Uma análise da peça O Pão e a Pedra, da Companhia do Latão. Por Danilo Nakamura

O assunto da peça é a crise do capital. O desenrolar do espetáculo é um olhar retrospectivo sobre a grande greve operária de 1979, em São Bernardo dos Campos. Um olhar cuidadoso e sensível “das dificuldades do aprendizado político daqueles trabalhadores que enfrentaram a polícia da ditadura e o aparato midiático patronal, num processo que durou 60 dias (15 dias de máquinas paradas e 45 dias de “trégua” com mobilização dentro e fora das fábricas). Sob relativa influência do imaginário desses grupos contraditórios, o novo sindicalismo, a Igreja progressista e o movimento estudantil de esquerda, os operários de O Pão e a Pedra travam um embate com a própria vida coisificada” [1]. Os acontecimentos do tempo presente que posicionam a mirada para o passado são as crises política e econômica que, há meses, estão perturbando o espectro político legal do país.

paopedra3O espaço é a fábrica da Volkswagen, em São Bernardo, mas também o estádio da Vila Euclides, palco de grandes assembleias sindicais, os bares na periferia e os parques de diversão onde os trabalhadores gastavam o tempo de lazer, ou ainda a igreja que transcendia seu uso para sediar reuniões políticas. A linguagem é uma mistura de estilos verbais: conversas do dia a dia dos trabalhadores, os jargões políticos dos sindicalistas e dos estudantes esquerdistas, as palavras de ordem dos panfletos, o espetáculo da mídia tendenciosa, os ultimatos das instituições patronais e estatais, o ecumenismo do discurso religioso etc. Nessa heterogeneidade de estilos, ora a repulsa, ora a aceitação marcam a (im)possibilidade de comunicação entre os indivíduos. As personagens principais são a massa trabalhadora, homens e mulheres que vendem sua força de trabalho em troca de salários baixos, que são cobrados para aumentarem a produtividade do trabalho e que veem todas as esferas de suas vidas serem invadidas pela forma mercadoria, mas que resistem, por exemplo, desacelerando os movimentos repetitivos na linha de montagem da fábrica. Aparecem como personagens também estudantes de esquerda, que são girados por organizações revolucionárias para “politizar” os trabalhadores. O feitor de fábrica que, mesmo sendo um assalariado, pensa como um gestor acima dos demais trabalhadores. O padre da Teologia da Libertação, que por meio da mística cristã mobiliza e irmana os trabalhadores na luta contra as injustiças terrenas. O sindicalista que, como negociador, fica sempre numa posição dúbia entre lutar contra o capital e/ou acelerar e contribuir para o desenvolvimento do sistema.

Vale destacar neste conjunto de personagens trabalhadores a personagem encenada pela atriz Helena Albergaria. Joana Paixão é uma operária que para garantir um salário melhor e, deste modo, conseguir tirar seu filho Isaías do orfanato transforma-se em João Batista. No desenvolvimento da história, Joana se relaciona com o operário Lucílio, o Fúria Santa. É na relação de Joana com Fúria Santa, na amizade com os outros operários e na vivência da contraditória realidade social, que vemos emergir a Santa Joana em cenário histórico brasileiro. Assim como a Santa Joana dos Matadouros, de Bertold Brecht, a Joana Paixão presencia as diversas quedas dos trabalhadores, mesmo estes fazendo de tudo para suas vidas melhorarem em termos materiais. Do mesmo modo que a personagem de Brecht, Joana também é detentora de uma fé que não é um simples instrumento de instituições religiosas que promete a garantia de algo que tem incidência no âmbito social.

