A catraca — e a tarifa — não podem ser reduzidas a uma decisão orçamentária baseada em planilhas. Esse argumento não será aceito pelo movimento na rua, que propõe o debate em outras bases. Por André Manfrim
Em 10 de outubro do ano passado, o prefeito Fernando Haddad concedeu entrevista à Revista Novos Estudos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). A entrevista foi publicada na Edição 103, de Novembro/2015 e está disponível também em vídeo.
Questionado a respeito da luta pela redução da tarifa em 2013, e seus expressivos desdobramentos, o prefeito deixa transparecer sua não compreensão acerca do sentido que a luta por transporte tem na cidade hoje. Por conveniência ou má-fé, organiza argumentos que descreditam a militância do MPL e sua atuação política. A intenção é desconstruir pelo viés administrativo e historicamente irresponsável a pauta que é levada às ruas a cada novo aumento da tarifa de transportes.
Questionado a respeito da atuação do movimento social contrário à medida, Haddad começa argumentando: “Concretamente, o que aconteceu? Depois de dois anos e meio, a prefeitura deu 6,5% de reajuste na tarifa. Esse é o dado objetivo: não havia espaço orçamentário para continuar dando subsídio naquela proporção. Eu tinha recém lançado o programa de metas da prefeitura de São Paulo, tinha um comprometimento de investimento grande.”
Esse é o primeiro de uma lista de pontos que o prefeito elenca para dar respaldo técnico e administrativo ao aumento das passagens. A seguir, outros dois: “primeiro: era justo, não era acima da inflação.” A ainda: “você pode dizer que o conteúdo é interessante — a ampliação de direitos sempre interessa. Seis bilhões no sistema de transporte para todo mundo viajar de graça — acho ótimo.”
São os primeiros passos da construção de uma narrativa que disputa o terreno político que está em jogo. A intenção do poder público é estruturar uma argumentação que vê na tarifa paga pelo usuário do sistema de transporte viés estritamente técnico. A tarifa seria assim um dado de planilha, com raízes no orçamento da prefeitura e diretamente ligado aos subsídios pagos por ela aos empresários do transporte. Há aqui a primeira cisão fundamental: a tarifa não é técnica, ela é política.
Desnecessário repassar os argumentos elencados, sobretudo pelo MPL, para caracterizar o esforço feito pela população para pagar pelo uso do transporte público. Mas em síntese: a tarifa delega ao usuário do sistema o custo de acesso à cidade — escolas, serviços, aparelhos de saúde e cultura e, principalmente, aos próprios locais de trabalho.
A tarifa é uma barreira econômica, que afeta estudantes, trabalhadores de baixa renda, aposentados e desempregados. É um dado concreto que afeta com maior violência os setores sociais mais vulneráveis. Daí a escolha política da catraca como síntese desse instrumento de controle social e econômico. Daí a luta por uma vida sem catracas, afinal a catraca é política; é uma escolha do poder público em associação com o capital privado que explora o transporte da população todos os dias. A catraca — e a tarifa — não podem ser reduzidas a uma decisão orçamentária baseada em planilhas. Esse argumento não será aceito pelo movimento na rua, que propõe o debate em outras bases.
A entrevista ao Cebrap expõe o posicionamento assumido por uma gestão pública que representa a conciliação dos conflitos políticos no território urbano. A argumentação de Haddad faz emergir a ambiguidade da relação que mantém com a pressão das lutas a cada novo aumento.
Voltemos à fala do prefeito. “É um movimento que não buscou interlocução. Eu cresci no movimento social em que as mediações são feitas, em que se estabelece uma mesa de negociação, em que se abre dados, se discute as consequências de a, b ou c. Deparei ali com um movimento que eu desconhecia e de tipo novo na forma. (…) Ali havia uma tese interessante, mas uma forma de atuação política nova, que não vem de uma tradição da esquerda clássica — pelo menos brasileira. Movimentos radicais como o MST, o MTST, saúde, educação; nenhum dos movimentos radicais clássicos da esquerda brasileira até aquele momento adotava aquela forma de atuação. Penso que aquele movimento estava fadado a ficar do tamanho que era, com protesto, mas evoluindo para um outro tipo de cenário. Já tinha havido protesto contra o aumento da passagem em outras capitais, e mesmo em São Paulo, mas sempre com uma escala administrável. Eu considerava e considero justo discutir tarifa.”
