Para além da questão óbvia do ajuste fiscal, devemos também ficar atentos para o processo de privatização dos espaços e serviços públicos. Uma privatização que é muito mais complexa do que uma simples transferência de aparelhos públicos para empresas privadas, pois se trata também da imposição de uma lógica concorrencial. Por Danilo Chaves Nakamura[*]
Em outubro de 2015, o secretário da educação do estado de São Paulo, Herman Voorwald, anunciou um plano de reorganização do ensino de São Paulo. Seguindo os dados da Secretaria Estadual de Ensino (SEE), desde 1998 a rede estadual perdeu mais de 2 milhões de alunos, com uma tendência de queda de 1,3% ao ano da população em idade escolar. Diante disso, uma reorganização se tornou necessária. Com ela, o governo pretende transformar 43% das 5.108 escolas da rede em espaços de uma única faixa etária (1° a 5° ano, ou 6° a 9° ano ou, então, ensino médio) a partir de 2016. Com esse remanejo da população estudantil, 94 escolas serão fechadas para serem cedidas para a rede municipal de ensino ou serem reformadas para abertura de Etecs (Escolas Técnicas Estaduais) e Fatecs (Faculdades de Tecnologia) ou, ainda, transformadas em prédios administrativos. Ainda seguindo os argumentos do plano, as escolas que atendem uma única faixa etária apresentam um rendimento superior em relação as escolas que oferecem os três ciclos de ensino.[1]
A reorganização do ensino público não deveria ser uma surpresa. Trata-se de um plano que vem sendo elaborado há alguns anos. Em 2011 foram elaborados seis documentos, o primeiro desses, “Por uma educação de qualidade” [2], é texto que prescreve como deve se dar a inclusão de segmentos da população antes deixados à margem do processo educacional, como o Estado deve promover a melhoria da formação dos profissionais de educação, como as escolas devem organizar as propostas pedagógicas, como deve ser o domínio dos conteúdos por parte dos docentes e, por fim, como as escolas devem adotar uma gestão democrática e participativa. Depois foram apresentados dois documentos debatendo o ensino fundamental “Progressão continuada da aprendizagem no ensino fundamental organizado em três ciclos” e “Aprendizagem do aluno no ensino fundamental organizado em ciclos”.[3]
Neles se discute o ensino fundamental dividido em três ciclos, tal como a prefeitura de São Paulo fez com o Programa Mais Educação em 2014. Além disso, discute-se como deve ser a política do Estado em relação a progressão continuada, o programa de recuperação paralela e a adoção de materiais didáticos e tecnológicos para o atendimento das necessidades dos alunos no processo de ensino e aprendizagem. Dois documentos homônimos foram elaborados visando uma discussão sobre o ensino médio, “Ensino médio matriz curricular”[4]. Esses textos discutem a distribuição do número de aulas entre as disciplinas e a possibilidade dos estudantes escolherem qual a ênfase querem dar ao seu currículo no final do ciclo (a – Ênfase em linguagens, códigos e suas tecnologias; b – Ênfase em ciências da natureza, matemática e suas tecnologias; c – Ênfase em ciências humanas e suas tecnologias). Por fim, o documento VI, “Normatização de aspectos da reorganização dos ensinos fundamental e médio” [5], procura sistematizar as resoluções da reorganização. Em resumo, fica estabelecido que o fundamental continuará dividido em dois ciclos (1° a 5° ano e 6° a 9° ano) e não em três como o municipal. Ficam estabelecidos a carga horária e o número de dias letivos de cada ciclo. Propõe-se a presença de professores auxiliares para trabalhar com a recuperação continuada. E a possibilidade do aluno com dificuldade de aprendizagem integrar salas de recuperação continuada ou reprovarem, seja no ensino fundamental, seja no médio.
