Cabe refletir como a ocupação vai conseguir articular pautas que afetam diretamente as mulheres com os interesses gerais da comunidade sem se deixar isolar e controlar por burocracias que instrumentalizem o discurso identitário para interesses pessoais ou de pequenos grupos. Por Passa Palavra

A reitoria da Universidade Federal de Goiás foi ocupada por estudantes na quarta-feira (15) em protesto contra a forma como a gestão da universidade lida com casos de abuso e assédio sexual. A ocupação começou com uma manifestação de mais de mil estudantes que se reuniram pela manhã no pátio da Faculdade de História e da Faculdade de Informação e Comunicação e se direcionaram à reitoria. Essa é uma das maiores mobilizações estudantis em número de participantes em pelo menos vinte anos.

Procuraremos aqui tentar entender os caminhos pelo qual essa luta se expandiu, seus limites e suas potencialidades em um contexto de austeridade fiscal na educação.

Breve histórico
Essa discussão não começou com a denúncia de um estupro nas redes sociais no dia 14 de junho. Embora este caso tenha sido o estopim da ocupação, podia-se perceber com a comoção causada pela denúncia que algo estava fora do lugar, fosse pela intensa repercussão na internet, fosse pelo fato de dezenas de pessoas se mobilizarem para ajudar a localizar e auxiliar a vítima no Campus Samambaia – um lugar distante da cidade – às altas horas da noite.

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A mobilização contra o assédio sexual na UFG tomou fôlego nesse ano já em abril, após diversas denúncias de um estudante que assediava colegas e até alunas menores de idade em suas monitorias. A comoção nas redes sociais gerou um protesto que reuniu algumas dezenas de pessoas para pressionar o reitor a punir esse caso e criar uma política de combate ao assédio na universidade. A reitoria sinalizou com algumas possibilidades e não houve respostas efetivas.

Três fatos foram importantes na paulatina mudança no caráter dessas mobilizações. Em primeiro, uma mobilização contra declarações racistas de um professor que resultou na sua transferência de turma. Em segundo lugar, a comoção causada pelo estupro coletivo no Rio de Janeiro e as diversas mobilizações nacionais iniciadas a partir dessa comoção como o Gritaço Contra a Cultura do Estupro. Em terceiro a comoção causada pelo vazamento de um placar em uma grande festa universitária (o InterUFG) que pontuava a pegação de mulheres de acordo com status, raça, entre outros.

Essa festa gerava denúncias todo ano por parte do movimento feminista, especialmente notas, mas dessa vez a repercussão e a mobilização foi tal que a universidade rapidamente retirou seu nome desse evento. Simultânea a essa repercussão, uma Frente Feminista foi articulada na universidade para sistematizar pautas que conseguissem arrancar da reitoria mudanças mais profundas na política de combate ao assédio – exigindo em manifestação que os trabalhadores da instituição também fosse incluídos no debate. Isso resultou, por exemplo, na participação do movimento no seminário promovido sobre Assédio Sexual na Universidade e um conhecimento maior da forma como a administração lida com a questão internamente, com seu corpo administrativo e docente.

Na medida em que o movimento feminista na universidade começou a utilizar os métodos da manifestação, da pressão pública e das ocupações momentâneas de reitoria, há uma mudança de métodos em relação aos anteriormente predominantes: pressão intra-institucional por meio de figuras influentes dentro da administração como pró-reitores e coordenadores de programas. Essa pressão institucional interna havia resultado em algumas conquistas para o movimento como cotas raciais na pós-graduação, a utilização do nome social nos documentos da universidade e a criação da Coordenação de Ações Afirmativas (CAF) para auxiliar cotistas, mas esbarrava em obstáculos intransponíveis quando se tratava das relações de poder da universidade e diretrizes orçamentárias. No momento em que se cobrou uma ação mais efetiva em relação a um determinado caso, a repercussão midiática e da ação coletiva foi mais eficiente do que fazer lobby na administração. Foi a mudança na forma de pressão que resultou na transferência do professor.

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Essa ruptura de práticas associada a uma demanda cotidiana, urgente, mas que era deixada de lado por colocar em questão as estruturas hierárquicas da universidade, resultou na explosão da maior manifestação majoritariamente estudantil das últimas décadas na universidade – envolvendo também a simpatia e mobilização de diversas professoras e técnico-administrativas para um embate direto com a reitoria. Um fator importante para essa unificação talvez seja a precarização das condições de trabalho que ocorreu com os cortes orçamentários – resultando no corte de várias fontes de iluminação noturna, demissão de seguranças e atrasos constantes no pagamento dos demais.

