Para Teotônio, a palavra de Deus foi como um narcótico: todas as distâncias foram rompidas e o essencial realizava-se imediatamente no espaço existente entre sua alma e o mundo concreto. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros
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Água feita cerveja
– Como é que um parente tão próximo não dá nada pra comprar as bebidas? – Disse Sami enfurecida ao desligar o telefone – E você tá pego se não tiver nada no jantar!
– Fique calma que janta arrumo um monte, o importante mesmo é nosso noivado! – Redarguiu Juliandro fingindo despreocupação.
Num instante encontraram-se Teotônio, Alexandra e Juliandro juntos na pequena sala que serviria para receber os convidados. Naquele dia, por causa da data especial, as crianças estavam livres do trabalho e, por isso, os olhos felizes sorriam para Teotônio.
– Agora lascou de vez! Como vou arrumar esse almoço sem um tostão furado? – Disse Juliandro, sentando-se.
– Fique calmo que tudo se ajeita – falou mansamente Alexandra enquanto brincava de pegar o polegar com uma das menininhas do apartamento.
– Quê? Um almoço como esse não dá pra surgir assim do nada! Com uma fome de rachar e sem nada nos bolsos a única coisa que se pode assar é pombo! E vou te contar uma coisa, já vi gente o dia inteiro tentando acertar um pombo ou correndo atrás de gato e nada…
– Fique em paz, meu filho – Respondeu Teotônio – Não precisamos disso, Deus é aquele que zela por nós e nos deu razão de sobra para acreditar que tudo dará certo!
– Mas, Téo, não temos nada para comer, e menos ainda dinheiro, porque sal, farinha e açúcar na hora do aperto ajudam, agora dinheiro não surge do nada e Deus me livre ser pego pela polícia vendendo bala de novo…
– A Sami vai torcer seu pescoço se rapidinho você não se virar! – Disse Alexandra como tomada por uma resolução – Sabe o que vamos fazer? Tenho algum dinheiro aqui, vamos passar no mercado e ver o que acontece!
– Vamos que já são três horas e o zoião de Sami venceu dentro da pança!
Partiram, assim, para um desses mercados iguais a todos os outros no centro de São Paulo. Homogeneidade unidimensional é pressuposto e os mercados em nada se diferenciam. Acostuma-se a olhar a torta gelada e artificial, tal como acostuma-se a olhar para o acidente de trânsito. Quem os via, entretanto, não podia deixar de rir e olhar sobretudo para os ares de Teotônio, que mais pareciam um carvalho vivo desabrochando suas folhas.
Assim, a porta de ferro do terrível prédio fechou estrondando com um grunhido e se puseram em marcha. Esses cristãos, libertos das amarras da norma, respiravam o vento da liberdade e o ar da inocente alegria. Naquelas sujas ruas atulhadas de carros e onde fumegam os carbonos, a alegria só pode surgir do despeito que em uns é cinismo, noutros inocência. Ali a vida não é real nem imaculada. Ali se ri de todas as desgraças e as coisas mais inaceitáveis tornam-se normais; tudo está às mãos e, no entanto, tudo é distante; muitos cercam muitos e, no entanto, todos estão profundamente sós. Para Teotônio, porém, a palavra de Deus foi como um narcótico que acabou de mergulhá-lo numa alegre convicção, todas as distâncias foram rompidas e o essencial realizava-se imediatamente no espaço existente entre sua alma e o mundo concreto.
– Por cinquenta reais conseguiremos comprar bastante água! – Disse Alexandra – Tudo bem! Mas, para que comprar água? – Perguntou nervoso Juliandro – Não está entendendo… é uma questão de vida ou morte. Com a Sami a gente pode se entender, com os perrecos é que não. Se não me caso logo com ela, irão fazer ela pagar pelo resto da vida.
– O que você quer para beber? – Perguntou Alexandra como se não tivesse ouvido a lamentação de seu amigo – Sei que é necessário que beba vinho, porque assim o meu mestre poderá fazer o milagre!
– Afê! Você é brisa mesmo… eu quero cerveja, bebida em casa de pobre é cerveja ou cachaça – Redarguiu Juliandro descontente – Eu nem sei o que estou fazendo com vocês indo ao mercado. Não tenho dinheiro mesmo!