Como tem sido a regra em todos os programas de organização do ensino, utiliza-se nesse plano de reorganização do ensino um linguajar democrático. Valoriza-se uma rede que reajusta os salários dos docentes em negociações com os sindicatos em propostas parceladas e por meio de abonos. Visa-se uma escola que entende que o processo de aprendizagem deve respeitar a diferença dos estudantes e garantir o direito a aprendizagem e, claro, uma gestão democrática que garanta a participação da comunidade. No entanto, o que vemos é simplesmente uma adequação do discurso do governo estadual com os documentos formulados pelo Ministério da Educação, pelas instituições internacionais e pelos trabalhos acadêmicos que visam instrumentalizar e legitimar esses discursos vazios. Não existe nenhuma menção sobre como a população em idade escolar poderia ser atingida nesse plano. Não demonstra que se trata de um plano imposto de cima para baixo, que em nenhum momento debateu com os pais e responsáveis dos estudantes que também serão atingidos no momento em que os estudantes forem transferidos sem a sua vontade. Não se discute o que significa uma escola de ciclo único ter rendimentos superiores ao das escolas que oferecem os três ciclos. E tão pouco explicita como os docentes serão atingidos com as mudanças. Aqui é preciso ficar claro, com o atual remanejo de escolas, muitos professores não completarão a carga mínima de aulas na escola em que têm vínculo, deste modo, eles precisarão completar sua jornada em outras escolas. Ou seja, o governo utilizará ao máximo o trabalho dos docentes concursados, precarizando seu condição com locomoções diárias de uma escola para outra. Já os professores contratados serão dispensados e chamados somente se necessário.
Vale lembrar que entre 1995 e 1996 uma reforma parecida ocorreu no estado de São Paulo. Na ocasião, o governador Mário Covas iniciou o processo de municipalização do ensino fundamental. Foram fechadas mais de 150 escolas e tivemos a diminuição de 10.014 salas de aula [6]. Esse processo, que na ocasião passou sem nenhum tipo de resistência da população, não resultou em nenhuma melhora do ensino público. Vinte anos depois, no momento em que esse plano foi divulgado publicamente, a categoria dos professores encontrava-se desmoralizada depois de uma greve de mais de três meses de duração e sem nenhum ajuste conquistado. Não por acaso, as escolas geridas por Geraldo Alckmin enfrentam uma saída recorde de professores. Em 2015, mais de 11% dos docentes saíram da rede [7]. Tudo levava a crer que teríamos mais um programa de reorganização do ensino sem que houvesse algum tipo de resistência. Não obstante, desde o início do mês de novembro as escolas passaram a ser ocupadas pelos estudantes e movimentos sociais que lutam para que o plano de reorganização do ensino seja cancelado. Já são mais de 90 escolas ocupadas e o movimento demonstra uma ampla capacidade de organização, promovendo troca de informações entre as ocupações, atividades culturais, criando uma rede de apoio de militantes e simpatizantes em acampamentos fora das escolas, circulando vídeos e textos incentivando outras ocupações, organizando cadastro comum de voluntários para “doação” de aulas públicas etc. O movimento também conta com o apoio dos pais e responsáveis e com um amplo número de professores da rede.
O governo até o momento se demonstrou inábil para lidar com um movimento inédito no ensino secundário do estado. A repressão policial não foi capaz de acabar com nenhuma ocupação e os pedidos de reintegração têm sido suspensos pela justiça, uma vez que os alunos não estão ocupando a escola para tomar posse do espaço, mas sim para lutar por um direito social, a educação. Mas aqui é preciso ficar atento, pois um novo processo de reintegração foi julgado no dia 23 de novembro. Matérias jornalísticas tendenciosas circulam na mídia com o intuito de enfraquecer o apoio das ocupações. Quinta-feira, dia 19 de novembro a Folha de São Paulo divulgou que o governador Geraldo Alckmin cancelaria a reorganização do ensino caso as escolas fossem desocupadas. Mentira que eles tiveram que assumir publicamente.[8] Além desses expedientes, o governo tem promovido encontros nas escolas para divulgar a reorganização para as comunidades. No dia 14 de novembro, que o governo batizou como “dia E”, os pais e responsáveis dos estudantes foram convocados para serem informados da reorganização. Em muitas escolas, diretores dispensaram os professores que deveriam trabalhar para repor os dias parados da greve. O motivo da “generosidade” da gestão talvez fosse o temor de que, durante o “esclarecimento”, os professores emitissem opiniões sobre o plano e sobre a onda de ocupações. Por fim, o governo está apostando nas audiências de reconciliação, mas em nenhum momento se mostra disposto a rever o plano.
