Não penso que essas revoltas podem ser detonadas de maneira voluntarista por agentes externos, como ficou amplamente demonstrado nas lutas contra o aumento da tarifa do ano passado e desse ano em Goiânia. A coisa é muito mais árdua do que a revolta popular difusa de 2013. Por Grouxo Marxista
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Todo dia mais dez, vinte minutos para chegar um alimentador. Depois, vinte a quarenta minutos para passar um ônibus lotado, que não para. Um trajeto que demorava uma hora, agora demora no mínimo uma hora e meia. Quilômetros de caminhada, depois a aventura de atravessar uma rodovia correndo.
Por cima…
Uma manhã perdida. Seis ônibus queimados. Quinze ônibus depredados. 400 pessoas em movimento, de acordo com estimativa da polícia. Oito horas de paralisação da GO-070. Seis milhões de reais de prejuízo para os cofres dos gestores públicos e privados.
Pelos lados…
Para muitos militantes da cidade, o acontecimento aparece como o ressurgimento da revolta popular, com suas características incendiárias, o resultado do sofrimento genérico do povo pobre e explorado. Para a Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC) e para o Setransp, tratou-se de “uma falha de comunicação”. De qualquer maneira, o acontecimento aparece como um raio no céu azul, sem explicação clara.
O que buscaremos aqui é ajudar a explicar esse conflito a partir de duas perspectivas:
1) a de que se estabelece uma crise das práticas usuais dos gestores do transporte coletivo na Região Metropolitana de Goiânia;
2) a de que existe uma retomada das práticas de contestação desenvolvidas pelos usuários do transporte coletivo nos últimos anos.
Essas são as condições em que urge retomar a discussão do controle popular do transporte coletivo como uma manifestação estratégica da luta proletária nesse setor econômico.
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A crise já estava anunciada em um diálogo que foi feito no dia do anúncio das mudanças nas linhas da Região Oeste, em 17 de setembro. Esse diálogo, que saiu em uma reportagem no Jornal Anhanguera é ilustrativo dos termos do conflito.
Usuária: “A proposta às vezes é boa, mas a estrutura não é. Porque o Terminal Vera Cruz, ele não tem capacidade pra agrupar todas as linhas que vão sair a partir daqui. Isso é (in)viável, isso é claro, todos os usuários sabem disso”.
Usuária: “Vai ser complicado, né. Pra pessoa não atrasar, sair cedo de casa né. Pra não chegar atrasado a opção é sair mais cedo”.
Repórter: E se mesmo saindo cedo estiver lotado aqui?
Usuária: Não, mas vai estar lotado, né? Vai ser uma bagunça”.
Diante de questionamentos dos usuários de que o Terminal iria superlotar, o Gerente Operacional da CMTC, Spiros Katapoulos, respondeu o seguinte:
Gestor: “Esse estudo é baseado em números. Em números reais da Rede (Metropolitana de Transportes Coletivos). O Terminal Padre Pelágio que hoje funciona com essa demanda. Por lá passam cerca de 60 mil usuários da Região Metropolitana, da Região Oeste e Noroeste. Nós estamos mudando o atendimento para a Região Oeste. 30 mil pessoas de 60 mil que estão sendo impactadas. Dos 30 mil, a GO-070 recebe cerca de 16 mil passageiros e 14 mil na GO-060, que é próximo à Trindade, onde o usuário está preocupado com o Terminal não atender a suposta demanda que vai iniciar a partir de sábado dia 19. Podem ficar despreocupados. Por quê? Nós tivemos um cuidado muito grande com essa questão em relação ao embarque. Como? Estendendo a linha do Eixo Anhanguera para o Terminal Vera Cruz. Na faixa das 5 horas da manhã, a cada 4 minutos terá um ônibus saindo do Terminal Vera Cruz em direção ao Centro ou Campinas. (…) Se o ônibus não passasse com a frequência definida de 4 minutos às 5h e 3 minutos às 6h, eu concordo que a demanda seria muito grande, só que eu garanto que os usuários não vão ficar mais de 3 minutos na plataforma. Se os horários forem cumpridos, a coisa funciona”.
