O projeto de partido revolucionário foi “atropelado” pelo projeto de criação do PT como partido de massas. Atropelado quer dizer: inviabilizado. Por Ex-Militante
A organização política era de tipo bolchevique, ou seja, orientada para a constituição e consolidação de uma “vanguarda revolucionária”. Por isso, a forma organizativa e vida partidária se diferenciava bastante: (1) da organização de tipo “partido de massas”, do início do PT; (2) do “partido burocratizado de quadros profissionalizados”, em que o PT se tornou e que o fez similar ao restante do quadro partidário; (3) dos coletivos anarquistas atuais, dos quais praticamente nada sei.
No período que conheci, essa organização conheceu três estágios e formatos de organização e atuação:
1) como “organização de quadros revolucionários”, correspondendo a situação conjuntural em que a rígida disciplina revolucionária só poderia ser assumida por pequeno grupo muito coeso (sob pena de se esfacelar). Mas, de dezenas, chegou a ter cerca de 700 militantes no período (de 1976 a 1978/79).
2) como projeto de “partido revolucionário”, de 1978/79 a 1981, quando se considerava que a disciplina revolucionária poderia ser assumida por contingente suficiente para disputar a liderança do “ascenso das massas” (a partir de 1978) e procurar deflagrar um processo revolucionário. Havia meta de chegar a 5 mil militantes. Claro, a organização de quadros não conseguiu se constituir em partido revolucionário. Basicamente, foi atropelada pelo lançamento do PT como partido de massas.
3) como “tendência revolucionária” no interior do PT (caracterizado pela organização como partido classista democrático e de massas), a partir de 1981, procurando disputar a direção do PT e conduzi-lo a curso revolucionário.
Estágio 1: Organização de quadros revolucionários
A entrada na organização política
A estrutura formal (básica)
A elaboração política
O dissenso político
Exclusões, expulsões e saída
A segurança
Sustentação financeira
Cotidiano militante
Tendências sindicais e estudantis
Atuação política
A entrada na organização política : mecanismos de cooptação e integração (ou seja, seleção, estágio e formação)
1. A entrada era muito seletiva a partir de convite a pessoas que se destacavam na prática política e mediante:
1.1. Estágio probatório
1.2. Concordância formal:
1.2.1. Com estratégia geral e com princípios que regiam aspectos táticos e de interpretação de conjuntura (ex: “independência de classe” em alianças etc.). 1.2.2. Com os estatutos, que incluíam o “centralismo democrático”: livre divergência interna, discussão e decisão em âmbito interno, mas total unidade na atuação externa, com estrita observância às decisões internas.
2. O estágio probatório era de 3 meses (acho), com:
2.1. Ativismo político organizado obrigatório.
2.2. Participação em “grupos de estudos”, em que ocorriam debates para delimitação de posições (concordância ou não), mas que eram mais para formação política. Duravam todo o estágio probatório, com encontros semanais de duas horas e meia. Abordavam temas muitos amplos, teoria, história e conjuntura internacional e nacional, com textos longos e minuciosos (mais adiante, no “Apêndice”, relaciono o que lembro dos temas tratados). Os grupos, na verdade, acabavam fornecendo certa “erudição” a militantes que, via de regra, eram pouco experientes (quase todos debutando na política) e que, muitas vezes, era empregada como “argumento de autoridade” de forma pouco contextualizada.
3. A iniciativa do convite poderia ser feita por qualquer instância da organização, mas mediante acordo prévio da direção. O “grupo de estudos” era organizado por comissões especiais. O ingressante era acompanhado nele e na militância por um membro da organização e avaliado pela célula (instância inferior) a que esse membro pertencia. Mas devia ser aprovado também pela direção. Apenas após essa aprovação ele era inserido em uma célula da organização e apresentado a outros membros.
A estrutura formal (básica)
4. A estrutura da organização era “clássica”: (1) Congresso (anual); (2) Direção, com: Comitê Central (mensal) e Bureau Político (entre reuniões do Comitê); (3) Base: células; (4) Estruturas intermediárias: sempre “em árvore”, ligando células ao Comitê Central, por áreas de atuação em que houvesse muitas células. Havia também a filiação internacional da organização, reproduzindo a estrutura internacionalmente, tendo as organizações e partidos nacionais como “base”.