Cabe lembrar que diante de uma política educacional que – seja no âmbito federal, estadual ou municipal – entende “qualidade de ensino” a partir dos índices das avaliações externas, o movimento de ocupações das escolas entra num momento decisivo. Dias 24 e 25 de novembro está marcado o Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), prova que mede o desempenho dos estudantes da rede e serve como parâmetro para o planejamento das futuras políticas educacionais do estado. Um questionamento (boicote) a esse exame atinge – de uma só vez – os índices que dão base para as políticas educacionais, assim como a remuneração dos professores (bônus) calculada pelo rendimento da unidade escolar nesse exame.
Para um questionamento mais amplo das políticas educacionais
O principal argumento do governo de São Paulo para que as escolas sejam reorganizadas é a diminuição da população em idade escolar entre 1998 e 2015 ou, se preferirmos, a diminuição da procura por vagas nas escolas estaduais. Segundo o governo, a rede estadual de ensino atende hoje apenas 3 milhões e 800 mil estudantes. No entanto, o governo apresenta os números da população em idade escolar como se estivéssemos num país escandinavo em que a pirâmide populacional aparece invertida com o aumento da população adulta e idosa e diminuição da população jovem. Segundo o secretário, a rede perdeu mais de 2 milhões de alunos nos últimos 17 anos. Não explica que ao longo dos anos o estado perdeu uma quantidade enorme de alunos para a rede municipal de ensino. Tampouco menciona a transferência de milhares de alunos da rede pública para a rede privada de ensino.
A primeira contestação que podemos fazer é questionarmos os números apresentados pelo secretário Herman Voorwald e apresentarmos uma tendência geral na procura da população por serviços educacionais. De acordo com os dados do IBGE, a população de 0 a 19 anos, ou seja, da população que tende a procurar creches, pré-escolas e escolas, cresceu entre 1991 e 2010 (de 15.908.302 para 17.231.464). Em 2010, São Paulo tinha 12.332.765 pessoas frequentando escolas (creches, ensino básico, ensino fundamental, ensino médio e turmas de jovens e adultos). A pergunta que nos cabe fazer é: onde essas mais de 12 milhões de pessoas estavam (ou estão) matriculadas? De acordo com os dados, 9.300.861 em escolas ou creches públicas e 3.031.904 em creches ou escolas privadas.[9]
Se acompanharmos a série histórica do Censo Escolar, veremos que em 1990 a rede estadual tinha uma taxa de participação de 9% na educação infantil, a rede municipal 69,1% e a rede privada 21,9%. Em 2013, a rede estadual diminuiu sua taxa de participação para 0,1%, a rede municipal também diminuiu, embora seja a rede com maior taxa de participação, 67,1%. Já a rede particular aumentou para 32,8%. Ou seja, o Estado praticamente deixou de oferecer para a população escolas de ensino infantil e grande parte dessa demanda foi suprida por instituições privadas.
No ensino fundamental, a rede estadual tinha uma taxa de participação de 78,6% de participação em 1990. A rede municipal tinha apenas 9,3% e a particular 12,2%. Em 2013, a rede estadual diminuiu sua participação para 40,4%. Já a rede municipal e particular cresceu para 40,8% e 18,8% respectivamente. Em outras palavras existe uma tendência para a municipalização do ensino fundamental. Uma meta que está explícita no Projeto de Plano Estadual de Educação (PEE). Diz o texto enviado pelo governo para a Assembleia Legislativa: “Promover, até o final da vigência do PEE, a municipalização dos anos iniciais do Ensino Fundamental” [10]. Além disso, há uma participação crescente ao longo dos anos da rede privada nesse ciclo de ensino.
