O filme conseguiu a proeza de fazer a crítica à barbárie cotidiana de um modo que escapa às teorias sociais e às práticas políticas mais quadradas: fazendo rir. Por Pablo Polese
(Não contém spoilers)
Comentando a Guerra franco-prussiana e a Comuna de Paris, Marx descreveu, visivelmente consternado, que dois comunardos parisienses já rendidos e de mãos levantadas haviam sido alvejados por soldados versalheses. Isso “é a barbárie!”, ponderou em 1871.
Numa reportagem nordestina em bar de uma periferia o jornalista narra indignado, ao vivo, que há mais de meia hora o homem ao chão está agonizando, vítima de um tiro, e nem a ambulância nem a polícia chegou ainda para socorrê-lo. Nisso um dos clientes do bar sai do balcão, tira uma arma da cintura e atira na cabeça do rapaz ao chão, “terminando o serviço”. O repórter perde a fala e corre, em choque.
Século 21. Beijo entre duas mulheres, transmitido em rede nacional, causa revolta.
Rio de Janeiro, alguma favela “pacificada” pelas UPPs. Uma criança de 10 anos atirada ao chão, com a cabeça aberta por um tiro de fuzil, e uma quantidade imensa de sangue. Moradores, e provavelmente familiares da criança, gritam e gritam e gritam num tom que só se reconhece ser de um ser humano porque vem entremeado de “covardes!” “assassinos!”.
São Paulo, nove da noite. Um grupo de 8 amigos na faixa dos 30 anos se reúne, dessa vez mais tarde que de costume porque o trânsito estava “ainda pior” em decorrência do fechamento de algumas vias da capital por policiais. “Não sei se era manifestação, ouvi um cara falando que a polícia matou 3 moleques lá na quebrada, acho que zona sul, sul mesmo, e aí o povo se revoltou e ateou fogo em um ônibus”. “Lester, você como vampiro no quarto grau evolutivo devia saber que tem uma responsabilidade inescapável de chegar pontualmente aos encontros do clã, sob pena de ter retardada sua evolução, como consequência da perda de respeito entre os vampiros e metamorfos principiantes”. “Ah, achei que não tinha começado ainda. Perdoa-me óh, vampiro original, rogo-lhe que me dê outra chance de mostrar meu valor”.
Uma jovem passeia pelas ruas quando dois rapazes a abordam, perguntando se ela é prostituta. Diante da recusa, respondem que se não é prostituta então não vai cobrar. Então a levam para um canto e a violentam. Um grupo de pessoas passa perto e percebe o que está havendo, mas optam por não se intrometer para não acabar “sobrando pra eles”. Depois a jovem toma um táxi e corre até uma delegacia. O motorista cobra a corrida, mesmo depois de ela contar o ocorrido, meio fora de si. Na delegacia o policial, depois de tê-la olhado de cima abaixo e ouvido a denúncia, diz com a boca de lado “mas também, né, com essa roupa”.
Alemanha, 1945. Mais de 2 milhões de mulheres alemãs de 8 a 80 anos são estupradas pelos exércitos aliados logo após a vitória contra o exército nazista. É “espólio de guerra”, justificavam.
O horror.
O horror.
E que fazer com tanto horror? Fingir que a barbárie não existe muitas vezes não dá, pois ela se escancara qual pedra no sapato, nos semáforos e horas de trânsito e vida desperdiçada, nas cidades onde vivemos, que não funcionam, mas onde seguimos vivendo ou tentando viver, mesmo sabendo que o grau de “comunidade” é tal que, quando estamos fora de casa, sabemos que é quase impossível usar um banheiro sem ter que pagar, por exemplo. Na selva social onde vivemos os locais de trabalho são locais de rituais de sacrifício, onde nos esfoliamos das 6 às 18h30 com um sorriso no rosto que sequer nos incomoda. Não bastasse a hostilidade das ruas e do trabalho, até dentro de nossas casas, ela, a barbárie, mostra suas garras, quando nos maltratamos entre aqueles que mais queremos bem. Essa selvageria tipicamente humana se tornou pra nós algo cotidiano, que só não percebe quem prefere as fantasias ou quem já nasceu tão imerso nela que sequer tem um referencial utópico de outro mundo possível. Tem razão o Marildo Menegat quando diz que “no capitalismo da atualidade da barbárie, marcado pelas ruínas das derrotas das revoluções, a exclusão de milhões de seres humanos da esfera do mundo social cria formas de sociabilidade em decomposição, como o desemprego estrutural e a criminalidade, por exemplo, que, definitivamente, não podem ser vistos como uma anomia”. E mais à frente: “desse homem sobrevivido, assujeitado em torno dos tormentos do aumento vertiginoso do poder das mercadorias sobre sua livre escolha, temos ao final um ser adaptado às formas germinais da barbárie”.
