Como neutralizar essas práticas nocivas sem reforçar a lógica do punitivismo? Os movimentos da esquerda precisam urgentemente encarar a situação. Ou o MPL acaba com a prática do trashing ou o trashing acabará com o MPL. Por Ana Carla, Caribé e Luamorena

Maio de 2015

Companheiras e companheiros,

Apresentamos a nossa carta de desligamento do Tarifa Zero Salvador e, consequentemente, da Federação de Coletivos do MPL – Movimento Passe Livre.

Pretendemos com essa carta: 1) combater a prática do punitivismo e da perseguição pessoal nos meios do MPL e organizações próximas; 2) incentivar que outras pessoas vítimas deste tipo de prática realizem denúncias também públicas, ampliando o debate; e 3) problematizar a incapacidade do MPL de saltar do atual estágio de federação de grupos de afinidades para se tornar, finalmente, um movimento social. Colocamo-nos à disposição para dar continuidade a este e aos demais debates que poderão se seguir sem contudo cairmos na armadilha de fetichizar o MPL e, agora, por fora do Movimento.

Sobre a prática do trashing no Tarifa Zero Salvador

voodoo02Há um ano teve início, nos espaços do Tarifa Zero Salvador, uma prática extremamente danosa a essa e a tantas outras organizações da esquerda: o trashing. Também chamado de detonação ou assassinato de caráter, o trashing “não é desacordo; não é conflito; não é oposição. Esses são fenômenos perfeitamente comuns que, quando mutuamente entrelaçados, honesta e não excessivamente, são necessários para manter um organismo ou uma organização saudável e ativa. A detonação é uma forma particularmente cruel de assassinato de reputação que equivale a um estupro psicológico. É manipulador, desonesto e excessivo. É ocasionalmente disfarçado pela retórica do conflito honesto ou acobertado pela negação de que exista qualquer reprovação. Mas ele não é feito para expor desacordos ou resolver diferenças. É feito para desacreditar e destruir” (para melhor compreensão ver  a denúncia de Jo Freeman feita há quase quatro décadas).

Há um elemento central no trashing que merece destaque: ele necessita, para ser efetivo, que se provoque uma confusão entre o pessoal e o político. Para torná-lo visível é preciso, portanto, ir além da aparência, fazendo o esforço de separar uma coisa da outra, desvelando as regras ocultas do jogo.

O primeiro episódio em que a prática do trashing fica evidente no universo do Tarifa Zero Salvador (TZ) remonta a uma atividade de apoio do coletivo a outro movimento social. Dois companheiros consensualmente designados pelos membros do TZ para, a pedido do movimento parceiro, exercerem a função de representação, passaram a ser hostilizados por aqueles que os haviam eleito. Ao invés dos questionamentos a respeito de como ambos estavam a conduzir a representação delegada serem expostos de forma franca e politicamente debatidos, foram disseminados boatos que colocavam em xeque o caráter e a militância dos acusados. A situação causou um profundo mal-estar coletivo e foi reduzida a meros desentendimentos pessoais. Tentou-se, dentro do TZ, tratar a questão abertamente, a fim de se evitar o linchamento moral dos dois companheiros; contudo, não enfrentou-se o problema da forma que ele exigia. À época, passou despercebido que por trás dos supostos “mal entendidos” estavam escondidos conflitos políticos. Só que os “mal entendidos” passaram a ser frequentes, coincidindo os alvos naqueles que se contrapunham à burocratização e elitização do Tarifa Zero Salvador, ou seja, àqueles que através das suas ações e propostas apontavam para a perspectiva de construir o TZ enquanto movimento social. Dessa forma, a prática do trashing se tornou permanente, cada dia mais agressiva nos espaços formais e, principalmente, nos informais do Tarifa Zero Salvador.

Duas concepções em disputa: “minoria ativa” X movimento social.

Ainda em 2014, pouco tempo após ao primeiro episódio, o Tarifa Zero Salvador resolveu realizar um planejamento no qual deveria definir suas atividades estratégicas, se repensar enquanto movimento e definir sua forma de funcionamento. Naquele momento havia um leve tensionamento de fora para dentro do coletivo, realizado por pessoas que queriam se somar ao TZ mas não encontravam a oportunidade. Enquanto a maior parte do coletivo era a favor da entrada de novos militantes, havia uma parcela que defendia uma entrada mais lenta e estruturada, supostamente “qualificada”. Apesar da prática da detonação de caráter já estar em pleno curso, havia o esforço de construir consensos, sem o uso das votações, o que tornava qualquer decisão demasiadamente lenta. Por isso o planejamento se arrastou por longos meses, findando já no final do ano e quase destruindo o coletivo.