Já no ensino médio, em 1990, a rede estadual tinha uma participação de 69,8% de taxa de participação. A rede municipal 2% e a particular 28,2%. Em 2013, a participação da rede estadual aumentou para 85,7%. Já as escolas municipais e particulares diminuíram para 1,3% e 14,6% respectivamente. Mas aqui é preciso ficar atento, a taxa de participação da rede privada era mais alta nos anos 90, porque a rede estadual não conseguia atender toda a demanda. De 2002 a 2011 o número de escolas particulares de ensino médio é crescente (de 1709 para 2226) [11], embora o número de alunos permaneça estável: 282.654 em 1990, 280.843 em 2000, 248.859 em 2010, 275.975 em 2013 e 297.850 em 2014.
Se analisarmos a taxa de crescimento da população que se matricula no ensino fundamental e médio, veremos que ela sofre oscilações e não é decrescente desde 1998 como o governo afirma. No ensino fundamental a taxa é negativa de 1998 a 2004, positiva de 2005 a 2009 e negativa de 2010 a 2014. A rede estadual que em 1998 atendia 4.436.407 estudantes passa a atender apenas 2.180.111 em 2014. A rede municipal, de 1.194.819 em 1998, passa a atender 2.292.860 em 2014. E a rede privada, que atendia 763.612, passa a atender 1.026.803. No ensino médio, a taxa da população que se matricula oscila mais ainda ao longo desse recorte proposto pelo governo. Há um crescimento alto de 1998 a 2000 (14%). Depois temos uma queda em 2001. Entre 2002 e 2003 temos uma taxa positiva. De 2004 a 2007 a taxa é negativa (19,3%). Mas de 2008 até 2014 temos uma taxa positiva no crescimento de matrículas (11,3%). Em números brutos, entre 1998 e 2014, a população que procura matrícula no ensino fundamental caiu de 6.394.838 para 5.499.971 e aumentou no ensino médio de 1.918.267 para 1.927.855 [12].
De acordo com o recorte temporal proposto pelo governo, há uma diminuição de 885.279 pessoas na procura por matrículas nos dois ciclos que a rede estadual tem maior participação, fundamental e médio. Mas como podemos perceber, a rede, ao longo desses anos, perdeu milhares de alunos porque abandonou o ensino infantil, porque tem um projeto declarado de municipalização do ensino fundamental e porque assiste e incentiva a crescente participação da rede privada nos diversos ciclos. A questão populacional não justifica o fechamento das escolas, principalmente, quando o governo tem diante de si problemas históricos para resolver como: salas superlotadas, escolas sem estruturas para receber alunos com necessidades especiais, falta de vagas na rede pública de creches e pré-escolas, falta de escolas com ensino de jovens e adultos, poucas vagas em escolas técnicas, o que gera a necessidade de processos seletivos, além da melhora da qualidade do ensino. Assim, para além da questão óbvia do ajuste fiscal – justificativa discursiva em que os governos de todos os estados e municípios estão se escorando para promover um choque de gestão e cortar gastos – devemos também ficar atentos para o processo de privatização dos espaços e serviços públicos. Uma privatização que é muito mais complexa do que uma simples transferência de aparelhos públicos para empresas privadas, pois se trata também da imposição de uma lógica concorrencial e de mercado lá onde não existe mercadoria.
Com isso em mente podemos qualificar melhor esse processo, pois sabemos que a municipalização do ensino fundamental abriu espaço para um processo de privatização do ensino. Em 2011, por exemplo, 44% dos municípios do estado de São Paulo (282 dos 644) já utilizavam sistemas apostilados de ensino. Dentre eles, 115 abandonaram totalmente os livros distribuídos pelo PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) [13], que, diga-se de passagem, é outra forma de garantir lucros exorbitantes para as editoras. Trata-se de um programa instituído no governo FHC e imposto pelo Banco Mundial como chantagem para liberação de empréstimos. A adoção dos sistemas apostilados de ensino também é um argumento central quando o tema é melhoria dos indicadores da educação. O sistema Name (Núcleo de Apoio à Municipalização do Ensino), da Pearson Brasil, é considerado o grande responsável para que uma escola do município de Cajuru alcançasse o primeiro lugar no ranking do Ideb em 2009 [14]. Assim, diversos grupos como Santillana, Anglo e Abril passaram a disputar a preferência das secretarias municipais de ensino.