5. A base da organização eram as “células”: elas elegiam representantes ao Congresso, que elegia o Comitê Central e esse o Bureau Político. Mas a Direção decidia a formação de novas células (isso poderia ser instrumento de manipulação, mas não tenho notícia de que tenha ocorrido).
6. As células eram eminentemente voltadas à atuação política (i.e.: sempre coisa prática, nada de células de “discussão abstrata”). Por isso, eram constituídas por “área de intervenção”. Na época, por sindicato, categoria profissional, escola, região etc.(pois a tática era de construção aí de organizações de massa autônomas, i.e., “independentes” do Estado, Igreja e outros “patrocinadores”).
7. Todo membro da organização (mesmo os da Direção), sem exceção, pertencia a uma célula e tinha atuação em dada área de intervenção.
8. As células tinham no mínimo 3 e no máximo 7 membros, sendo um “Secretário” designado pela direção e que fazia a ligação com o restante da estrutura.
9. Na célula se abordava, permanentemente (a cada reunião), toda a política da organização, desde posições acerca da situação internacional (apoio ao Solidariedade na Polônia, por ex.) até os detalhes de intervenção na área correspondente.
10. A célula deveria detalhar a estratégia e tática geral da organização em política específica para intervenção na correspondente “área de intervenção”. E, claro, responder pelo desempenho da organização nessa área.
A elaboração política
11. A elaboração política da célula sobre a sua área de atuação era submetida pelo Secretário à Direção e tutelada por essa. Mas, nesse âmbito, a elaboração da célula era efetiva: havia discussões reais e as decisões normalmente eram consensuadas. Em grandes impasses (normalmente grandes dúvidas do que fazer), se recorria à Direção. Não me lembro, mas deve ter havido intervenções fortes da Direção.
12. A elaboração política das células sobre questões mais gerais era uma ficção. Eu me refiro à interpretação da conjuntura nacional e internacional e elaborações estratégica e tática correspondentes. Nunca presenciei uma elaboração real em célula. A elaboração real se concentrava nas direções internacional e nacional e as células apenas tomavam conhecimento, discutiam e se instrumentavam para a atuação. A presença de militantes da Direção ou mais experientes em alguma célula às vezes produzia visões críticas, mas não presenciei elaboração a partir disso no interior das células.
O dissenso político
13. O dissenso na organização era formalmente regrado. Eram proibidas práticas de discussão e elaboração não formalizadas. O dissenso de questões gerais em uma célula (mesmo que minoritário nela) podia ser comunicado à Direção e, por texto, a posição discordante seria distribuída à organização. Poderia haver o chamamento geral à formação de uma tendência, à qual membros de qualquer célula poderiam aderir. Poderiam se reunir separadamente, mas permaneciam também pertencendo à célula. E, a partir da “tendência”, intervir na célula a favor de suas posições.
14. Em tese, em questões táticas, uma tendência poderia “converter” o Comitê Central entre dois Congressos, mas nunca vi isso acontecer. As tendências normalmente tratavam de questões mais estratégicas e endereçavam suas posições ao Congresso. Havia textos com “teses” distribuídas previamente. Se o dissenso dissesse respeito a questões estratégicas ou de interpretação de princípios, os votantes das teses perdedoras eram excluídos da organização, pelo Congresso (ver abaixo sobre as exclusões).
15. Presenciei a formação e atuação de algumas tendências. Normalmente formadas em infringência às regras de formalizar as posições (ou seja, em segredo), constituindo-se formalmente depois da coisa estar bem estruturada como tendência. Via de regra, por estímulo de alguma tendência internacional (e com elaboração centralizada, nada surgido nas células), que visava “ganhar” organizações nacionais para sua posição.
Exclusões, expulsões e saída
16. A organização era regida pelo princípio leninista de que é “depurando” que se constitui uma vanguarda revolucionária. Nada de filiação ou crescimento sem consensuação política progressiva. A diversidade de opinião estratégica interna seria contraproducente, embora pudesse ser produtiva fora da organização. Se a conjuntura fosse favorável e as posições da organização se mostrassem corretas, a organização consensual cresceria. Caso não, em conjuntura desfavorável e/ou insistisse em posições incorretas, pereceria (e, de certa forma, foi mesmo o que aconteceu). As exclusões e expulsões eram os mecanismos de depuração.