paopedra2Em meio à crise de 1929, Santa Joana, da peça de Bertold Brecht – num primeiro contato com a luta entre capital e trabalho – pede prudência nas ações e fé em Deus para os trabalhadores: “A força leva à destruição, e mais nada. Vocês acreditam que, mostrando as garras, conquistam o paraíso. Pois eu lhes digo que por aí não se vai ao paraíso, por aí se vai ao caos” [2]. Mas, descendo para as profundezas dessa luta, Santa Joana afirma no final da peça: “E quanto aos que mandam elevar o espírito acima do charco, mas não o corpo. Também lhes deviam bater a cabeça na calçada. Porque só a força resolve onde impera a força. E onde há humanos só os humanos resolvem” [3]. Joana Paixão, de O Pão e a Pedra, também vive algo parecido. Diante da greve dos trabalhadores e de problemas em sua vida privada, ela se vê incapaz de rezar junto de sua companheira de trabalho. E isso não significa que ela estaria negando a religião e, tão pouco, aderindo a um “ateísmo da classe trabalhadora”, ideia propagada por materialistas intelectualizados que não condiz com a mentalidade e com a crença da grande maioria dos trabalhadores. O que temos nas duas peças é uma fé que significa a experiência de certas sensações íntimas e individuais que dão força para que os personagens enfrentem os problemas que surgem no mundo do trabalho e no cotidiano de suas vidas [4].

Essa relação entre fé e atividade prática dos indivíduos é de grande importância para entendermos uma das teses centrais da peça O Pão e a Pedra. Se seguirmos certa filosofia da história do idealismo alemão, a liberdade subjetiva foi trazida ao mundo nos embates das guerras de religião e isso abriu passagem para que Deus habitasse o coração de cada indivíduo. No terreno da história, essa ideia gerou movimentos radicais que prometiam virar o mundo de ponta cabeça para garantir que o reino de Deus se estabelecesse na terra aqui e agora. Dessa maneira, mesmo que esses movimentos tenham sido reprimidos e suplantados, superava-se um cristianismo que projetava as liberdades subjetivas em uma autoridade exterior. No entanto, se a ideia de liberdade subjetiva encontrou terreno para existir e se institucionalizar nas igrejas protestantes, em O Pão e a Pedra essa narrativa histórico-filosófica exige uma reflexão, pois estamos diante de um cenário social cujo catolicismo, ainda que fosse capaz de garantir uma mística e uma crítica das desigualdades terrenas, continuava incapaz de superar a projeção em uma autoridade exterior (e se superasse, ainda seria catolicismo?). Isso é importante de ser pensado, pois a peça termina – na voz de Joana Paixão – apontando para a necessidade de apostarmos na fé e na força que está no coração de cada indivíduo e abandonarmos “líderes” e “autoridades”, figuras históricas sempre presentes nos momentos de euforia ou crise da história brasileira, mas que acabam por limitar a imaginação de uma saída que não seja a espera para que essas figuras entrem em ação.

paopedra6Saindo um pouco da relação entre fé e ação, podemos dizer que a peça traz para o palco alguns dramas da classe trabalhadora, por vezes de forma bastante caricata. Vale lembrar que Germinal, de E. Zola, A classe trabalhadora vai ao paraíso, de E. Petri, Antes da revolução, de B. Bertolucci, Eles não usam black tie, de G. Guarnieri, mais recentemente As neves de Kilimanjaro, de R. Guédiguian, ou ainda os filmes do diretor britânico K. Loach têm como tema o mundo do trabalho e as contradições sociais que forçam os personagens a tomar decisões ou se resignar diante dos problemas. Os temas dessas obras surgiram com o nascimento do modo de exploração capitalista e, assim como na peça, se entretecem e se repetem: a denúncia das condições de trabalho; a precariedade das vidas nas grandes cidades; as desigualdades no interior da classe, como por exemplo as relações de gênero; a organização do trabalho nas fábricas que coloca trabalhadores explorando trabalhadores; o elo entre as ideias radicais com o imediatismo dos pobres; em resumo, a asfixia dos trabalhadores em decorrência do funcionamento cego e automático do capital em busca da geração de valor. Todavia, ao assistirmos à peça da Companhia do Latão, como já mencionamos no primeiro parágrafo desse ensaio, devemos estar atentos para o entrecruzamento entre o passado e o presente. Esse entrecruzamento convida o público para pensar a história recente do país sob o ângulo da crise do capital.