A municipalização também abriu margem para o maior número de parcerias entre empresas e o setor público na contratação de educadores e funcionários das escolas e creches. Para termos uma ideia, 73% das 1.624 creches da prefeitura de São Paulo são conveniadas, ou seja, terceirizam professores (que é a atividade fim de uma escola, portanto, algo proibido por lei) e fazem convênios com mais de 700 ONGs [15]. Esse processo de parcerias fica mais claro quando o Estado passa a promover o tão comemorado ensino integral (algo que também está previsto no ensino municipal com o Programa Mais Educação) [16]. Visa o Plano Estadual de Educação de forma aberta: “Estimular, em regime de colaboração, a apropriação dos espaços e equipamentos públicos e privados, articulando ações entre estes e as escolas, de forma a viabilizar a extensão do tempo de permanência do aluno em atividades correlacionadas ao currículo” [17].
Somados a esse processo de utilização de recursos públicos para fins privados na educação municipal, temos uma expansão crescente de cursos de formação para professores, que a partir do momento que entram na rede pública são “convencidos” a aceitar que sua formação é ruim e que, portanto, devem estar em constante processo de formação. Isso se torna um processo quase obrigatório para que o professor consiga evoluir no plano de carreira. Assim diversas universidades privadas passam a oferecem, por exemplo, pós-graduações de seis meses para que o professor consiga aumentos salariais e progrida na evolução funcional.
Em resumo, para além do crescimento do número de escolas privadas e do crescimento do número de alunos nessas instituições que oferecem serviços educacionais pagos, que são favorecidas pelo processo de sucateamento do ensino público, precisamos ficar atento para outras formas de privatização. Programa de livros didáticos, adoção de sistemas apostilados por municípios, contratação de ONGs e empresas em convênios público-privados, programas de formação continuada para professores e outros, tudo isso é um terreno fértil para a transferência de recursos públicos para empresas privadas. Soma-se a isso um tipo de racionalidade na gestão das redes públicas de ensino. Por meio de técnicas e regras banais como as avaliações externas e as premiações correspondentes na remuneração dos docentes, criou-se nas escolas, o que sociólogos como P. Dardot e C. Laval chamam de “mercado sem mercadorias”. Essas técnicas de gestão difundem uma lógica concorrencial e uniformizam as esferas públicas e privadas [18]. Uma razão que demonstra como o neoliberalismo é algo difundido pela sociedade e vai muito além das denunciadas privatizações de estatais.
Pro dia nascer feliz?
Se fizermos uma leitura crítica do processo de sucateamento do ensino público e do fortalecimento das mais diversas formas de privatização, perceberemos que a imagem de uma escola sem projeto educacional, sem objetivos e conteúdos não é simplesmente sintoma de uma crise terminal da educação pública, pois isso demonstra também uma perfeita sintonia com as demandas do mercado.
Caos programado ou desastre estratégico? Como o documentário Pro dia nascer feliz demonstra através de imagens e depoimentos, as angústias e os sofrimentos dos professores e estudantes da rede pública são de tal ordem que não sabemos mais distinguir o que é acidental e o que é substancial na proliferação de casos de frustração e desengano nas escolas. De um ponto de vista mais estrutural, temos dificuldades de apontar como os debates sobre ensino integral, reformas curriculares, formação continuada de professores, progressão continuada e adoção de avaliações para medir a qualidade do ensino, por exemplo, são constantemente feitos com objetivos estratégicos de uma racionalidade econômica que precisa gerir a população e não com objetivos pedagógicos.