17. A exclusão se aplicava ao dissenso político em questões estratégicas ou de interpretação de princípios. Não se excluía militantes por dissenso tático, pois, embora com alguma opinião contrária, ainda se situaria em campo estratégico de discussão (convergente com a estratégia). O excluído não era considerado um “inimigo”, mas apenas voz discordante em estratégia, que deveria estruturar sua atuação política em outra organização. Em suma, o excluído não mais disputaria a direção da organização e a relação dos militantes com ele seria diretamente na atuação política pública, na discussão de propostas concretas. Evidentemente, no futuro, o excluído poderia convergir novamente com a estratégia da organização (ou vice-versa) e voltar a seus quadros.
18. A expulsão se aplicava a quem violasse os estatutos da organização. Não havia expulsões por dissenso político, não poderia ocorrer por manifestação de opinião, qualquer que fosse, dentro dos canais formais. As expulsões eram sempre qualificadas, pois podiam ter motivos muito diversos. Desde um militante se atrasar mais de 10 minutos (falha de segurança) até por se descobrir ser agente infiltrado da polícia (não me recordo de ter acontecido). Era especialmente aplicável à desobediência da disciplina bolchevique, à atuação em desacordo com posições da organização, como votar numa assembleia contra a proposta da organização. Ou por construir “tendências informais”, qualificadas de “cliques”. Muitas vezes foi aplicada em relação a desvios ou deslizes de conduta que, em tese, poderiam comprometer a segurança da organização (ver abaixo sobre segurança). Esses deslizes retiravam a confiança no militante como quadro revolucionário disciplinado, muito embora pudesse ser bom formulador de políticas e mesmo pessoa de projeção política fora da organização.
19. A “saída” voluntária da organização era livre e razoavelmente aceita (deveria ser formalmente apresentada na célula). Saía quem achasse que não se adaptava ou tinha condições de continuar. Era comum a “quebra” de militantes simplesmente por não conseguirem se manter na disciplina organizacional. Em vez de quebrar a disciplina (e ser expulso), se desligava. A célula tentava dissuadi-lo etc., mas quando alguém levantava o assunto já tinha o pé fora. A célula fazia uma avaliação (que tendia a ser dogmática e irrealista) acerca das razões do desligamento.
A segurança
20. A segurança (vital em tempos de ditadura) requeria normas muito estritas. Pode-se dizer que era efetiva (nenhum membro preso, apesar de atuação cada vez mais pública). A seguir, algumas indicações sobre os pontos principais, a clandestinidade e os meios de defesa.
21. Clandestinidade total da organização:
21.1. A organização não tinha identidade nem nome público; os militantes recém-ingressos sequer sabiam o nome da organização (a chamavam simplesmente como a “ó.”)
21.2. Clandestinidade total da militância. Os militantes não podiam comunicar a pessoa alguma fora da organização que eram membros e tampouco discutir com ela assuntos da organização. Em tese, não poderiam comunicar que eram militantes nem mesmo às esposas, maridos, pais, namorados, muito menos amigos etc. (isso muitas vezes era difícil de não ser quebrado em relação à família, mas seria para protegê-los também). Toda militância pública se dava nas organizações de massa (sindicatos etc.) e em “tendências” construídas dentro delas (ver abaixo sobre isso).
21.3. Todos tinham nome de guerra e nunca eram tratados internamente pelo nome verdadeiro. Isso era obedecido e pretendia nos proteger de delação em caso de prisão e tortura, mas não era muito efetivo. Funcionava apenas em relação a quem não era da célula, pois, com o tempo, tínhamos que atuar com os demais membros da célula em âmbito público e acabávamos conhecendo todos pelo verdadeiro nome.
21.4. Todas as anotações e documentos deveriam ser destruídos (queimados) depois de lidos e discutidos (isso dava um trabalho considerável, alguns textos eram bem longos e a “queima” gerava fumaça etc.)