Em uma das reuniões de planejamento foi apresentada por um dos detonadores a proposta de transformar o Tarifa Zero em uma “minoria ativa”. A proposta de “minoria ativa” consistia em regras impossíveis de se seguir para a entrada e permanência de militantes, pois exigia alinhamento ideológico e teórico entre todos, estabelecia a estratificação de militantes em categorias e impunha regime de dedicação exclusiva ao coletivo. Nesse momento ficou evidente que alguns consensos já não poderiam ser alcançados.

Em resposta, foi apresentado por outro militante os “27 pontos para reestruturar o Tarifa Zero” que apontavam no sentido oposto, objetivando nos transformar em um movimento social, um instrumento da classe trabalhadora e aberto às mais diversas contribuições e concepções de luta que não fossem contraditórias aos princípios do MPL. Era uma tentativa de levar ao extremo o caráter de Frente do Movimento.

O debate político, portanto, girou em torno dessas concepções, “movimento social X minoria ativa”, e aqueles poucos que se alinharam à proposta de “minoria ativa” foram seguidamente derrotados politicamente nos espaços de debate e de deliberação do coletivo. Por mais que a proposta de “minoria ativa” corrompesse brutalmente o caráter de Frente do MPL, cravado na sua própria carta de princípios, as desavenças políticas poderiam ser levadas com muita tranquilidade e maturidade. Entretanto, impossibilitados de conduzir o debate no plano do racional, dois militantes do coletivo, com apoios esporádicos de um ou outro membro, intensificaram as práticas de detonação de caráter, focadas naqueles que tensionavam o Tarifa Zero Salvador para se tornar mais aberto (tanto a novos militantes, quanto na relação com outros movimentos sociais). O trashing, portanto, foi a prática escolhida para reverter uma derrota política.

Consequências práticas: entrave à construção da luta e conformação do TZ como grupelho

Alinhada à proposta de “minoria ativa”, e pautada na construção demagógica e moralista de espaços militantes, houve todo o esforço por parte da dupla agressora de impor um ambiente no qual os laços de amizade se sobreporiam aos debates políticos, ideológicos e estratégicos. É importante frisar que esse tipo de conversão, que coloca a política subordinada aos afetos, personalizando a política, é a mesma que transforma movimentos sociais em comunidades herméticas e é amplamente respaldado em referenciais teóricos pós-estruturalistas (hoje hegemônicos dentro da esquerda no geral e de forma muito mais intensa na extrema esquerda). É essa a dinâmica que querem impor ao Tarifa Zero Salvador: restringir o coletivo a um grupelho, algo completamente antagônico a um movimento social ou a uma organização que se propõe ser um instrumento da classe trabalhadora. Os grupelhos funcionam por afinidade pessoal e, no caso do TZ, a crítica aberta e os debates políticos terminavam antes de começar, censurados por consequência dos ataques pessoais.

voodoo01Ressentida com o coletivo ante as sucessivas derrotas políticas, a dupla iniciou dois movimentos: 1) boicotar todas as atividades estratégicas duramente pactuadas; e 2) baixar o moral do grupo sempre quando possível. Chegaram a avaliar negativamente o maior ato de rua que fizemos em um contexto totalmente desfavorável; da mesma forma procederam quando iniciamos a articulação nacional para criar a Campanha Contra a Tarifa; por último, fizeram de tudo para inviabilizar a construção de laços de confiança com outros movimentos sociais. Apesar de, vale frisar, não terem participado destas atividades, boicotando-as, a crítica da dupla foi respeitada em absoluto e pôde ser repetida quantas vezes ela achou oportuna fazê-la.

Percebendo as limitações das duas táticas utilizadas (sucessivas derrotas políticas, a despeito do sucesso em atravancar a construção da luta através do TZ) houve um incremento: os detonadores passaram a migrar confusamente de posições ainda que, na prática, o boicote ao crescimento do Tarifa Zero Salvador persistisse. Passaram a questionar a “burocracia” do Estatuto de Entrada, mesmo sendo eles a inviabilizar a todo momento a entrada de novos militantes; começaram a defender atividades em comunidades, quando sempre se colocaram contra o trabalho de base junto aos trabalhadores; etc. Concluímos, portanto, que o objetivo sempre foi o de conter o crescimento do Tarifa Zero Salvador, deixando como única opção ser um grupo de afinidades, um clubinho de amigos, uma “minoria ativa”.