Nesse sentido, temos, de um lado, uma massa empobrecida de crianças e jovens que recebem uma educação rebaixada – com promessas de intervenções pedagógicas a partir produtos culturais que são aqueles já consumidos pelos jovens fora das instituições de ensino, mas que são vendidos como “direito do aluno”, “pedagogia humanista e democrática” ou, se preferirem, uma suposta “teoria freiriana” que sabe dialogar com a realidade e a linguagem da comunidade – que transforma os educandos em “protagonistas” de ações já enquadradas e pré-elaboradas pelo poder estabelecido. Na outra ponta, uma massa de professores que convive com a humilhação social causada pela completa desautorização da condição de docente e que também é alvo de políticas educacionais que os transformam em objetos e não em sujeitos do ensino.
Poderíamos chamar isso de desastre ou acidente, quando temos diante de nós uma sociedade salarial que rifa uma parcela sempre crescente da sociedade para a margem, ao mesmo tempo em que seleciona uma pequena franja de vencedores? As escolas não estariam cumprindo o papel de fazer essa seleção? Enfim, diante desse cenário, podemos ver a atual onda de ocupações de escolas de duas maneiras. A primeira seria a de perceber que se trata de um movimento reativo, que parece estar longe de pensar todo esse processo. Tudo voltará à “normalidade” caso o governador cancele o plano de reorganização do ensino. No entanto, uma segunda maneira seria a de entender as ocupações como uma espécie de “fundação” de um movimento estudantil secundarista capaz não só de barrar as reformas autoritárias dos governos, mas também de debater com o conjunto da sociedade uma educação pública mais democrática que questione a racionalidade que a instrumentaliza. Somente a continuidade de movimentos desse tipo é que dirá se a educação de fato poderá fazer o dia nascer feliz.
Escrevemos esse texto e apoiamos de forma prática as ocupações porque acreditamos nessa segunda hipótese.
São Paulo, 23 de novembro de 2015.
Notas
[1] Ver: http://www.educacao.sp.gov.br/reorganizacao/
[2] Ver: http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/383.pdf
[3] Ver: http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/383.pdf
[4] Ver: http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/383.pdf
[5] Ver: http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/383.pdf
[6] Ver: Manifestação da FEUSP sobre a reorganização das escolas estaduais de SP: http://www4.fe.usp.br/manifestacao-da-feusp-sobre-a-reorganizacao-das-escolas-estaduais-de-sp
[7] Ver: Folha de São Paulo, 17 de novembro, 2015. SP enfrenta saída recorde de professores.
[8] 19/11/2015, 23h42. Folha de São Paulo: “O secretário Herman Voorwald vai suspender apenas temporariamente a reorganização dos ciclos de ensino da rede estadual paulista. O texto foi corrigido”.
[9] IBGE: http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?sigla=sp&tema=sis_2009
[10] Ver: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/08/alckmin-envia-assembleia-plano-estadual-de-educacao-com-23-metas.html
[11] Censo escolar das particulares: http://www.sieeesp.org.br/userfiles/file/imprensa/ep180/180_inter.pdf
[12] Ver Censo escolar 2014: http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/967.pdf
[13] Ver: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,quase-metade-das-cidades-paulistas-usa-apostila-nas-escolas-municipais-imp-,747606
[14] Idem.
[15] Ver: http://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2014/04/prefeitura-de-sao-paulo-considera-impossivel-cumprir-nova-sentenca-sobre-creches-150-mil-criancas-paulistanas-fora-de-creches-7597.html
[16] Ver: http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Main/Noticia/Visualizar/PortalSMESP/SME-abre-consulta-publica-para-o-Programa-Sao-Paulo-Integral
[17] http://www4.fe.usp.br/manifestacao-da-feusp-sobre-a-reorganizacao-das-escolas-estaduais-de-sp
[18] Dardot, P. e Laval, C. La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néoliberale, Paris, La Découverte, 2010.
[*] Danilo Chaves Nakamura – professor da rede municipal de ensino.