Não se trata, como muitos multiculturalistas gostariam, do conflito entre vivências. Essa diferença de perspectiva é a expressão dos interesses antagônicos entre os grupos sociais. Enquanto os trabalhadores se interessam pela estrutura e pelo conforto, o gestor, o tecnocrata, dá a solução da intensificação do controle sobre os motoristas através do controle dos horários. Os usuários deram o alerta: “vocês estão tocando nos limites da nossa passividade”. Os gestores não se tocaram. Apostam que o limite ainda está longe. Por quê? Há algumas décadas, existe um acordo mínimo entre os trabalhadores e os empresários do setor de transportes que se chama Eixo Anhanguera. Gerido por uma empresa mista, com subsídios estatais, atravessando a região metropolitana de leste a oeste e custando metade da passagem usual, esse protótipo de BRT simboliza um pacto que diminuiu os violentos conflitos em torno da precariedade de transporte na região metropolitana. Pela diminuição efetiva do preço, muitos usuários toparam atrasar um pouco mais nos terminais de integração dos ônibus e aceitar condições às vezes ruins de utilização. Depois de 2013, no entanto, a lógica mudou. As revoltas populares do transporte causaram a queda da tarifa e a criação do programa Ganha Tempo, uma integração de três viagens que prescindia dos terminais de ônibus. Caíram dois mitos: o de que aumento da passagem era uma coisa obrigatória e de que os terminais eram o único arranjo possível para realizassem seus trajetos.
O Ganha Tempo permitiu que se conseguisse realizar os mesmos trajetos sem a espera prolongada dos terminais. Permitiu inclusive que alguns usuários compensassem seus gastos a partir da cooperação entre si, vendendo as integrações que não precisavam utilizar. O fim desse programa em dezembro de 2013 deu ensejo a uma série de revoltas populares nos terminais e bairros da cidade. Outro fator importante a se considerar foi a grande expansão da cidade nos últimos anos, com aumento da população trabalhadora e a segregação de amplos setores de trabalhadores para regiões mais afastadas da cidade.
A postura arrogante e tecnocrática dos gestores do transporte coletivo permaneceu a mesma da década passada. Os empresários e poder público não só não deram de volta o Ganha Tempo como forçaram a população a pagar adiantado as passagens e a ter mais tempo de espera em terminais de integração do que anteriormente. Primeiro se impõem mudanças baseadas em dados fornecidas pela Rede Metropolitana de Transportes Coletivos, o consórcio das empresas. Depois, se necessário, nas palavras do gestor da CMTC, se fazem os “ajustes necessários”.
A realidade de que a plataforma do terminal escolhido não é adequada, o fato de que o planejamento do trânsito não foi adequado, o fato de que o Eixo Anhanguera já chega lotado no Terminal Vera Cruz, o fato de que não há sinalização ou passarelas nas rodovias, o fato do tamanho do terminal não comportar (não comportar o quê?)…. Tudo isso fica para o ajuste posterior.
Essa miopia não se justifica apenas por incompetência. É a expressão do arranjo de classe que domina o transporte coletivo: só se levam em consideração os interesses do Setransp, entidade que só se interessa pelo máximo de passagens/passageiros por quilômetro rodado (IpK) [1]. Não se trata, ao contrário do senso comum, unicamente de entupir o mínimo de ônibus com o máximo de passageiros. Na atual forma de financiamento através da tarifação direta e centralizada pelo Setransp, os conflitos se tornam inevitáveis pelos gestores públicos (só pelos gestores públicos?) e os ajustes por cima são feitos no sentido de maximizar o IpK.
Pois é um ajuste das contas dos de baixo que os trabalhadores que utilizam os Pontos de Conexão Triunfo e Primavera colocaram em pauta na última semana.
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Ao contrário do que ocorreu logo após a derrubada da tarifa em 2013, não estamos lidando aqui com um ataque difuso às condições dos usuários de transporte coletivo, distribuída em quase todas as linhas. Aqui se trata de uma política concentrada em uma região da cidade, a Região Oeste. Algumas das linhas que foram substituídas pelos alimentadores do Eixo foram frutos de luta dos moradores recém-instalados em bairros recentes, com pouca estrutura.
De acordo com a Prefeitura de Goiânia, houve a criação de nove linhas em quinze bairros da Região Oeste. No dia do anúncio, sexta feira dia 17 de setembro, já ocorria o diálogo citado no início do texto. No sábado, dia 19, saíram notícias dos usuários confusos com as mudanças e reclamando de não terem sido consultados e, de uma hora pra outra, terem que atravessar uma rodovia movimentada. O único aviso que tiveram foi feito por agentes da CMTC panfletando sobre as mudanças depois que haviam sido anunciadas, isto é, um dia antes.
