Por Ex-trabalhador de museu
Algum tempo atrás li nesse site um relato de uma experiência de luta em um banco. Colocado esse convite à reflexão, pensei na experiência de luta no local de trabalho que tive. Nela conseguimos romper – ainda que momentaneamente – a atomização e o individualismo; coletivamente, desafiamos as estruturas de gestão. Essa experiência foi, em si, pedagógica, pois nos ensinou a lutar de maneira coletiva, a nos mobilizar, ajudou a romper preconceitos. Embora tenha tido uma curta duração, entendo que registrar essas experiências de luta concreta ajuda-nos a continuar com novas experiências de luta no local de trabalho.
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O processo de seleção foi longo e passamos duas semanas reunidos durante o dia inteiro em um local pouco acessível; as gestoras alegavam que aquele processo era formativo e que por isso estávamos com sorte. Na prática a forma de seleção inviabilizava a participação daqueles que já estavam em algum emprego e se tornou quase uma prova de resistência de um reality show, aqueles e aquelas que aguentassem até o fim do processo seriam contratados. Era um museu novo que seria inaugurado, e pretendia formar uma equipe educativa que também tivesse um espaço para a pesquisa, prometia-se uma possibilidade de participação e trabalho interessante. O grupo de educadores e educadoras formado era muito diversificado, tanto em termos ideológicos quanto em características físicas. Pessoas vindas dos mais diversos lugares da cidade das periferias, do centro, recém-formados que dividiam apartamento com colegas, recém-casados, estudantes que moravam com os pais, brancos, negras, pardos, formados nas mais diversas universidades. Eram trabalhadores ingressos há pouco tempo no mercado formal. Entre os poucos que tinham experiência política, nenhuma delas era na organização no local de trabalho.
A rotina de trabalho se mostrou – como era de se esperar – algo estafante: as salas do museu tinham narrações longas, músicas altas e luzes piscando. Éramos obrigados a ficar em pé o expediente todo, ganhávamos mal, trabalhávamos de fim de semana e feriados, ficávamos até onze dias sem folga. Esta situação não era exclusiva dos educadores, também os orientadores de público se encontravam em situação semelhante com salários ainda menores.
A partir da experiência cotidiana de exploração se formou uma forte identidade de classe, os trabalhadores e trabalhadoras percebiam a contradição entre os salários da equipe de gestão e a remuneração daqueles que faziam o museu funcionar; percebiam também o aparelhamento político do museu pela prefeitura e pelo governo do estado; além da quantidade de recursos que a Fundação Roberto Marinho geria naquele museu. Nas relações cotidianas de trabalho se formava essa percepção, voltada especificamente contra a incapacidade de gestão do educativo.
A situação teve um ponto de virada quando começaram os eventos fora do período de trabalho. Os educadores eram convocados a participar em regime de horas-extras. Porém – como a remuneração era baixa – não consideravam interessante fazer esse trabalho, e eram assediados pela chefia. No terceiro evento articularam-se informalmente e decidiram que ninguém iria trabalhar nele, após algumas tentativas de convencimento individual a gestão chamou uma reunião com todos os educadores, pressionando-os a trabalhar. O que era um sentimento em construção de identidade se tornou algo concreto, e foi decidido que se iria tomar uma posição conjunta de recusa à participação. Mesmo aqueles que tinham cedido à pressão da chefia retiraram suas disponibilidade de trabalho. Essa ação forçou a direção do museu a realizar o trabalho dos educadores durante o evento, acompanhando visitantes, explicando os conteúdos, monitorando as salas.
Foi central para essa ação coletiva funcionar, e para o enfrentamento com a diretoria manter-se firme, a participação de trabalhadores reconhecidos como competentes pelos colegas e pela instituição. Assim não se podia desclassificar a resistência como preguiça, ou incompetência individual, pois os melhores trabalhadores estavam à frente da mobilização.
Com o conflito colocado às claras, a estrutura de gestores precisou se mover. Passamos a folgar alternadamente aos fins de semana, as convocações de trabalho às segundas acabaram, a exigência dos educadores ficarem no espaço diminuíram, aumentando o tempo voltado para o desenvolvimento de pesquisas e atividades, os estagiários tiveram seu vale-refeição equiparado aos demais funcionários. Não foi esse o único movimento da direção, alguns membros da equipe educativa foram demitidos, o que deixou parte da equipe assustada, mas não deteve a insubordinação quanto à coordenadora que terminou por ser demitida.
Naquele momento a equipe celebrou como uma grande vitória. Avaliávamos que a troca do gestor implicaria numa melhora das condições de trabalho, as quais atribuíamos à incompetência da então coordenadora. Passada essa impressão inicial, fomos submetidos a um maior controle das nossas horas de trabalho e a um assédio moral constante. Este momento levou ao enfraquecimento das mobilizações, as traições e questiúnculas entre os funcionários ganharam maior espaço, as demissões que ocorreram nesse período não causaram um grande incômodo dentro da equipe. Os trabalhadores mais qualificados trataram de procurar outras opções de trabalho, com melhores remunerações e condições mais dignas de trabalho.