Da importância do campo libertário enfrentar o trashing “de frente”

Por último, e apesar de a nossa saída ser motivada pelos ataques pessoais constantes da dupla de agressores e dos seus poucos apoiadores, bem como pela consequente tentativa de imobilizar o coletivo com práticas que mascaram as divergências políticas e impedem o avanço da construção real da luta, não podemos deixar de referir a incapacidade do Tarifa Zero Salvador em particular, e da esquerda dita libertária no geral, de enfrentar essas questões sem se valer das armas dos próprios agressores, ou seja, a violência verbal e o linchamento moral. Como neutralizar essas práticas nocivas sem reforçar a lógica do punitivismo? Os movimentos da esquerda precisam urgentemente encarar a situação. Ou o MPL acaba com a prática do trashing ou o trashing acabará com o MPL.

Nos colocamos à disposição do Tarifa Zero Salvador e dos demais coletivos do MPL. Nos desculpamos se fomos duros em demasia, antipáticos ou omissos em algumas situações. Se defendemos nossas posições ou fizemos críticas políticas de forma desproporcional, jamais visamos agredir pessoalmente a alguém, muito menos anular o companheiro ou companheira. E se hoje saímos é porque temos a certeza que a maioria dos militantes do Tarifa Zero Salvador que permanece na organização tem clareza disso. Às pessoas que identificaram o absurdo que se passava e não permitiram o nosso total isolamento só agora podemos deixar nosso agradecimento. Tomamos emprestadas as palavras de Benedetti (as nossas não são suficientes):

“Você sabe que pode contar comigo (…) Se outras vezes me encontrar impaciente, sem motivo, não pense que diminuiu o meu amor (…) Mas façamos um trato, também quero contar com você. É tão lindo saber que você existe”. Soma e segue.

Por uma vida sem catracas e linchamentos!

Ana Carla Farias
Daniel Caribé
Luamorena Leoni

voodoo-dolls-wallpaper

13 COMENTÁRIOS

  1. Uma coisa que eu não entendi, porque nomear a estratégia do grupo que permaneceu de “minoria ativa”? O grupo usava esse conceito? Se usava, ao meu ver usava de maneira incorreta (se recorremos a tese de minoria ativa de Bakunin, dando nome aos bois), já que a tese da minoria ativa pressupõe exatamente, o que o grupo que saiu (dissidente) defendeu.

    Se não usava, qual o interesse em colar esse rótulo no grupo que defendia a tese do grupo de afinidade que permaneceu?

    Aliás, grupo de afinidade e minoria ativa são conceitos completamente estanques.

  2. Sim, Leonardo, quando foi apresentada essa proposta de restringir o Tarifa Zero Salvador, o termo usado foi o de “minoria ativa”. Por isso ele vem entre aspas no texto. Se existe uma contradição ela não é nossa.

  3. O próprio texto faz essa confusão/associação entre “minoria ativa”, grupo de afinidade e práticas escrotas. Por exemplo, nesta parte aqui:

    “Concluímos, portanto, que o objetivo sempre foi o de conter o crescimento do Tarifa Zero Salvador, deixando como única opção ser um grupo de afinidades, um clubinho de amigos, uma “minoria ativa”.”

    É preciso tomar cuidado com isso, pois a noção de minoria ativa e de grupo de afinidades são distintas. Porém, todas elas implicam em reflexões teóricas honestas sobre formas de organização para o enfrentamento do capitalismo. Já o trashing pode existir nestas duas formas de organização e em outras consideradas mais abertas.

  4. Rafael, pelo que entendi, o texto usa “minoria ativa” porque esse era o termo usado pelos detratores naquele movimento. Então não aparece sendo aplicado como um conceito preciso, mas como uma citação do que o outro setor falava – deve ser até por isso que aparece entre aspas, não?

    E tu falou uma coisa que eu concordo: o trashing (ou: métodos de queimação, que já aconteciam desde antes esse nome inglês aparecer no texto do Jo Freeman) não é próprio de nenhum tipo de organização, pode acontecer em qualquer lugar. Mas penso que organizações fechadas e pautadas por vínculos de afinidade pessoais ou de identidades mais abstratas estão muito mais propícias a esse tipo de problema. Enquanto em organizações mais amplas, abertas e orientadas por problemas concretos, esse tipo de prática encontrará um solo menos fértil.