Antes de chegar aos acontecimentos de segunda-feira, seria importante fazer algumas perguntas que me surpreendem não terem sido feitas pelos militantes que celebraram a revolta popular. Perguntas que, a meu ver, são importantes para os que buscam construir lutas e não apenas aplaudir as que acontecem. Retomo para esse propósito um texto que trata sobre as condições de luta nos bairros periféricos.
A revolta só ocorreu em dois pontos. Por quê? Existe alguma forma de organização local, tal como uma associação de bairro? Existem lideranças de bairro que ajudaram a formular as reinvindicações? Quais os espaços de sociabilidade do bairro? Visto que há escassas informações e tendo em vista que são bairros recentes, desprovidos de praças construídas, quadras e escolas, o mais provável são: igrejas, botecos e os próprios ônibus que percorriam um extenso trajeto até o Terminal Pe. Pelágio.
Com a criação das novas linhas, no entanto, houve também a criação de um novo e poderoso espaço de sociabilidade entre os bairros revoltosos: os pontos de conexão na GO-070.
Vejamos, concretamente, o que significam esses Pontos de Conexão na perspectiva dos trajetos realizados:
O PC Triunfo fará a integração das novas linhas (356 – PC Triunfo/Res. São Bernardo/Res. Paineiras, 357 – PC Triunfo/Triunfo II/Res. Florença) ao Eixo Anhanguera, assim como as linhas 310 e 150, que foram ampliadas.
Já o Ponto de Conexão Cora Coralina
fará a integração das linhas 352 – PC Cora Coralina/Res. Planalto, 353 – PC Cora Coralina/Res. Paranaíba, 354 – PC Cora Coralina/ Vl. Adilair II e 355 – PC Cora Coralina/Res. Limoeiro. Já no PC Primavera, a integração será pela linha 599 – PC Primavera/Conjunto Primavera.
E aqui houve uma mudança fundamental:
A linha 354 e 355 vão realizar o atendimento ao Setor Cora Coralina, Residencial Adilair e Limoeiro, antes feito pela linha 309 – T.Pe. Pelágio/Cora Coralina [2].
Não só se estendeu o limite da tolerância dos usuários do transporte, não só se reverteu um trajeto considerado como um patamar mínimo, como também concentraram esses usuários insatisfeitos com uma questão específica no mesmo lugar, onde teriam tempo para se organizar. Somente os gestores do transporte coletivo ficariam surpresos desses trabalhadores “espontaneamente” colocarem esse tempo extra a seu próprio serviço!
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Quem ler os diversos relatos sobre os protestos vai perceber que os usuários sabiam o que estavam fazendo, sabiam o que queriam e chegaram para vencer rápida e decisivamente. O protesto aproveitou o primeiro momento de superlotação dos pontos às 5 da manhã, apostando que os Eixos Anhanguera não dariam conta da demanda. É o momento em que foram paralisados alguns ônibus e a rodovia foi paralisada com madeira e pneus.
Enquanto alguns se ocupavam com a interlocução com a polícia que chegava, outro grupo quebrou e ateou fogo a dois ônibus e afugentou na pedrada os policiais que tentaram protegê-los. O recado foi claro: queriam representantes da CMTC lá e a imprensa no local. Ninguém mais devia se aproximar. A coisa acalmou. Assim que os policiais saíram, foram queimados mais quatro ônibus. Quando voltaram com batalhões, um helicóptero se aproximou para tentar dispersar a multidão e só conseguiu dispersar a poeira e as cinzas das barricadas na população, conseguindo que outro ônibus fosse queimado. Resultado: seis milhões de prejuízo para a Metrobus e mais um tanto para as concessionárias.
Somente depois do representante da CMTC ter ido lá e recebido os gritos dos populares, é que a polícia conseguiu consensuar que se levassem alguns representantes para discutir como resolver a questão no gabinete dos gestores. Os moradores foram levados nos carros de polícia pra lá e colocaram suas reinvindicações: queriam o retorno das condições anteriores com mais ônibus, queriam também uma passarela na rodovia a médio prazo, sinaleiros e faixa de pedestre a curto prazo.
Conseguiram um acordo nas duas questões: 1) o trâmite para obtenção de condições mínimas da GO foi iniciado com o órgão responsável e 2) no horário de ida para o trabalho, das 5h às 8h, as linhas do Residencial São Bernardo/Palmares, Residencial Triunfo I e Conjunto Primavera irão diretamente para o Padre Pelágio. Já no horário de retorno de trabalho, os ônibus seguirão direto do Terminal Padre Pelágio para os bairros.