Como dito anteriormente, as delações no interior da equipe educativa não demoraram para aparecer. Como recompensa, foi oferecido um cargo a um dos principais delatores, em outra seção, com salário mais elevado e outros benefícios, inclusive mais dias de folga. Sua reputação logo ficou conhecida neste setor, cujos trabalhadores, em solidariedade aos demais companheiros que sofreram com as revelações deste indivíduo aos gestores, se prontificaram em não estabelecer um diálogo muito amigável com o recém-chegado. Resultado é que em poucos meses após sua “promoção”, não aguentou a rejeição de ambas as equipes e pediu para sair. Este caso exemplifica como a mobilização de outrora serviu de lição para os diversos setores em questão. Neste momento, a identificação enquanto trabalhador ultrapassou as baixas divisórias que teimavam em dividir e diminuir as ações coletivas.
Creio que, para além de algumas conquistas materiais que perduram da nossa saída ao museu, esta curta experiência serviu, dentro de suas contradições e limites, para formar parte de nossa consciência de classe e ensinar que mobilizações em torno do controle de nosso tempo de trabalho podem, sim, ser feitas.
Muito boa a iniciativa de contar as lutas, obrigado aos dois ex-trabalhadores.
Gostaria de saber se as concessões dadas no Museu foram propostas pelos trabalhadores ou se a própria coordenação se antecipou, frente ao sinal de greve.
Achei também que seria legal se o ex-trabalhador de Museu pudesse contar mais detalhes sobre o momento da “virada” (quando houve a troca da coordenação e passaram a ser submetidos a um maior controle do trabalho e assédio moral) e posterior enfraquecimento das mobilizações. Entendo se não for possível, por conta de que talvez acusaria a identidade do autor ou da experiência, ou algo assim. Só acho que seria muito bom se pudesse contar mais desse momento, afinal vinha de uma mobilização vitoriosa, não só pela demissão, mas pela melhoria de condições de trabalho, e a chegada de um gestor novo acabou aquietando os espíritos. Que medidas ele conseguiu impor sem resistência, já desde o princípio? O ex-trabalhador avalia que esse enfraquecimento se deu pela competência do novo gestor em controlar os trabalhadores com novas técnicas ou foi resultado mais da perda de fibra dos trabalhadores? (talvez medo de demissão? talvez cansaço de se rebelar? talvez cooptação ideológica e maior afinamento com a nova gestão? talvez erro tático dos trabalhadores em avaliar que a conjuntura tava mudando e que seriam prejudicados pelas novas regras que aceitavam?) Será que nessas experiências de luta em locais pequenos, com poucos trabalhadores, além do reconhecimento de pertencimento de classe o aspecto “pessoal” do adversário (de conhecer a intimidade do gestor ali no dia a dia) também fortalece e estimula os trabalhadores a dizerem não? E aí quando chega um sujeito novo acabam ficando com medo, ao invés de intensificarem ainda mais a ofensiva em busca de melhores condições? Será que a elipse descendente era inevitável pela própria forma como a luta (forma de organização e demandas) se deu, e bastará ao capital ou Estado trocar o gestor para apassivar temporariamente os trabalhadores resistentes?
Muito interessante o relato.
Vários questionamentos/curiosidades apontados no comentário do Pablo também compartilho.
Vou ressaltar algo que aparece no texto e que me parece muito importante:
“Foi central para essa ação coletiva funcionar e para o enfrentamento com a diretoria manter-se firme a participação de trabalhadores reconhecidos como competentes pelos colegas e pela instituição. Assim não se podia desclassificar a resistência como preguiça, ou incompetência individual, pois os melhores trabalhadores estavam a frente da mobilização.”
Em geral, a menos que a identidade dos trabalhadores se baseie em valores de desengajamento e repúdio ao trabalho (o que não é tão frequente), o trabalhador competente, admirado profissionalmente, que faz seu trabalho bem feito se torna mais facilmente uma referência aos outros, e seu engajamento ou mesmo iniciativa nas lutas se torna muito importante, tanto para trazer confiança e fazer outros trabalhadores se engajarem, para trazer legitimidade (como aponta o texto) e também como forma de pressão ao patrão, tanto moral quanto econômica.
Por fim, creio que não é a forma de seleção do Museu que lembra um reality show, mas os reality shows que reproduzem as estruturas de seleção/eliminação do “mundo do trabalho” contemporâneo, como bem mostra Silvia Viana no livro “Rituais de Sofrimento”. Mas entendo que para efeitos de descrição de modo que o leitor captasse a forma do processo de seleção a analogia foi feita no sentido que foi feita.
Pablo,
As mudanças implementadas foram propostas, não exatamente em uma negociação formal, pelas pessoas que trabalhavam no museu, parte delas veio de pessoas que já tinham trabalhado em outros museus.
Quando a coordenadora foi demitida já estávamos bastante cansados da rotina de trabalho; devido a nossa inexperiência acreditavmos que o novo coordenador seria uma pessoa competente e por isso o trabalho seria melhor. Nesse sentido acho que no momento inicial ocorreu uma cooptação ideologica de nossa parte, minha inclusive.
Em verdade ele se mostrou um mega controlador que vigiava o que as pessoas faziam no computador por cima do ombro delas, que exigia a produção de relatórios, que fechou parcerias de visitação que impunham uma nova rotina de trabalho. Que incentivou a divisão entre os trabalhadores expondo alguns menos competantes, fazendo os outros voltarem-se contra eles. Pouco tempo depois transformou alguns em supervisores dos outros.
Quando percebeu-se que a troca do gestor não nos seria proveitosa passamos a buscar alternativas individuais, com empregos melhor remunerados, que não trabalhássemos aos finais de semana.