de “revolta popular” que em outras cidades com organização mais estruturada).
Já o lado bom da tática da revolta popular… este guarda a semente da superação, e é nele que muitos de nós confiamos quando vamos à rua.
Ah sim, sobre usarmos as formas de luta que se conhece (e que se tem à disposição). Claro, isso é incontornável. Mas melhor usa o machado aquele que conhece bem o quão amolada está a cunha de ferro, e a consistência do cabo…
Sigamos o debate que o desafio é grande.
vou aproveitar os debates sobre os limites das táticas para trazer um relato que fiz no post da transmissão dos atos:
Sobre o caráter proto-fascista dos Black Blocs em SP
Hoje durante a manifestação do dia 27 não tivemos que nos preocupar com a intervenção da polícia [até a dispersão], e no entanto surge uma nova ameaça aos manifestantes dos atos do MPL. Se alguém ainda tinha dúvidas a respeito do caráter proto-fascista dos Black Blocs em SP está na hora de abandoná-las, pois este grupo já assumiu a função de aparelho de contra-espionagem dos atos, é claro que sem consultar ninguém, e já estão atuando sem pudores. Foi assim que o único grupo de Black Blocs organizados do ato ATACOU FISICAMENTE meu irmão, que ia pela primeira vez num ato depois de 2013, pelo crime de “parecer um P2″. Isso mesmo, atacaram fisicamente um manifestante em pleno ato.
Mas o mais interessante não é a agressão em si, pois isso não constitui fascismo por si só. O interessante foi ouvir aquelas pessoas justificando seus atos após termos separado a confusão que se instalava. Num momento que merecia o espaço dos “Flagrantes Delitos” deste site, quando eu gritava para um dos elementos de preto que se tratava de meu irmão e não de um P2, ele me pergunta “e você por acaso tem como comprovar?!”, na primeira prova de que os Black Blocs estão aprendendo muito de seus inimigos.
Momentos após, como alguns outros de preto seguiam encarando meu irmão, fui tirar satisfações a respeito do ocorrido, no que um deles me informou que “fotógrafos deles” o haviam visto “mexer no celular” e “falar com policiais”.
Fica o aviso aqui: caso estejam acompanhados de pessoas que não estão acostumadas a frequentar os atos, não deixem que andem sozinhas, pois os Black Blocs agora também constituem um perigo para os manifestantes. Parece valer uma regra que diz que pessoas sem pinta de revolucionário e que usam o celular durante o ato não são bem vindas e estão sujeitas à agressão física sem aviso prévio.
Para além do conselho aos indivíduos, espero que as organizações do campo classista e autônomo que compartilham não apenas a construção destes Atos mas também uma agenda mais ampla fiquem atentos ao perigo que esta organização pode chegar a ser para todos nós. Não podemos deixar aflorar no meio do movimento um grupo que se dá legitimidades extravagantes de usar a força física apenas por se dizerem anarquistas com vocação para Tropa de Choque.
Olá,
Concordo com o problema que coloca o Leo Vinícius. A “tática da revolta popular” da qual tratamos eu e o Leo no texto que está citado na nota 1 (“Revolta popular: o limite da tática”: http://passapalavra.info/2014/05/95701) não se referia simplesmente à ocupação massiva das ruas, mas a uma certa forma de se produzir uma luta, tomada como um todo. Quer dizer, ali a palavra “tática” era tomada no seu sentido forte: entendida como a estratégia específica para toda uma jornada de lutas. O termo “revolta popular” sugere muitas coisas, mas ali usamos ele para tratar especificamente da “tática histórica das lutas contra o aumento” que se desenvolveu na última década nas cidades brasileiras. Essa tática tem, sem dúvidas, a luta de rua como uma faceta mais visível. Mas naquele texto tentamos analisar a forma de organização que a sustenta, e que nem sempre aparece claramente.