– Tem certeza que não quer vinho? – Redarguiu Alexandra – Vinho é bebida boa… o gosto a gente se acostuma com o tempo… vinho seco é gostoso! Bebi muito vinho de graça e, quer saber? Para beber vinho de graça vá em alguma inauguração de exposição! Eu tinha uma lista de lugares onde se podia comer e beber de graça! Na maioria museus… encontro de pesquisadores… sempre tinha umas bolachinhas sem graça de água e sal, chazinho e cafezinho! Às vezes faziam coquetéis também… povo estranho aquele! Tem uma cara chupada e um olhar tristonho… tem ainda o Instituto Goethe… lá tomei meu melhor vinho…
– Será possível que sua viagem não tem fim! Como você arrasta! – Disse Juliandro – Deixe toda essa história pra lá e vamos nos concentrar no que temos que fazer!
– Meu amigo, melhor gastar dinheiro com comida do que com bebida. Digo isso… não porque não goste de uma cachacinha, mas porque nosso mestre irá provavelmente fazer rios de cerveja e vinho que salvará seu casamento – Disse Alexandra e concluiu – Pensando bem, é ruim comprar comida… temos que dar outro jeito, porque eu vou logo pro deserto, e com bebida sempre se fica feliz!
– Você viaja! E que jeito se dá sem dinheiro? – Retrucou furioso Juliandro.
– Homem de pouca fé! Parece mais um Tomé! – Disse Teotônio – Pare de ficar maldizendo a vida. Parece que tudo se perdeu quando, na verdade, agora é que acabou de se achar… é sempre a mesma coisa desde a fundação dos tempos. Todos aqueles que encontram a verdade acabam por se sentir perdidos!
– É como eu dizia, mestre! Ele não serve para ser seu discípulo. O Senhor já me conhece bem e sabe se aguentar nas adversidades. Ele não sabe ser feliz no meio de tanta desgraça e, além disso, é a fé que faz o milagre. Se ele não tem, não tem jeito. Estamos duros e mesmo assim sou feliz porque tenho tu! “Nimm mir das Erbe, schließe die Wunde, das heilig ich sterbe, rein Dir gesunde![1]”
“Criar! Criar! Poder popular!”
“Lutar! Criar! Poder popular!”
– Quem ousa interferir no meu Parsifal? – Gritou raivosa Alexandra.
Poupo-vos de compreender o desconexo diálogo. Acrescento apenas o que sucedeu naquele dia: Alexandra, Juliandro e Teotônio, ao andarem perdidos em busca de preço barato, encontraram-se com o movimento pró-moradia frente à avenida Prestes Maia. Os militantes desse movimento estavam distribuídos em pares na linha de agitação; nossos heróis malucos percorreram as linhas que se distribuíam por entre apitos e bandeiras vermelhas e, como se sabe, tanto Teotônio quanto Alexandra tentavam dominar a loucura que os assaltava de modo irresistível. A marcha popular seguia indolente na certeza de suas convicções; prédio é para morar! – Essa obviedade não é comum. Atrás deles via-se a vasta extensão de carros e motos policiais que ardiam suas sirenes obscurecidas pela marcha urbano-campesina. Bueiros, calçadas, celeuma de vozes e apitos exagerados mudavam os ventos no lábaro estrelado.
Juliandro bateu com as mãos nas costas de ambos e os guiou. Saíram, assim, da avenida na direção contrária que ia a manifestação e rumaram para a vastidão enevoada de uma das travessas. Luzes amareladas dos postes já começavam a arder indicando a Juliandro que o noivado, em breve, começaria. Sob as tortuosas ruelas que se desenhavam tal qual um rabisco de um desenhista sem talento, iam nossos amigos, que com as vistas embargadas divisavam tremulantes luzes em bares e em janelas de apartamentos solitários içados aos céus. O sol se punha e os últimos raios denotavam a monstruosidade nas ruas da cidade que surgia na expressão morta-viva de rostos contorcidos. De repente, os corações de Alexandra e Juliandro se precipitaram e o riso verteu demonstrando que algo escapava da fria lógica. Os três se depararam com uma dessas vendinhas que estava milagrosamente com as portas arrombadas.