  5. Rafael Saddi, minha dúvida é justamente essa. Ao confundir (propositadamente?) o termo minoria ativa e trashing, os autores insinuam que os defensores de tal conceito bakuniniano (anarquistas de determinada corrente não?) se comportam politicamente como os que permaneceram no tal movimento.

    Ao meu ver isso é problemático e gera confucionismo (para ser brando na análise), me desculpe a franqueza. Se eles são de uma organização que defende abertamente tal conceito, se deve dar nome aos bois e cobrar tal organização. Se não são creio que os dissidentes que saíram de tal movimento social, poderiam ser mais transparentes e não associar a prática que condenam a determinada corrente.

    Quem não conhece a composição interna do movimento (como eu e muitos outros leitores)associa logo os que permaneceram aos que defendem a tese da minoria ativa aos que permaneceram em tal movimento social.

    Coerência nas críticas é fundamental para não incorrer nos mesmos erros que se diz combater (trashing por tabela, atingindo determinadas organizações).

  6. Leonardo,

    Eu não conheço a composição interna do movimento e não fiz nenhuma associação direta entre os que defendem a tese da minoria ativa e os que permaneceram no movimento. O uso em aspas do termo me parece claro. Se foi isso que foi dito, é isso que precisa ser relatado. Se os que disseram são legítimos representantes da “tese da minoria ativa”, isso é um problema menor, penso eu, dentro do quadro que a carta apresenta. Espanta-me é o preciosismo tacanho em se resumir a discussão a esse ponto específico, quando a carta aponta para práticas tão mais relevantes para o rumo dos movimentos sociais.

    Mais absurda ainda me parece a “análise” de que o escrito cria uma identificação automática em a “tese da minoria ativa” e o trashing; isso sim me parece falta de franqueza ou um defensismo por demais exagerado e precipitado que acaba por deixar o rabo de fora.

    Aliás, que é a tal “tese da minoria ativa”?
    Às vezes nós ficamos tão embrenhado em nossos círculos sociais restritos, sem qualquer relevância política e social, que acabamos achando que eles são amostragens fiéis do mundo. Assim, passamos a achar que o dialeto que falamos é uma linguagem universal. A preocupação minúscula com uso do termo, enquanto o mundo ao redor está em pleno desabamente, só comprova uma questão levantada pela carta, a dificuldade de superar a condição de grupo de afinidade para se tornar movimento social.

  7. Tem se tornado recorrente neste site a redução dos debates a questionamentos banais sobre os sentidos das palavras. Aconteceu o mesmo no primeiro artigo da série sobre a autonomia, enquanto nos demais artigos os comentários foram quase inexistentes. Isso significa que as pessoas no meio militante não estão interessadas em debater o que realmente importa. Aliás, como até agora o MPL não compareceu em peso ao debate, começo a ficar apreensivo com o estado a que parece ter chegado a federação.

  8. Hegel dixit: A VERDADE NÃO É EXATA…
    Na série (I a VI) de artigos intitulada Reflexões sobre a autonomia, tivemos o seguinte quantitativo de comentários: I 21, II 23, III zer0, IV zer0, V zer0 e VI 2.
    Descontado o artigo II, que, com 23 comentários, superou o I (com 21, respectivamente), a crítica de Fagner Enrique está numericamente exata.
    Aliás, crítica que faço minha, como autocrítica, nos artigos III, IV e V – todos sem comentários; inclusive, de Fagner Enrique…
    Quanto ao restante do comentário, concordo com Fagner Enrique.

  9. Fagner,

    não posso falar por outras experiências, mas no coletivo do mpl de que participo a carta dos que saíram do TZ-SSA está sendo lida e debatida em suas questões. O foco foi mais em apreender o conteúdo da carta que em responder-lo rapido – de forma talvez precipitada.

    Pessoalmente não sei se o forum pro debate desta carta por parte dos militantes do MPL seja este aqui. A carta foi publicada no passapalavra, segundo entendo, pelo seu caráter público e aberto. Isso não quer dizer, necessariamente, que a organização à qual a carta se refere deva discutir seus termos aqui, né?

    Saudações
    Paíque

  10. Parece que não sei! Podem até estar discutindo por aí, mas que aqui a preocupação foi em marcar posição, ah, isso aconteceu e da forma mais bobinha possível.

    E isso por si só é sintomático, pois é certa conduta e compreensão primitiva das coisas que leva as pessoas ao trashing ao invés do debate político aberto.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here