22. Serviço de ordem: havia um destacamento especial que zelava pela segurança de eventos internos (de Congresso, por exemplo) e, basicamente, pela defesa da organização em suas atividades externas. Boa parte, em eventos públicos e passeatas, por exemplo, contra provocadores da polícia e agressões físicas de adversários políticos (a burocracia sindical pelega e organizações estalinistas, basicamente).
23. Havia também uma série de pequenas regras e costumes relacionados à segurança, como respeito absoluto a margens de tolerância de horário em encontros, evitar cumprimentos e outras manifestações de reconhecimento em público, vocabulário interno etc.
Sustentação financeira
24. A organização era totalmente autossustentada com a contribuição mensal dos próprios militantes, proporcional à renda declarada.
25. Todas as atividades de intervenção da célula deviam ser autossustentadas (com vendas de material de declarado apoio político, em campanha, rifas sindicais), sem qualquer aporte externo.
26. O mesmo se refere às campanhas gerais nacionais e internacionais e ao jornal da organização.
27. A autossustentação financeira da organização e de cada uma de suas atividades era considerada questão de princípio para a atuação política independente.
Cotidiano militante
28. A vida militante tinha ciclo semanal, regrado pela reunião de célula.
29. A reunião de célula, normalmente fora de horário de expediente, durava duas horas e meia, com pauta e horários rígidos de começo e fim.
30. Havia pauta padrão. Se bem me lembro, compreendia, normalmente:
a. Informes
i. Assuntos gerais de organização
ii. Coleta de contribuições e contabilidade de venda de jornais etc..
iii. Novos membros, “grupos de estudo” etc.
b. Internacional
i. Análise de conjuntura
ii. Campanhas internacionais
c. Nacional
i. Análise de conjuntura
ii. Campanhas nacionais
d. Área de Intervenção
i. Análise
ii. Planejamento da intervenção
31. As reuniões eram consideradas longas, densas e extenuantes, com pouco espaço para verdadeira elaboração política. As discussões eram mais para esclarecimento. Os temas eram tratados de forma muito executiva, voltada para a organização de atividades. Havia nisso tendência ao “tarefismo”, perder-se em detalhes de execução das tarefas políticas.
32. Os militantes sempre estavam incluídos em atividades simultâneas de campanhas internacionais (manifestação contra o golpe na Polônia, por ex.), campanhas nacionais (anistia, por ex.) e da área de intervenção (fundação de associações, preparação de greves etc.)
33. O dia-a-dia militante também era denso e extenuante. Em muitos períodos, avançam sobre quase todas as horas livres. Normalmente, tinham um calendário composto semanalmente por reunião de célula, reunião da tendência da área de atuação (sindical ou estudantil), reunião das organizações sindicais ou estudantis, reunião do comitê de anistia (ou outra campanha nacional), de comitês de campanha internacional, fora os eventos públicos diversos, atividades de divulgação e venda de material e do jornal da organização) etc. Os militantes, muitas vezes, simplesmente “quebravam”.
Tendências sindicais e estudantis
34. A atuação pública da organização era apoiada na fundação de “tendências” no interior de sindicatos e no âmbito estudantil.
35. As tendências estudantis e sindicais eram a face pública da organização e assumiam enorme importância na capacidade de intervenção da organização. Estruturavam-se como “organizações políticas” nos âmbitos de atuação sindical e estudantil e se apresentavam publicamente como “corrente de opinião” sobre o movimento sindical ou estudantil.
36. A estrutura das tendências era similar à da organização. Tinham congressos, direção eleita no congresso e uma base de “núcleos” por área de intervenção similares às células. Os membros da organização clandestina “naturalmente” se constituíam em lideranças da tendência, que acabava absorvendo teses trazidas da organização. A liderança da organização era garantida pela política de cooptação para a tendência sindical ou estudantil.
37. Os membros das tendências não estavam submetidos à “disciplina bolchevique”. O convite aos membros era decidido nas células e não havia estágio probatório. Aquele que se destacava em atividade política sindical ou estudantil em conformidade à linha da organização simplesmente era convidado a integrar as reuniões de um núcleo.
38. As tendências funcionaram como “viveiros” para a cooptação de novos membros para a organização.
39. Os dissensos coletivos que presenciei nas tendências eram todos reflexo de dissensos na organização clandestina, que vinham à luz como “rachas da tendência”.