Algumas dilemas colocados pela luta
A grande manifestação que resultou na ocupação da reitoria lembrou um pouco as manifestações caóticas de junho de 2013 – sem autoria clara, vários evento diferentes do facebook, informações desencontradas. O instrumento encontrado – e legitimado – para centralizar essas informações foram as assembleias gerais dos estudantes. Também foi legitimado que os grupos que até então estavam mobilizando contra assédio tomassem a frente da movimentação como as funções de coordenação das assembleias e a interlocução com a reitoria.

Apesar disso, não havia sido decidido em momento algum o caráter da mobilização. Tratava-se de uma mobilização da comunidade universitária? Do movimento estudantil? De um movimento feminista, talvez, mas qual grupo? Essa falta de clareza resultou em uma grande pluralidade no movimento – todo tipo de gente que se sentia tocada pela questão de poder ter havido um estupro na universidade, pelas condições precárias de segurança e pelo problema do assédio sexual se mobilizaram – uma maioria de mulheres, mas muitos homens também.

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Essa relação não deixou de ser tensa. Houve vários momentos em que pessoas acusadas ou com reputação de serem machistas ou assediadoras foram julgadas sumariamente, escrachadas e expulsas da manifestação. Na concentração algumas pessoas com reputação ruim já foram impedidas de participar no protesto. Já no processo de ocupação da reitoria, um outro escracho tomou lugar contra um “notório machista” que estava nas proximidades. Depois, durante a assembleia para definir os rumos da ocupação, um sujeito que foi visto conversando com uma mulher falando coisas em termos considerados intimidatórios fora do prédio foi também sumariamente julgado e saiu correndo para não ser escrachado.

O primeiro conflito foi quando se tratou da questão da cobertura midiática. Algumas estudantes se colocaram contrárias a permitir a cobertura de um coletivo independente de mídia composto por homens – o Desneuralizador – e propuseram que a comunicação da ocupação deveria ser feita exclusivamente por um coletivo de mulheres estudantes de jornalismo. Essa proposta foi prontamente rejeitada pela plenária.

Outro momento de tensão foi quando se estava deliberando pela forma de organização da ocupação. Não havia sido deliberado em momento algum da assembleia que homens não podiam falar na assembleia – até porque não havia uma organização claramente por trás da manifestação. No momento em que um homem se levantou para fazer uma proposta, a coordenação da assembleia colocou esse problema. Nas palavras da (auto-intitulada) comissão organizadora “havia sido decidido em uma reunião informal… decidido não, conversado que homens não podiam ter fala”. Algumas pessoas se manifestaram contrárias a essa posição e houve três votações após defesa. 1) Se os homens poderiam estar presentes na assembleia. 2) Se eles teriam poder de fala na assembleia. 3) Se os homens teriam direito ao voto. Foi decidido em ampla maioria que os homens poderiam estar lá e participar, mas não votar. Só poderiam votar mulheres cis, trans e homens trans. Vale dizer que a posição contrária à exclusão dos homens do direito à fala defendia que eles não poderiam votar.

5Mesmo com direito a fala, ficou claro que não seria bem visto qualquer proposta vinda de homens. Durante a votação várias mulheres foram vaiadas por votarem pela participação de homens e uma proposta feita por um estudante de votar se a ocupação continuava por tempo indeterminado ou não só foi realmente considerada quando reafirmada por uma mulher. Ora, se algumas questões não estão sendo votadas seria realmente para garantir o protagonismo feminino ou o protagonismo das tais reuniões informais?

Além do mais, essa situação não impediu que um dos grupos políticos presentes fizesse a sua costumeira prática de um dirigente masculino orientar as falas do militante de base – com a diferença de ser uma mulher. O dirigente discretamente sentado no canto conversava com uma das militantes da sua organização no intervalo das falas exatamente antes das falas dela na assembleia. Não seria melhor que o dirigente pudesse falar diretamente sua posição política e a militante tivesse mais espaço para expor suas próprias posições, caso quisesse?