Em 2013, a prefeitura e o governo do estado foram obrigados a revogar o aumento das tarifas. A bibliografia para a compreensão do ocorrido é vasta e reflete o que houve de ambíguo no processo. O interesse aqui não é discutir em detalhes o que aconteceu naquela ocasião. Não começou em 2013. O MPL atua como movimento social em São Paulo e protagoniza a resistência contra o transporte-mercadoria desde 2004. A primeira luta contra aumento de passagem foi em 2006, quando a passagem subiu de R$ 2,00 para R$ 2,30.
A visão que a prefeitura expõe parte do seguinte: a discussão da tarifa é válida, mas a atual gestão dialoga com os movimentos sociais e media as demandas e tensões sociais. No centro da questão está a ideia de que cabe a ela conciliar as disputas pelo acesso à cidade. A prefeitura se atribui o papel de intermediar e organizar a luta travada no território. A narrativa em disputa é a de um projeto de cidade que concilie as contradições de classe que se apresentam na forma de segregação do espaço físico.
Assim, a tarifa pode ser discutida, e o movimento social pode participar desse processo. O aumento será abaixo da inflação, estudantes de baixa renda receberão isenção (Passe Livre, como oportunamente evoca a publicidade do poder público), e o próprio MPL será chamado para sentar à mesa e colocar suas reivindicações. Haddad, professor, tecnocrata da administração de conciliação de classes, está acostumado ao movimento social que senta para negociar, apresenta uma demanda, recebe parte dela e se recolhe das ruas até que nova tensão social o convoque novamente. A prefeitura não compreendeu — novamente, por conveniência ou má-fé — que a organização horizontal colocada pela luta de rua contra a tarifa não vai eleger um representante para se sentar à mesa e discutir o aumento neste ou naquele molde, acima ou abaixo da inflação.
A luta é por transporte como um direito, que se opõe ao transporte-mercadoria. A luta é contra o lucro dos empresários e por um projeto popular de construção da cidade. A luta é na rua, contra o transporte precarizado e que, por isso mesmo, rende lucro, extrai mais-valia da população trabalhadora em seu trajeto casa-trabalho. A mediação de classes não serve como projeto, como mostra a história recente do país e do partido do prefeito. O aumento da tarifa é excludente e arrocha a população, venha de uma administração francamente liberal, higienista e privatista (Kassab/Serra), venha de uma gestão que dialoga pequenas concessões com o capital privado que molda a cidade e explora a população. A luta do operário não é apenas por condições de trabalho e salário, é também por condições de vida urbana, nas palavras de Ermínia Maricato.
Na narrativa do prefeito, há um ponto fundamental, pela perversidade de seu conteúdo e pela argumentação canhestra e irresponsável. Haddad diz que a “nova forma” do movimento social — vagamente caracterizada pela não mediação — foi responsável pelo que chama de “apropriação da direita, que expulsou a esquerda e o pensamento progressista das ruas”.
Novamente, a questão é o ocorrido em 2013. Importante analisar na íntegra o malabarismo expositivo do prefeito. “A forma não mediada de interlocução com um governo que tinha sido eleito com a bandeira da mobilidade não me parece uma coisa progressista. Tanto não era que o desdobramento do movimento foi ser totalmente apoderado por bandeiras conservadoras: as bandeiras progressistas sumiram das ruas. O que restou foram bandeiras conservadoras e a eleição do Congresso mais conservador da história desde a democratização. Considero que política é mediação. Quando você trava a mediação e estabelece uma lógica binária de conflito, com quem quer que seja — desprezando as características, a trajetória do incumbente —, penso que está adotando um tipo de postura que favorece muito mais o conservadorismo. Falei dos movimentos radicais, mas radicais que estabelecem mediações mais adequadas. Não estou falando da horizontalidade: isso é um simples subterfúgio para se recusar ao diálogo, você não consegue estabelecer com quem conversar. Não estou fazendo referência a uma característica, estou fazendo referência a como o movimento se apresentou, com toda a sua complexidade naquele momento, e por que ele, ao final, tendo, entre aspas, sido vitorioso, foi derrotado. Uma aparência de vitória que se traduziu em uma grande derrota.”
É preciso que se compreenda. Cada novo aumento de tarifa desencadeará a revolta popular contra o sistema de transporte. Esse processo parte da necessidade direta e urgente de barrar o aumento, mas tem raízes e horizontes mais profundos. A luta é de esquerda e popular. Não será o caráter autonomista dos movimentos que tornarão a mobilização popular um espaço apropriável pela direita.