Atuação política
40. Pode-se dizer que, em curto período, na época de maior ascenso, a atuação dessa organização de quadros foi surpreendente eficiente e eficaz na constituição de uma presença militante “em bloco” decisiva em alguns setores de atuação. E, em especial, nos momentos decisivos de mobilização, foi muito efetiva. O poder de intervenção coeso garantiu que, em pouco tempo, a organização ocupasse posição destacada (ou seja, de disputa da liderança) no combate à ditadura.
41. Por outro lado, é forçoso admitir que a atuação dos militantes de base, organizada nas células, embora “trabalhosa” e dedicada, era bastante ineficiente. Pior, era ineficaz na sua constituição como lideranças “setoriais”. Carentes de experiência e prisioneiros do centralismo “democrático”, a militância tendia à atitude dogmática. Não tendo espaço para o diálogo franco e construção coletiva com os interlocutores da área de intervenção, sempre se viam em curso de isolamento e em risco de comportamento de “seita”.
42. Já a atuação dos militantes da Direção, de maneira geral, era completamente diferente. Centro da elaboração política, a Direção estava em constante interação com as demais forças políticas, com a responsabilidade de formulação. Sempre muitos passos à frente das células, a cada Congresso eram apresentadas diretrizes “surpreendentes” de adequação à conjuntura que, de forma igualmente surpreendente, eram aceitas pela maioria com bastante naturalidade (muitas vezes, com alívio até). A organização foi eficaz também na constituição dos membros da Direção como lideranças públicas e, mais ainda, como interlocutores integrados ao “mapa político” nacional de lideranças da luta contra a ditadura.
43. Por outro lado, mesmo a Direção absorvia pressões similares às das células, em virtude de ser “base” da organização internacional, com a reprodução da tendência ao alinhamento dogmático.
Estágio 2: Projeto de partido revolucionário
O fundamento do projeto e o problema organizacional
A estrutura e o acesso ao partido revolucionário
A gestão por objetivos (o que e porque)
O cotidiano da gestão por objetivos
O resultado da gestão por objetivos
O fundamento do projeto e o problema organizacional
44. O ascenso das lutas estudantis (1976 e 1977) e operárias (1978 e 1979) foi interpretado pela organização como situação pré-revolucionária convergente com a sua estratégia. E configurando as condições para a constituição de um partido: (1) “classista” (de trabalhadores), de caráter independente; e (2) revolucionário.
45. Na interpretação da organização, a situação pré-revolucionária se caracterizava pelo ascenso das lutas (1) quebrando todo controle institucional instaurado pela Ditadura e pelo Estado e (2) a despeito das forças políticas que procuravam carrear essas lutas para o âmbito institucional (ou seja, a despeito principalmente do MDB e das organizações de esquerda que aderiam a ele). A organização avaliava a situação como “pré” porque, para se tornar revolucionária, requeria ainda a formação de uma vanguarda que liderasse esse movimento das massas para o curso revolucionário.
46. O projeto de partido revolucionário era, pois, o projeto de constituir uma vanguarda suficientemente forte (em número, em coesão política e na ocupação de posições estratégicas) para disputar a liderança na situação pré-revolucionária e transformá-la em situação revolucionária.
47. Constituir a vanguarda revolucionária significava organizar uma massa de militantes bem maior sob a disciplina revolucionária, ou seja, nos quadros do centralismo democrático bolchevique. Avaliava-se que, em situação conjuntural pré-revolucionária, a rígida disciplina revolucionária poderia ser assumida por essa massa muito maior de militantes, mantendo-se a coesão da ação (posto que o próprio movimento ascencional das massas reforçaria essa coesão).
48. Assim, o problema da organização assumiu o seguinte feitio: ela tinha que converter a “organização de quadros” em “partido”, crescer rapidamente e se ajustar à nova escala de intervenção.