As razões para a mudança variam: ora a mudança é fruto de um acordo com o movimento, ora a alegação de que “seria impossível manter a operação diante do número menor de ônibus, agora que alguns tinham sido queimados” [3]. Trata-se de uma demonstração eloquente de como a técnica e a política muitas vezes se confundem quando estamos tratando do transporte coletivo. De qualquer maneira, tudo leva a crer que os manifestantes garantiram as condições técnicas da sua vitória parcial, assim como as políticas. Incitados a confiar nos números da rede, os trabalhadores criaram seus próprios números a partir da luta [4].
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Existe, na prática, um certo controle popular do transporte. Esse controle se dá nos limites estabelecidos para os atrasos e para os períodos “normais” de espera. A normalidade operacional do sistema de transporte coletivo funciona através de um frágil equilíbrio de poder entre usuários, trabalhadores e gestores. A política tarifária é um ponto decisivo desse equilíbrio, mas ela só é efetiva em conjunto com outros aspectos do sistema de transporte.
As revoltas populares permitem que os usuários estendam sua porção de poder nesse equilíbrio para outros limites. Esse limite novo também implica um novo exercício desse poder, isto é, novos problemas necessitam de ser formulados, e novos conhecimentos que necessitam de ser desenvolvidos. Nas revoltas de 2014, por exemplo, as lutas de terminal bem sucedidas eram aquelas que tinham formulações mais específicas: um número de ônibus específicos para tal horário, uma nova regularidade nos horários, uma mudança específica no trajeto.
As manifestações de bairro, no entanto, aparecem como as que tinham maior facilidade de terem clareza maior e, por consequência, maior eficácia no exercício do novo poder que criavam ao paralisarem parte do sistema de transporte coletivo.
Elas também aparecem como as com maior capacidade de burlar a repressão policial: diante da possibilidade de mais protestos caso a situação não fosse resolvida, o gestor militar responsável pela segurança teve que afirmar: “Nós tomaremos o terreno antes dos manifestantes”. Os que se lembram dos policiais fechando a Avenida Paulista para que não se fechasse a Avenida Paulista em 2013 não estão enganados na lembrança. Como o problema ficou resolvido parcialmente, mas teve alguma resolução, enquanto os bairros onde não houve revolta não tiveram, é possível que esse tipo de luta se propague.
Mas uma questão importante ainda fica mal resolvida: a superlotação crescente dos terminais do Eixo Anhanguera mostram que a cidade e os usuários não são mais os mesmos. Já no ano passado, em 2014, quando se estendeu o Eixo para tentar resolver as reclamações e lutas em torno do transporte coletivo, a fala de um usuário afetado já mostra os caminhos que podem ser percorridos: “De todo jeito vai ficar congestionado, só vai aumentar a extensão do percurso, facilitar para não ter que reembarcar. Mas resolver o problema do acúmulo de pessoas aqui no Eixo, nunca!”.
Uma das provas da dificuldade da questão está na forma como impuseram a utilização do novo modal ao Terminal Jd. Vera Cruz. Primeiro, o terminal não tinha o trânsito organizado para que o lado “certo” do ônibus estivesse frente à plataforma. Isso forçava uma situação de fila única em uma porta estreita, quando poderiam ser utilizadas várias portas. Por pressão dos usuários, foi instalada uma mão inglesa no Terminal. Aí, a altura não se ajustava ao Eixo. Instalaram pequenas rampas de madeira que já causaram no mínimo dois acidentes. Vai caber aos usuários, como sempre, corrigir essas distorções e fazer os reais ajustes. Mas e se os trabalhadores resolverem fazer mais do que corrigir distorções? Quais seriam as condições de uma luta articulada entre vários bairros nos terminais? Até que ponto essas lutas de usuários não culminam em uma exploração mais intensa para os motoristas através do controle mais estrito dos horários?
De que maneira e em que condições o controle popular do transporte pode passar de mecanismo de regulação da exploração da nossa mobilidade para um princípio organizador de novas condições de locomoção na cidade? A chave, penso eu, está nos mecanismos que detonam essas revoltas populares nos bairros e terminais. Essas revoltas demonstram as formas embrionárias de um futuro diferente. Não penso que essas revoltas podem ser detonadas de maneira voluntarista por agentes externos, como ficou amplamente demonstrado nas lutas contra o aumento da tarifa do ano passado e desse ano em Goiânia [5]. A coisa é muito mais árdua do que a revolta popular difusa de 2013.