É bem verdade que a direita conservadora foi atabalhoadamente às ruas em 2013, num processo cuja compreensão é complexa. No entanto, a análise do prefeito Haddad, que atribui esse movimento aos métodos de organização do MPL, soa como opinião disparada ao alto, sem sustentação alguma na realidade. Haddad faz alusão a uma política chapada, maniqueísta. Aonde? Por qual motivo? Se houve oportunismo das pautas conservadoras, não é razoável atribuir esse processo ao radicalismo do MPL. Parece excessivamente didático dizer que a pauta das ruas não pedia a redução da tarifa às custas de cortes em áreas como saúde e educação. O prefeito e o governador sabem disso, se não o dizem é por estratégia e cálculo político.
Dessa forma surge a possibilidade de criar a aura de gestor que pautou a mobilidade no desenho da cidade. De forma vaidosa, fala-se em “características, trajetória do incumbente”, como se o prefeito estivesse acima da mobilização popular, e que esta que não percebeu que o aumento era justo. E hoje pagamos R$ 3,80 nas roletas e catracas de ônibus, trens e metrôs. Isso em um contexto de super lotação, corte de linhas e uma auditoria dos contratos de concessão que pouco terá a oferecer além de reformas conjunturais no novo modelo de licitação. A quantidade de linhas e carros continua insuficiente e a tarifa uma das mais caras do mundo, no critério relativo à renda média do trabalhador. Haddad acha que sua agenda reformista deveria blindá-lo da revolta da população, que deveria receber elogios do movimento social. E que este deveria, no mínimo, sentar para ouvir que a tarifa é compreensível.
Por fim, quando os atos são sistematicamente massacrados pela violência policial, o prefeito se cala. O governo do estado, responsável pelo transporte metropolitano e pelo comando da Policia Militar, reprime violenta e ideologicamente as manifestações. Desnecessário dizer que o abuso de poder por parte do Estado não é eventual — como dizem o governador, os secretários de segurança, os jornais e a própria polícia. É sim político e sistemático. Da mesma forma que as prisões e a judicialização da criminalização aos movimentos, que cada vez mais são ameaçados por acusações criminais arbitrárias, provas plantadas, flagrantes injustificáveis e outras aberrações jurídicas que desrespeitam liberdades individuais.
A ofensiva contra a mobilização social cresce em intensidade e torna-se cada vez mais violenta e antidemocrática. Naturaliza-se a violência policial e judicial, sempre fundamentada na ficção midiática: um grupo de manifestantes entrou em confronto com a polícia. Acontece que a gestão da prefeitura dita progressista está incorrendo em grave erro tático ao fazer o cálculo político, conservador, de que não deve se posicionar contra a barbárie e o massacre promovidos pelas forças de segurança do governo do estado. O prefeito expôs em entrevista ao Valor Econômico publicada em 15 de janeiro um motivo para esse recuo político.
“É difícil fazer avaliação de uma corporação que não está sob seu comando, até porque você pode sofrer as consequências disso, como aconteceu em 2013, em que a partir de um breve comentário meu nós sofremos no dia seguinte as consequências. Quase perdemos dois prédios históricos da cidade, a sede da prefeitura e o Teatro Municipal. (…) quando disse que alguns protocolos não haviam sido observados [pela PM], no dia seguinte os prédios da prefeitura ficaram sem proteção e nós quase perdemos a sede da municipalidade e o Teatro Municipal, que quase foram incendiados.”
Enfim, o prefeito se esquiva, em tom confidente, de se posicionar politicamente sobre a brutalização da polícia ao direito de manifestação. Abre largo espaço para a ação política que utiliza o monopólio da violência como instrumento de manutenção da lógica da mercadoria. Ao não se posicionar, a prefeitura se torna cúmplice dos crimes de estado. Vira as costas aos movimentos sociais e a qualquer forma progressista de condução do poder público.
A luta contra a tarifa ainda não foi compreendida. Por ora, abre espaço à força, enfrentando fisicamente a polícia, simbolicamente a mídia e politicamente os governos. Mas a luta segue, por uma vida sem tarifa e catracas.
Complementam o debate a nota publicada pelo Movimento Passe Livre divulgada sobre o 5º Grande Ato Contra o Aumento da Tarifa e o texto de Eliane Brum, “Tarifa não é dinheiro, é tempo”, publicado no El País no dia 18/01.
Todas as ilustrações foram retiradas da página Arte contra a Tarifa no Facebook
“A luta contra a tarifa ainda não foi compreendida.”
Olhando a série histórica temos a impressão de que o prefeito de São Paulo a compreendeu melhor do que o ativismo.