Porém como nós mesmos colocamos, a análise daquele texto estava centrada na experiência do MPL no junho de 2013 em São Paulo, que tomamos como um caso emblemático, por assim dizer de “realização máxima”, daquela tática (que por sua vez se elaborava com base principalmente na experiência de Florianópolis entre 2004-2005). Isso não quer dizer que todas as lutas contra o aumento nos últimos doze anos tenham seguido à risca aquele padrão. Como bem disse o Eugênio, em junho de 2013 a mobilização carioca foi bem diferente. Mesmo as lutas contra o aumento em São Paulo em 2006, 2010, 2011, foram de outro jeito. O que tentamos apontar naquele texto é que as lutas contra aumentos que se desenvolveram nas cidades brasileiras desde 2003 carregavam vários elementos em comum, ainda que às vezes uns sim e outros não, traçando “de forma tácita, nem sempre enunciada, uma mesma estratégia.”
Nesse sentido, a luta contra o aumento das tarifas para R$3,50 este ano em São Paulo inevitavelmente guarda inúmeros elementos daquele paradigma: a “tática da revolta popular” segue parcialmente presente, ainda que dificilmente voltará a se realizar plenamente. E aí está o ponto mais valioso que o Eugênio coloca no artigo, ao observar que: “todos os atores envolvidos no novo ciclo de lutas contra a tarifa já se apresentam diante dos protestos a partir de um outro patamar de experiência e, exatamente por terem vivenciado as jornadas de 2013, se colocam desde o início a partir de um outro lugar, munidos de táticas mais ou menos renovadas.”
Olá Eugênio, tudo bem?
Obrigada pela indicação. Estava mesmo pra falar com você sobre o outro texto que me mostrou, do Passa Palavras: http://passapalavra.info/2015/01/101808.
Li o seu texto e os comentários do Leo e seu. Acho que você poderia ter enfatizado qual a importância do MPL ter convocado os atos e em que medida eles obrigaram outros setores a se “mover”…
Acredito, inclusive, que a estratégia da Frente de Esquerda foi utilizada em 2013 quando, após uma conversa no Instituto Lula, o MST e as Centrais resolveram “ocupar” as ruas e passaram a se reivindicar como as “verdadeiras organizações de classe”…
O MTST também realizou “mobilizações” naquele ano enfatizando que eles sim eram os “legítimos representantes da periferia”….
Esta estratégia foi montada lá atrás, na minha opinião, a partir de uma constatação de que estas organizações haviam “abandonado” o “trabalho de base” e aberto espaço para que outros setores se organizassem
Afinal, como nenhum dirigente destas organizações não previu que havia uma insatisfação tão grande?
Bem… depois cpntinuamos o debate.
Bem pensado L!
Fizeram isso mesmo! E junto, na sequência, houve ainda o oportunismo do MTST próximo à Copa, com um ato de umas 20 mil pessoas em SP, mostrando que tinha capacidade de mobilização e depois disso usando disso como moeda de troca na negociação para não realizar atos durante a copa, em troca de prioridade no MCMV – Entidades… Além disso há ainda a ida do Boulos à Folha, que acredito que tenha se dado em negociação e para mantê-lo como porta-voz “crítico” e legítimo representante do MTST, ao mesmo tempo em que já é um quadro cooptado e com o qual os governantes sabiam que podiam dialogar e costurar interesses. Noutras palavras: melhor ajudar o quadro cooptado a se manter/garantir como representante legítimo do movimento, que ter que cooptador novos líderes que surgiriam após a máscara dele e de outros quadros cair. Por isso a reserva de um espaço de onde ele pode desferir críticas e mais críticas, mantendo a aparência de que com o MTST e em especial com ele, “a luta é pra valer”. Basta lembrar a farsa da “vitória” da luta recente no RJ, celebrada aos 4 cantos do país, quando em verdade tudo já estava de antemão negociado.
Tem uma pitada de teoria da conspiração nessa ideia sobre o Boulos na Folha, pode até ser que realmente ele não saiba o papel que cumpre e tão somente seja uma peça sendo manipulada pelos que sabem o que estão fazendo, mas em todo caso prefiro sempre não pressupor inocência de parte alguma, e por isso considero essa hipótese perfeitamente verossímil dada a importância, para o governo, de ter as lideranças dos principais movimentos sociais cooptadas, o que, em todo caso, é secundário, frente ao alicerce material da assimilação dos órgãos de luta mais radicais, no caso do MTST, o MCMV – Entidades.
Agradeço a leitura e o comentário!