Depois, foi deliberado que o movimento seria horizontal, apartidário e que seriam proibidas bandeiras, camisetas, bottoms, qualquer tipo de propaganda de qualquer grupo político. Mas como pode ser horizontal uma articulação em que todos cumprem tarefas – compõem comissões, vigiam o prédio, se arriscam a sofrer processos – mas nem todos deliberam? Como pode ser horizontal uma articulação em que as posições de algumas mulheres são discriminadas por não coadunarem com decisões que sequer foram aprovadas coletivamente? Proibir bottons, camisetas, bandeiras não impede que qualquer grupo mais consolidado se aproveite desse tipo de brecha para se apropriar do movimento – e não ser de partido não quer dizer que não existam interesses pessoais em jogo ou não estar na área de influência de alguma outra instituição burocrática interessada em apaziguar o conflito como pró-reitorias, alguns núcleos de pesquisa, assessorias de comunicação e coordenações ligadas à administração superior.

Algumas conquistas e riscos do caminho
É evidente que o movimento tem um grande potencial e tem a capacidade de atrair diversos setores para fortalecer sua legitimidade e arrancar conquistas da reitoria – mesmo em uma situação de cortes orçamentários. Exemplo disso é operação de poda de árvores e instalação de lâmpadas no estacionamento da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) apenas um dia após a ocupação – uma reivindicação antiga de mais de dez anos da comunidade só agora atendida. Forçaram a reitoria a gastar dinheiro em um momento em que ela orientou retirar metade das lâmpadas dos corredores, atrasa o salário dos seguranças em semanas e várias outras despesas essenciais estão sendo cortadas.

Isso indica que uma pressão maior e mais ampla é capaz de arrancar muito mais – viabilizando e apontando o caminho para outras lutas na universidade contra os efeitos maléficos dos cortes na qualidade da formação e nas condições de trabalho educacional. Para isso, parece ser importante a participação efetiva de todos os interessados na construção da luta. Assim como não houve, e claramente não deveria haver, distinção de homem e mulher na hora de repercutir negativamente a lista do InterUFG, o estupro no estacionamento, no auxilio da vítima ou no fortalecimento da ocupação da reitoria.

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Cabe refletir como a ocupação vai conseguir articular pautas que afetam diretamente as mulheres – que de fato compõem a maioria do movimento – com os interesses gerais da comunidade sem se deixar isolar e controlar por burocracias que instrumentalizem o discurso identitário para interesses pessoais ou de pequenos grupos. Especialmente importante nesse contexto é a relação desses grupos de perspectiva identitária, que conquistaram algumas coisas “jogando por dentro” em pró-reitorias e fazendo lobby, com o movimento mais amplo, pois eles tendem a ver suas posições de influência colocadas em cheque por mobilizações que saem do controle. Como sua influência depende inteiramente da atual composição política da burocracia universitária, qualquer choque que abale essa estrutura também abala as lutas até então construídas dessa maneira.

A própria conquista inicial do movimento – a iluminação do estacionamento da FIC – já aponta de certa maneira o caminho a ser prosseguido. Trata-se de algo que preocupa especialmente às mulheres, mas que beneficia a todos com maior segurança e com a percepção que os cortes não devem incidir sobre as necessidades mais básicas da comunidade universitária.

Trata-se de uma conquista obtida de maneira não corporativa – incluindo técnicos, estudantes, professores, apoiadores externos, tendo os sindicatos e entidades que costumam controlar as lutas como no máximo coadjuvantes. Resta ver como será possível construir uma paralisação geral da universidade – como se propõe o movimento – e manter uma ocupação que pode a qualquer momento sofrer reintegração de posse – tendo em vista esses conflitos e tensões internas.

As fotos que ilustram o texto foram retirados do Facebook do Desneuralizador e da página As minas na reitoria da UFG.

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1 COMENTÁRIO

  1. Importante trazer a experiência da Ocupação do Prédio da Superintendência de Assistência Social (SAS, órgão que administra a Moradia da USP), na USP. A ocupação se levantou contra um caso de agressão dentro da moradia e diante da política de abafar os casos de violência contra a mulher por parte da REitoria. O movimento de ocupação exigiu a formação de uma comissão independente para apurar os casos de violência contra as mulheres ocorridos, a reabertura dos blocos K e L para moradia para mães, a reabertura de vagas nas creches que foram fechadas recentemente, etc. Como não poderia deixar de ser, a REItoria reagiu criminalizando o movimento (através de e-mails aos estudantes, responsabilizando a ocupação pelos problemas nos restaurantes universitários, emissão de passes, etc.)e entrou com um pedido judicial de reintegração de posse… as correntes políticas burocráticas com suas políticas reformistas, centristas e estalinistas (vinculadas ao PT, PCdoB, PSOL, PSTU) boicotaram abertamente o movimento…

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