Vejam só, um ser adaptado, acomodado ao horror. Se o horror já é algo por si mesmo medonho, estar adaptado a ele é algo como o inferno. Se antes da barbárie se espraiar por tudo lutávamos por um mundo de igualdade e liberdade, hoje parece que junto com a noção de progresso a pauta das lutas recuou a ponto de termos que lutar por um mundo menos selvagem, um mundo onde alguns dos relatos acima sejam puramente histórias de ficção voltadas para aqueles que curtem o terror e o suspense como gêneros literários. Mas enquanto ela for real, enquanto essa barbárie se impor ferreamente, ignorá-la não será uma opção. Como lidar com ela, então, principalmente se sabemos que as causas são sociais e de âmbito macroestrutural? Enquanto os lutadores sociais se digladiam em lutas fratricidas em torno de quem dirige a luta e até mesmo de quem pode ou não lutar contra alguma dessas inúmeras barbaridades contra as quais tentamos nos rebelar coletivamente, a arte parece nos oferecer alguma resposta de tipo distinto. Ópios, édens e analgésicos? Um sopro de oxigênio, enquanto temos nos afogado? E por que não? Não é porque o mundo está desmoronando que estamos impedidos de ter algum prazer aqui e ali, nas brechas que encontramos para a aliviar a pressão de ter tanto a fazer. O contrário seria confundir nossa tarefa histórica de reagir à podridão com algum tipo de moralismo cristão que nos impede de fazer (ou tentar) isso da melhor forma possível. Além disso, a selvageria retratada comicamente em Relatos Selvagens é uma selvageria light se comparada ao patamar avançado de barbárie em que nos encontramos. Embora todos nós nos reconheçamos nas histórias do filme, a selvageria ali retratada é mais comum ao sujeito de classe média, e até por isso foi possível narrar os relatos selvagens de modo cômico, e de um cômico que funcionou. Muito se tem falado sobre as exportações brasileiras, não as de minério de ferro e soja, mas as exportações de formas de gestão da barbárie em que o Brasil aparece como modelo “que deu certo” a ser seguido, como por exemplo as técnicas de militarização da vida cotidiana a la UPPs, ou mesmo as técnicas de ampla participação social das massas em mecanismos de responsabilidade social e “mobilização total” onde a classe atua e participa e decide o tempo todo, questões que sempre levam ao aprofundamento de sua dependência e atrelamento ao capital e ao governo. Me parece, então, que o Brasil, que era o país do futuro, hoje se tornou o país do presente que mostra como será o futuro daqueles países que até ontem eram o “avançado” que nos olhava como o “subdesenvolvido”. Com a inversão histórica das lentes e a reconfiguração das noções de “típico” podemos hoje, ou alguns podem, se gabar de sermos os detentores e desenvolvedores originais de uma tecnologia de ponta em matéria de gestão da crise do capital, e por isso, talvez, os relatos selvagens da Argentina – que mesmo depois de 2001 deve ainda guardar em seu DNA algo daquilo que um dia levou alguns a considerarem-na a “Europa da América do sul”, soem a alguns como narrativas de uma selvageria que não é lá tão selvagem assim, uma selvageria light, brincadeira de criança se comparada ao modelo high tech que substituiu Macunaíma por Capitão Nascimento.
Desde Aristóteles que se divide comédia e tragédia, no entanto, sem que uma e outra deixem de ter algum substrato comum. O recente filme de Damián Szifron uniu os dois gêneros com bastante competência. Não sei se o termo “tragicomédia” se aplicaria bem aqui: são relatos de tragédias, mas contadas em forma de comédia. Uma separação entre forma e conteúdo, talvez, mas com a forma enriquecendo o conteúdo, ao expressá-lo pelo avesso e de forma subversiva. Do ponto de vista técnico não é um grande filme. Tem excelentes atuações e o dedo de Almodóvar, mas cinematograficamente é um filme bastante hollywoodiano, ou seja, feito para vender e dar lucros aos investidores e, por isso, receoso e hostil a inovações e experimentalismos que possam “dar errado” e pôr a perder os lucros. Relatos Selvagens paga seu tributo à padronização tecno-estilística hollywoodiana, mas ainda assim, ah, a vitória da arte! o filme conseguiu a proeza de fazer a crítica à barbárie cotidiana de um modo que escapa às teorias sociais e às práticas políticas mais quadradas: fazendo rir. Trata-se disso, um filme trágico, crítico e cômico, tudo junto e misturado em narrativas dinâmicas, de tirar o fôlego. Poder-se-ia dizer que se trata de uma crítica sociológica levada a cabo no plano da arte cinematográfica, mas isso seria tão tedioso que não serei eu a dizê-lo, ainda mais depois de ter despertado a antipatia do leitor ao narrar aquelas histórias horríveis no começo dessa resenha.