A estrutura e o acesso ao partido revolucionário
49. Nenhuma grande alteração organizacional foi cogitada, uma vez que se tratava de acolher uma massa maior de militantes ao mesmo funcionamento em regime de “centralismo democrático”. Permaneceram direção e células de base em sua estrutura “clássica”, com a mesma configuração, com as mesmas características básicas de funcionamento e mecanismos. Com exceção de duas alterações básicas: (1) no ingresso na organização. e (2) na adoção de mecanismos de “gestão por objetivos.” (ver abaixo)
50. Infelizmente, não me recordo bem das alterações no ingresso. Com certeza, os grupos de estudos foram bastante simplificados e as pessoas eram muito rapidamente integradas às células. A ordem era: “recrutar”, ou seja, integrar todo colaborador à disciplina do centralismo democrático. Não deu certo. As pessoas entravam na organização e saíam depois de alguns meses ou mesmo semanas.
A gestão por objetivos (o que era)
51. O fenômeno mais curioso foi a introdução de mecanismos formais de gestão por objetivos. Não tenho ideia de como isso surgiu no âmbito da Direção. Mas era apresentado até como preparação à gestão socialista com base em planejamento (por oposição à anarquia da economia de mercado).
52. Gestão por objetivos: toda atividade política passava a ter indicadores e eram estabelecidas metas (não chamávamos assim, mas simplesmente de “objetivos”) e eram apurados “resultados”. O objetivo máximo era a organização passar de cerca de 700 a 5.000 militantes. Mas havia objetivos para quase tudo. Exemplos:
● Quantidade de novos militantes
● Quantidade de simpatizantes atraídos para nossas ideias (gente com que discutíamos propostas)
● Quantidade de simpatizantes que conseguíamos levar a eventos organizados (assembleias etc.)
● Quantidade de pessoas (em geral) atraídas para eventos
● Quantidade de eventos de campanha (panfletagem realizada, colagem de cartazes etc.)
● Jornais vendidos
● Arrecadação para autossustentação das atividades
Para tudo isso havia “objetivo” e apuração de “resultados”.
53. Parece evidente que a pretensão era dotar a Direção de mecanismos mais “objetivos” de avaliação das atividades de uma organização com escala de atuação e corpo de militantes muito maior. Desconfio que seja coisa importada da seção francesa da organização internacional, que era a maior e já constituída enquanto “partido de vanguarda revolucionária”. O número mágico de 5.000 militantes também creio que foi adotado por simples bench-marking (claro que não existia essa expressão no nosso vocabulário), pois esse era o tamanho da seção francesa.
O cotidiano da gestão por objetivos:
54. O cotidiano das células passou a ser regrado por esses indicadores. O período no estabelecimento de metas variava, mas a apuração (o monitoramento) era semanal, a cada reunião de célula. Se bem me lembro, passou a ser o primeiro ponto de pauta, repassando os resultados da semana. Depois, na discussão de cada ponto, os indicadores correspondentes entravam na discussão de cada campanha, onde se traçavam objetivos para a semana vindoura.
55. A prática de indicadores foi adotada com disciplina espartano-bolchevique em todos os organismos que frequentei. Os Comitês setoriais faziam as totalizações setoriais e a vida da organização ganhava uma contabilidade política.
56. Essa contabilidade trouxe, claro, todos os desvios possíveis inerentes a esse tipo de gestão. Pode-se bem imaginar o que isso faz em uma organização com tendência ao voluntarismo e voltada a se constituir, por ato de vontade, em objetivação da vontade do proletariado.
57. Além disso, os “objetivos” (as metas mensuráveis), em muitos casos, eram estabelecidos (no total consolidado) pela Direção e informados às células sob a máxima: “é possível, portanto necessário” (sic). Outras metas, mais específicas e voltadas à atuação “de base” eram estabelecidas com maior contribuição das células.
O resultado da gestão por objetivos
58. Em breve o sistema de objetivos mostrou a que veio: explicitar a inviabilidade da constituição de tal “partido revolucionário”. As metas sistematicamente não cumpridas caíam em desmoralização e o sistema todo, rapidamente, assumiu, para os militantes de base, todo o feitio de expediente meramente burocrático.
59. Fica (hoje) evidente a inefetividade da gestão por objetivos nesse tipo de organização, que não consegue assimilar o que esse modo de gestão pode mostrar. Como havia rigidez programática e lentidão de ajuste centralizado, havia mera colheita de fracassos e desmoralização. As metas centralmente traçadas não eram verdadeiramente discutidas nas células e, via de regra, o voluntarismo da orientação inibia toda verdadeira avaliação de resultados até a Direção.