A discussão aprofundada dessas lutas nos meios populares (dificilmente não se encontrará um ou dois em qualquer lugar que não tenham participado de uma revolta do tipo), uma atuação mais localizada e eficaz dos poucos grupos que buscam pautar o transporte coletivo na cidade, o auxílio a uma articulação entre os bairros revoltosos, a defesa política e jurídica dos populares que, sem dúvida sofrerão uma repressão individualizada e silenciosa. Cada uma dessas medidas faz parte de um processo que pode se ampliar para além das nossas expectativas – caso passemos das congratulações pelo espetáculo à prática, árdua e longa, da construção de relações sociais de novo tipo. E para isso, precisamos conversar com o vizinho, com o colega de ponto, com os colegas de trabalho e lembrar que uma revolta só pode ser vitoriosa, por mais brilhante que seja, se provocar outras revoltas e novas relações.
NOTAS
[1] Para melhor entendimento desse indíce, essa definição de um gestor de transporte cai bem: “Aí surgiu o indicador mágico: IPK – Índice de Passageiros por Quilômetro, que apontava, para cada linha, a quantidade de passageiros conduzidos em cada quilômetro de percurso. Vale dizer, quantos “dinheiros” se arrecadavam em cada quilômetro trafegado”. Disponível aqui: http://antp.org.br/website/noticias/ponto-de-vista/show.asp?npgCode=AB0AAE2E-332A-4DAF-8047-42B9075C8059.
[2] Disponível no site da prefeitura, aqui: http://www4.goiania.go.gov.br/portal/pagina/?pagina=noticias&s=1&tt=not&cd=7941&fn=true.
[3] Disponível em “Onibus ficam sem Reposição”, O Popular, aqui: http://www.opopular.com.br/editorias/cidades/%C3%B4nibus-ficam-sem-reposi%C3%A7%C3%A3o-1.952092.
[4] “[…] O conteúdo do orçamento não existe sem nós. Os trabalhadores não vencem porque elevamos a sua consciência de fora para dentro ou porque fazemos os patrões se sentirem mal ou assustados. Vencemos porque nossa luta revela materialmente o que os chefes sabiam o tempo todo, mas tentaram manter em segredo: que eles não são nada sem nós”. Para uma discussão crítica da questão da transparência, ver: http://www.passapalavra.info/2014/02/91156.
[5] Um exemplo foi o fracasso retumbante das manifestações simultâneas de bairros e terminais convocada pela Frente de Luta em 2014: http://www.passapalavra.info/2014/04/94251.
Um entendimento profundo e articulado sobre o significado e potencialidades das lutas e participação popular na definição, projetamento, operação e (des)tarifação dos transportes coletivos urbanos.
Me pergunto se esse tipo de revolta, relatado pelo artigo, não é uma espécie de continuação ou de consequência das revoltas do transporte (ou daquelas que tem como alvo o transporte) que acontecem há décadas e que foram especialmente fortes na última década. E se, nesse sentido, não são a extensão de algo que já explicitou sérios limites.
Explico:
Pelo que afirma o artigo, a reorganização das linhas parece ser, em Goiânia, assim como em outras cidades, uma forma de assimilação econômica da luta contra o aumento: compensa-se o prejuízo de um período sem aumento com uma racionalização dos trajetos que os torna economicamente mais eficientes. Conversando com o Lúcio, certa vez, levantamos a hipótese de que, com a reorganização, os usuários poderiam estar pagando em tempo de espera aquilo que não pagaram na tarifa. (E ainda há o ganho político, em termos de controle da circulação na cidade, de uma racionalização dos fluxos como esta).
Se for assim, a luta contra a reorganização ainda é, de alguma forma, a luta contra um aumento de tarifa, com a desvantagem da dificuldade de unificação das lutas fragmentadas pela cidade entorno desta ou daquela linha (muitas vezes fragmentadas também no tempo, nos casos em que a reorganização é implementada lenta e gradualmente). A questão que se coloca para mim, então, tem muito a ver com o trecho que considero mais interessante da carta de saída do Legume, publicada por aqui um tempo atrás: será que ao ir atrás de lutas contra os cortes de linhas ou por melhorias locais no transporte nas periferias não acabamos fugindo das novas contradições, do novo patamar colocado para a luta a partir de junho de 2013?