Trazer para a cena as greves do final da ditadura militar – tendo em vista nosso tempo presente – significa encarar algumas ilusões criadas pelo pensamento mainstream midiático, mas também pelo próprio pensamento crítico brasileiro. A atual crise política e econômica está acabando de uma só vez com a “narrativa ascensional da democracia brasileira” e também com a crença de que o Partido dos Trabalhadores (PT), surgido na ascensão do novo sindicalismo e dos movimentos sociais, poderia ser uma exceção diante de um período de declínio do movimento operário em todo o mundo. Em outras palavras, o atual golpe-impeachment acaba com a narrativa de que, com o fim da ditadura e a promulgação de uma constituição cidadã, a democracia brasileira aos poucos superaria suas limitações e se consolidaria como um regime político capaz de reconhecer os “novos personagens” sociais que exigiam a ampliação dos direitos sociais [5]. Também em sentido contrário ao processo social que se desenrolava em âmbito global – queda dos regimes socialistas, declínio das socialdemocracias europeias e, principalmente, financeirização da economia mundial que lançou para outro patamar a expansão e a competição intercapitalista, intensificando também um controle cada vez maior do tempo e da produtividade dos trabalhadores – acreditou-se que o PT, ao chegar ao poder, poderia criar uma sociedade do trabalho para além dos direitos trabalhistas varguistas e construir algo próximo do reformismo europeu do pós-guerra, ou seja, um sistema social que oferecesse saúde, educação, previdência e habitação, garantindo respeitabilidade para a classe trabalhadora.

paopedra5Esses dois processos que andaram mais ou menos juntos se mostraram ilusórios e, hoje, podemos verificar que a realidade social é regressiva, seja do ponto de vista da condição dos trabalhadores, seja das expectativas de um horizonte histórico mais livre. Só para ficarmos em alguns exemplos, se no período das greves do final dos anos 70 tínhamos 240 mil metalúrgicos no ABC paulista, hoje existe menos de 100 mil. A organização fordista ainda existe, mas perdeu espaços para pequenas empresas em que os trabalhadores trabalham de 8 a 14 horas por dia, em muitos casos sendo patrões de si mesmos. A Teologia da Libertação perdeu espaço para uma teologia da prosperidade, ou seja, para inúmeras igrejas neopetencostais que vendem mercadorias espirituais e, ao mesmo tempo, respondem às carências espirituais da população. As demandas dos movimentos sociais estão em simbiose com os interesses de setores da burguesia que sustentaram o crescimento econômico brasileiro. Setores da classe trabalhadora e da classe média assentaram-se concretamente na “compra do tempo”, pois passaram a ser mobilizados pela “instituição misteriosa da modernidade capitalista”, o dinheiro na forma de crédito. Em resumo, desde o fim da ditadura militar, montou-se uma engenharia social que funcionou como um “salto para frente” e sustentou as ilusões mencionadas acima.

Para terminarmos, podemos afirmar que a configuração social atual é muito diferente do cenário social montado em O Pão e a Pedra. No entanto, ao ser encenada na perspectiva dos trabalhadores em luta, a peça, para além de desfazer ilusões históricas, nos permite continuar vislumbrando um tempo fora do ritmo das fábricas, um tempo que os trabalhadores passam a usufruir de forma livre e criativa. Temos, com isso, um exercício necessário de imaginação que transforma todas as lutas passadas em nossas contemporâneas. Esse “querer fazer” do teatro converte a mera imaginação num ideal: “assim deveria ser”.

Notas

[1] Companhia do Latão, Um tempo diferente, In: O Pão e a Pedra – espetáculo da Companhia do Latão, 2016.
[2] Bertold Brecht, A Santa Joana dos matadouros, São Paulo, Cosac & Naify, 2001, p. 31.
[3] Ibid., p. 189.
[4] Sobre esse tema, vale a leitura da tese de Marco Aurélio Fernandes Gaspar, A falta que faz a mística – Elementos para a retomada do trabalho de base nos movimentos populares, São Paulo, Tese de doutorado, USP, 2010.
[5] Ver: Paulo Arantes, A fórmula mágica da paz social se esgotou, In: Correio da Cidadania, 15 de julho de 2015.

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente crítica e pelo visto é uma boa peça… Como ainda se encontra em cartaz irei vê-la exatamente por causa da crítica. Me parece que há um codão do espírito que nos liga. Afinidades eletivas.

    Parabéns Danilo e sigamos na trincheira da imaginação.

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