60. A organização não cresceu, apenas se aproximou de ter 1.000 militantes, absorvendo uma certa franja flutuante de militantes que entravam, quebravam e saíam.
Estágio 3: Tendência revolucionária
61. Como antes apontado, o projeto de partido revolucionário foi “atropelado” pelo projeto de criação do PT como partido de massas. Atropelado quer dizer: inviabilizado. Após ensaio experimental de participação (minha célula foi encarregada disso), a Direção decidiu pela entrada de toda a organização no PT, formando uma “tendência” no interior do partido.
62. Havia nessa decisão uma questão indecidida: se o PT teria um curso social-democrata ou poderia ser conduzido a um curso revolucionário. Optou-se inicialmente pela primeira avaliação, a mais “segura”, implicando uma política de “entrismo”. Ou seja, entrar com o fim de amealhar a vanguarda revolucionária, com vistas a abandoná-lo em momento oportuno e fundar um partido revolucionário independente.
63. Esse terceiro estágio (até onde acompanhei, 1982) não guarda muitas novidades no formato de organização e no tipo de atuação. Algo como a continuidade da política de criar tendências (do tempo da organização de quadros) tendo como campo de atuação o PT.
64. Mais adiante, a questão indecidida maturou um racha da organização. A maioria optou por dissolver a organização e atuar apenas na estrutura do PT, a minoria permanece ainda como tendência organizada no interior do PT.
Apêndice
Conteúdo (salvo engano) dos grupos de estudo (citados acima)
1. Textos (ou trechos) de teoria marxista, coisa como:
1.1. Marx e Engels, Manifesto Comunista e Salário Preço e Lucro
1.2. Lênin: Que fazer? e trechos de Imperialismo fase superior do capitalismo
1.3. Trotsky: Programa de Transição, A Revolução Permanente e trechos ilustrativos da tática de Frente Única por oposição à Frente Ampla (Para onde vai a França e Revolução e Contrarrevolução na Alemanha).
2. Capitalismo no sec. XIX e XX e interpretação do movimento operário internacional
2.1. História do movimento operário, com teses sobre anarquismo, degeneração social-democrata e burocratização estalinista, com destaque sobre papel contrarrevolucionário internacional da burocracia soviética.
2.2. Histórico das 4 Internacionais, resoluções dos 3 primeiros Congressos da III Internacional, da IV Internacional e do Comitê por sua Reconstrução.
2.3. Interpretação das guerras mundiais e caracterização do imperialismo, de estados burgueses e do papel do estado nacional e suas pretensões no contexto do imperialismo e predomínio do capital financeiro.
2.4. Caracterização de “estados operários” e daqueles então existentes (desde a União Soviética e Leste Europeu até China e Cuba) como estados burocráticos (em diversas categorias e matizes, desde a degeneração soviética até os burocratizados de origem).
2.5. Caracterização da polaridade “estalinista e imperialista” como faces da contrarrevolução. Teses pela revolução social no ocidente e revolução política nos estados operários burocratizados.
3. Textos de conjuntura internacional, em particular sobre o período então recente (lembro que destacava as crises de 68, a leste e oeste, o abandono da conversiblidade do dólar em 1971, crise do petróleo e a derrota americana no Vietnã em 75).
4. História nacional e interpretação do movimento operário no Brasil.
4.1. Caracterização do desenvolvimento “desigual e combinado” no Brasil (contra teses de traços feudais e necessidade de etapa burguesa no Brasil).
4.2. Teses sobre a ditadura, relacionada a teses sobre a inviabilidade de estabilização da democracia burguesa no Brasil.
4.3. História do sindicalismo no Brasil, desde os anarquistas, com teses sobre destruição da independência dos sindicatos pela legislação varguista, mantida desde então. Teses sobre a construção de sindicatos independentes.
4.4. Movimento operário no Brasil, desde anarquistas, fundação do PCB, Oposição de Esquerda (trotskista) desde os anos 30, rachas dos anos 50 e 60 e derrota das tendências foquistas e de guerrilha urbana.
4.5. Quadro partidário e teses contra o apoio à burguesia nacionalista e progressista e pela construção, pelos trabalhadores, de representação partidária independente.