– Louvado seja Deus! – Exclamou Alexandra – Não disse a você que ele é realmente o messias! – Fez apontando para Teotônio – Quem mais arrombou essas portas senão os anjos do Senhor!?
– Vamos logo antes que venha alguém! – Exclamou Juliandro.
Filho do desprezo, este moço parecia ter uma certa dose de fé extravasada no sangue. Seu rosto exibia os tons coloridos e exaltados que impõe a ação em momentos oportunos. Como um milagre que irrompe no horizonte, as orações de agradecimento a Deus feitas por Teotônio davam um ar cômico a cena. Imagine na frente de uma loja arrombada um homem de joelhos agradecendo a Deus e terás o verdadeiro retrato daquele dia. Bem e mal, o procedimento normativo, como reza a cartilha, já não era para ele, como outrora, um objetivo de vida. Ao contrário, Teotônio era agora o Übermensch nietzschiano às avessas.
– Vamos! Vamos! Vamos encher essas caixas de papelão! – Bradou Juliandro.
– Como pode ficar assim diante do milagre? – Perguntou indignada Alexandra – Um estúpido como você não pode compreender o milagre, pois acha que o milagre é algo grandioso!
– Eu acredito mesmo que seja um milagre… mas pode virar uma desgraça se a gente não for logo, olha… eu sei o que é polícia viu! – Redarguiu Juliandro.
– Tudo bem, mas não esqueça de dizer a todos sobre esse milagre – Disse Alexandra recolhendo tudo que podia e finalizou – Chatice… eu sou uma atriz e por isso acredito em milagres, porra! O milagre é liberdade… é coisa mínima como encontrar isso! – Fez apontando para a porta arrombada.
E, assim, sem mais poder carregar nada, nossos amigos fugiram pelas ruas enevoadas e em pouco tempo estavam de volta no tenebroso apartamento.
* * *
Fora uma festa lindamente simples, embora tivesse começado com grande atraso. O almoço, que acabou virando jantar, fez a alegria das crianças e dos adultos e o estômago de Teotônio e Alexandra se curvaram ante os prazeres da carne.
– Não vim trazer paz, mas a espada! – Dizia Teotônio. As crianças e os adultos que rodeavam nosso messias, ao compreenderem, caiam na gargalhada! – Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra!
– Por que ele recita a bíblia a todo momento? – Perguntou um homem à Juliandro.
– Porque ele mesmo é o messias! – Interferiu dizendo Alexandra – Hoje mesmo fez um milagre!
– Não diga besteira! – Redarguiu o homem e saiu rindo.
– Quem achar sua vida perdê-la-á; e quem perder sua vida por amor de mim achá-la-á! – Dizia Teotônio ao que muitos choravam de tanto rir.
E, assim, se estes que ali estavam eram ignorados pelo mundo, não o eram pelo nosso herói. Talvez aquelas crianças, pela primeira vez, esqueciam-se as auguras de sua exploração e caiam na gargalhada ouvindo os ensinamentos do grande palhaço e messias. E foi nesse espírito que elas pediram a Sami que as deixassem ir com Juliandro levar Teotônio e Alexandra na rodoviária.
– Vocês são malucos, mas gostei muito de conhecer vocês! – Disse Juliandro com a voz embargada – Minha casa sempre estará aberta!
– Então Deus sempre habitará nela! Sua festa foi muito boa! Espero que seja feliz com Sami e que ela se livre desse trabalho… – Disse Teotônio, sendo interrompido por uma das meninas que lhe entregou uma rosa de papel celofane.
– Só acho que sou mais bonita que a Sami e que você devia vir com nós! – Interferiu Alexandra – Afinal no deserto é mais fácil ter liberdade que no matrimônio!
Ouviu-se:
“Passageiros com destino a Rondonópolis, favor se dirigir à plataforma 36!”.
Era nesse lugar que, segundo a revelação divina de Teotônio, existia um deserto. Nossos malucos entraram desengonçados no ônibus e partiram. E foi assim que, omitindo uma coisinha ou outra, o boato de que Teotônio transformou água em cerveja se espalhou pelos quatro cantos do mundo.
Nota
[1] Trata-se de um trecho da Ópera wagneriana Parsifal: “Retoma-me a herança, fecha a chaga, para que eu morra consagrada, pura e por Ti salva!”.