Mais que um mero filme de comédia, Relatos Selvagens é, portanto, um filme crítico. Seu meio de crítica tem charme: com uma boa dose de humor negro, o filme faz piadas mordazes sutilestravagantemente demolidoras de algumas das opressões e das consequências nefastas de vivermos num mundo dominado pela burocratização da vida. E é justamente esse excesso de burocracia e barbárie cotidiana que torna o filme tão atraente e bem-vindo, afinal não é todo dia que podemos perceber e dar boas risadas das nossas idiossincrasias mais estúpidas. Também não é todo dia que os anacronismos e falências mais destrutivas que nossa “civilização” insiste em não enterrar, como por exemplo o casamento, o ego mesquinho (pleonasmo?) e o dinheiro como solução de todos os problemas são alvo de críticas feitas na forma prazerosa do filme de comédia (nos últimos tempos esse gênero quase se tornou sinônimo de besteirol…).
Entre um riso e outro, no entanto, é preciso que sejamos realistas. Existem limites no que toca à selvageria passível de ser narrada como comédia, sem que se recaia na banalização da barbárie e todas as formas de fascismo que tanto insistem em se entranhar na nossa vida. Infelizmente temos no Brasil, mas na Argentina também e noutros cantos também, exemplos de sobra de relatos bárbaros que fariam o velho Marx, horrorizado com uma execução feita em contexto de guerra, ter um infarto fulminante. Convenhamos: seria preciso muita habilidade cinematográfica para tirar gargalhadas de alguns dos relatos do começo dessa resenha. Não há subversão da forma que consiga reverter o sentido trágico de alguns relatos selvagens. Quando uma criança síria ergue as mãos em sinal de rendição ao confundir uma câmera fotográfica com uma arma, podemos até irrefletidamente ver nisso algo de cômico, mas não havemos de nos enganar: é sinal de que algo de muito errado está rolando por aí, todos os dias, e que talvez não baste a boa vontade de rir de nós mesmos, não é? Mas que ótimo que existe gente genial que consegue, nalguns casos (e já é muito), arrancar flores de montes de lixo, e fazer rir bem ali onde o trágico se instaurou. Ah, esses Robertos Benignis a nos tirar sorrisos salgados…
No trato artístico da selvageria light relatada pelo avesso, o filme pode não oferecer uma grande resposta ou saída para além de vagas esperanças românticas e inusitadas ao estilo “faça algo, tente diferente, já está tudo ferrado mesmo!”, mas só de fazer uma crítica bem humorada da condição humana no patamar histórico já vale o esforço e as duas horas em frente à tela. Além disso, como reclamar da falta ou da qualidade das “saídas positivas” apontadas pelo filme depois que aquele diretor grego filmou “Miss Violence”, o filme das portas trancadas?
camarada,
– questiono essa “proeza de fazer a crítica a barbárie” que atribui ao filme. Concordo em parte. Isso é verdade para quem olhe criticamente e pelo menos imagine que as coisas poderiam ser diferentes. Mas para “um ser adaptado, acomodado ao horror” – que é para onde somos empurrados – o filme pode muito bem reforçar a ideia de que a barbárie é inerente a essa raça humana. Que sempre foi assim. E sempre será. Amém.
– e descordo da citação que fez do marildo menegat de que “a exclusão de milhões de seres humanos da esfera do mundo social cria formas de sociabilidade em decomposição, como o desemprego estrutural e a criminalidade, por exemplo, que, definitivamente, não podem ser vistos como uma anomia”. Creio que é justamente ao contrário: deve-se justamente à inclusão à esfera desta sociedade.
bruno rampa,
Concordo também em parte com seu questionamento. De fato o mero fazer-nos rir não se enquadra como uma crítica de fundo, e rirmos das desgraças cotidianas pode mesmo levar à naturalização delas como algo da “essência” do Homem ou algo assim. Acho que existe esse tensionamento no filme, entre a crítica negativa e a crítica que aceita o dado como inevitável. Mas veja que pelo menos há um apelo a que “reajamos”. Ainda assim sua interpretação é boa, porque por exemplo o filme “A vida é bela” foi muito mais exitoso na crítica com tons de comédia: ali em momento algum nosso riso converge com a legitimação do nazismo. No Relatos Selvagens nosso riso às vezes legitima a selvageria como natural e incontornável.
Sobre a passagem do Marildo, não sei se entendi sua crítica. Ele fala da exclusão de milhões de pessoas do mundo “mundo social” entendido como a esfera cidadã, que tem direitos, trabalho, paga impostos e tem status etc. Essa exclusão de uma esfera legal e legítima de sociabilidade cria uma outra sociabilidade “em decomposição”, de modo que a exclusão daqueles leva à constituição de uma nova sociabilidade da barbárie, onde eles não são incluídos sequer como exército industrial de reserva, tendo, por isso, que criar suas próprias formas alternativas de sobrevivência via criminalidade, trabalho informal, etc. Mas quando Marildo diz que isso não é uma anomia da sociedade, que não é um problema marginal a ser resolvido pela atuação estatal etc., ele está, penso eu, pontuando que essa exclusão é uma forma de inclusão “do único modo possível” para esse modo de produção em crise, que por isso é incapaz de fornecer substrato civilizatório para esses milhões, que são tratados como “população sobrante”, carne barata que pode e deve ser exterminada nas periferias.