4.6. Opção estratégica pela luta pelas liberdades democráticas com a construção de entidades independentes.
5. Conjuntura nacional, no contexto da derrota do foquismo e guerrilha urbana, vitória emedebista em 74, o aceno de abertura de Geisel e o ascenso das lutas por liberdades democráticas.
Sugiro ao ex-militante da OSI acompanhar as discussões que estão sendo feitas pelo Cemap/Interludium (Centro de estudos Mário Pedrosa refundado pelo Interludium – Reflexões Anticapitalista).
O grupo é composto por dois grupos. Ex-alunos do Vito Letízia, professor de economia política (e ex-dirigente da OSI). E por ex-militantes da Libelu.
Lançamos o livro Diálogos com Vito Letízia. Ao todo serão três volumes. Nesse livro, Vito Letizia faz um balanço extremamente crítico da OSI e do PT.
Na PUC São Paulo, a Isabel Loureiro, o Antonio Rago e o José Arbex comentaram o livro: http://cemap-interludium.org.br/2014/11/05/video-lancamento-do-livro-dialogos-com-vito-letizia-2/
Na USP, Paulo Arantes, Osvaldo Coggiola e eu: http://cemap-interludium.org.br/2014/12/01/video-debate-na-usp-lancamento-de-dialogos-com-vito-letizia/
Trechos em que Vito Letízia fala sobre a OSI em “Diálogos com Vito Letízia” (ed. Alameda):
“A OSI era uma organização trotskista que não estava preparada para fazer a revolução. Era um aparelho estéril, sem capacidade de reagir e de se ligar ao movimento de massas, vamos deixar isso claro. Tanto a OSI como a 4a Internacional inteira, o Comitê pela Reconstrução da 4a Internacional do Lambert, eram aparelhos que estavam separados das correntes principais do movimento de massas”.
“Ela não tinha capacidade de modificar o rumo das coisas. Poderia, se tivesse outra perspectiva histórica, se tivesse superado as limitações do trotskismo e tivesse capacidade de fazer uma análise do processo histórico brasileiro”.
Nakamura, Vito Letízia argumenta em algum escrito quais as “limitações do trotskismo” a serem superadas?
Danilo, agradeço sua sugestão. Vou seguir as dicas e ver o material. Gostei muito de saber que foi feito um livro com o Vito Letízia. Gostei mais mesmo foi de saber que ele teve ainda a boa companhia de vocês. Era pessoa de uma seriedade imensa e, muito possivelmente, o mais experiente e preparado de todos na OSI.
Acerca do trecho do livro, confesso que não tenho qualquer segurança de entender o comentário do Vito sobre a OSI. Na verdade, não sei ao certo o que “revolução”, dita assim depois de tanto tempo e “além de limitações do trotskismo”, quer dizer no comentário dele acerca da revolução daquele tempo. Talvez só mesmo lendo o livro, se tanto. Mas faço minha também a pergunta do Giancarlo. Grande abraço.
Oi Giancarlo e ex-militante,
Diálogos com Vito Letízia – Contradições que movem a história do Brasil e da América. Nesse livro, Vito Letízia discute o papel e os limites da OSI no processo de redemocratização do país.
A discussão sobre Trotski ficará mais clara no terceiro volume dessa coleção (que será lançado apenas no ano que vem). Ao todo gravamos mais de 100 horas de entrevistas com o Vito.
Mas para ele, o Trotski tinha várias limitações. Exemplos: 1 – Ele pedia democracia no partido, mas não fazia isso de forma clara pensando na sociedade russa (questão camponesa, militarização do trabalho etc). 2 – O Entrismo foi uma tática que Trotski defendeu na Espanha e na França. Para Vito, esse pressuposto já estava errado na época de Trotski e seguiu como uma prática no movimento trotskista.
Procurem o livro de entrevista, pois vale muito a pena, principalmente para você que conheceu a figura. Esse ano lançaremos o volume dois das entrevistas. Vito debate a Revolução Francesa e a Social Democracia. Fique de olho no site para ficar sabendo do lançamento: http://www.interludium.com.br
Vejam também a última intervenção pública do Vito antes de seu falecimento: https://www.youtube.com/watch?v=lvHUIs_q-DM