Alguns camaradas tem falado em uma “mudança de patamar da luta de classes” depois de junho de 2013. Nesse sentido, dizer que a experiência que deu origem ao MPL chegou ao fim pode ser dizer que ela tinha um papel importante na luta de classes em diversas cidades, levou a uma explosão decisiva e vem perdendo força – outros movimentos, outras lutas podem ter ultrapassado essa luta e se tornado mais importantes, mais potentes para o avanço da luta dos trabalhadores, que agora lida com novas contradições.
Se houve uma mudança como essa, ela me parece ser uma mudança de qualidade e não apenas de quantidade ou de intensidade: transformações na forma e no conteúdo das lutas dos trabalhadores.
Não me parece haver uma diferença qualitativa relevante em revoltas como a descrita pelo artigo. Protestos “violentos” por transporte público (ou, ainda, que tem os ônibus como alvo da revolta) sempre aconteceram: podemos olhar tanto para casos mais antigos quanto para protestos da última década, como aqueles que paravam aqui em SP a Estrada da M’Boi MIrim por melhorias no transporte em 2011 (nos quais “os usuários sabiam o que estavam fazendo, sabiam o que queriam” e se aproveitaram mais de uma vez do momento de superlotação para paralisar a via com pneus).
Contudo, pode haver uma diferença quantitativa: protestos como esses podem ter aumentado depois de junho. Encontrei números de SP e do Brasil que comprovam um aumento do número de ônibus quebrados e incendiados em 2013 e 2014 em relação aos anos anteriores (valeria a pena comparar os níveis atuais com os dados de décadas atrás, em proporção à frota total de cada ano).
Enfim, se essas revoltas e lutas na periferia mostram uma mudança de patamar da luta, é apenas num aumento de quantidade ou intensidade, e não numa mudança substancial de forma, muito menos de conteúdo. Elas me parecem muito mais o contrário: explosões ainda em busca de forma e conteúdo apropriados, ou melhor, que ainda não constituiu para si mesma sua forma e seu conteúdo.
Apostar em uma construção a partir dessas revoltas me parece ora flertar mais uma vez com a tática da “revolta popular” (“as revoltas populares permitem que os usuários estendam sua porção de poder nesse equilíbrio para outros limites” e etc.); ora flertar com um trabalho de base típico dos movimentos de periferia da década de 80 quando se tenta criticar a primeira via, como no texto que escrevi com o Caio.
E ambos já esbarraram nos seus limites. Junho explicitou muitos deles no primeiro caso; no segundo caso, serpa que é possível colocar em prática um elemento da constelação que foi dar não só no Programa Democrático Popular, mas nas ONGs e Associações de Bairro que povoam as periferias, sem colocar todo o conjunto em movimento? Isso seria bater mais uma vez nas teclas de um movimento social de base por reformas (uma reforma do transporte? Ou esta já é a própria Tarifa Zero?) , de um lado, e de uma política “onguizada”, de gestão dos conflitos sociais, por outro.
Mais do que ultrapassar uma tática, uma forma de luta, será que ultrapassar as revoltas contra o aumento não é ultrapassar também todo o conteúdo inseparável dessa forma de luta (a tarifa zero, os cortes de linhas, a luta DO transporte)? Ou, em outras palavras, será que a luta do transporte tem algum potencial relevante de mobilização e acirramento das contradições para além das revoltas contra o aumento (e todas as coisas menores ao redor delas)? E que potencial é esse? Uma potência de novas revoltas? Uma potência organizativa?
As lutas que tem ganhado mais força desde de junho, ao que me parece, estão longe das revoltas do transporte: boa parte delas, me parece, se organiza ao redor de conteúdos identitários, tanto na periferia (sobretudo ao redor da cultura) quanto na esquerda organizada. Se tem uma mudança de patamar acho que ela passa por aí, e precisamos compreender melhor esse fenômeno para entender o novo patamar da luta de classes em que estamos (pode – e me parece – ser um patamar mais conservador).
Aí a diferença quantitativa de pequenas revoltas violentas talvez possa nos ajudar: tanto ela quanto os movimentos identitários apontam para o fim da mediação das lutas pelas instituições tradições e para uma política como guerra, polarizada, seja entre brancos e negros, playboys e manos da quebrada, homens e mulheres. Uma política de inimigos, forças oponentes, e aliados (mas não companheiros e, muito menos, camaradas).