Nosso desejo tem limites que raramente contemplamos; o que lhe incita é a carência, o que o motiva é a saciedade. Se saciar é, ao mesmo tempo, se tornar carente. Por Helo

Leia aqui a 2ª carta de Helo a Arthur

São Paulo, 16 de abril de 2016

Querido Arthur,

Não. Não é um ressentimento que nutro. Nem estou condenando Vinicius ou, como verá, Carol. Já aprendi a refletir, sem rir, das escolhas alheias e das minhas próprias. É crítica que faço. Pretendo ler nas ações algo que indique nosso profundo mal-estar, sem julgar ou moralizar, mas é que as vezes estou tão mergulhada nos problemas que me precipito e chego a conclusões antes de interverter tudo. Não é coerente comigo mesma extrair conclusões, sem ter certeza de que a coisa foi vista por todos os ângulos. Estou na verdade cheia de dúvidas, ou ainda, cheia de angústias.

A minha menstruação está atrasada. Uma semana se conta. Todavia, já estou em apuros e transtornada pela expectativa. Um filho é a última coisa que quero. Se estiver grávida…? Então, parece que tudo mudaria. Um filho seria uma renúncia ao espectro de minha radicalidade, de meu tornar-se mulher. Sinto que ele me fará morrer, abandonando a ação que me impeliria para as excitantes conquistas futuras: uma escritora, uma bela atriz, uma séria filósofa. Certamente a vida escapuliria deixando só aquele rastro de lembrança do que podia ter sido, e que não foi.

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As ruas. Havia raiva na saída do Canaille. Muita raiva. Havia as escolhas à minha frente. Atrás, Vinicius, que já significava uma espécie de ataque da bílis, muito pouco. A necessidade de luta surgia ativando todos meus nervos, minha revolta era também por uma vida insatisfeita.

A concepção marxista que adquiri, cheia de conceitos, lugares-comuns, palavras prontas, chavões e interpretações batidas ― exatamente o que me fez cansar ―, criou em mim a resolução de investigar sem muletas. Grande confusão de seita com ciência. Eu, como sabes, já não estava de acordo com minhas próprias opiniões. Mulher marxista. Mulher assexuada com zonas libidinais expostas e sem aparelho reprodutor.

Dentro de todas as possibilidades, observei a necessidade da investigação séria e do, assim chamado, trabalho do conceito. Por isso, repreendo veementemente sua interpretação sobre Meister e o conceito de bela alma. Tudo bem que as cartas servem para dar vazão às nossas especulações, mas estas devem ser rigorosamente trabalhadas. Minha iluminação foi causada justamente por um profundo desacordo.

Minha saída do Canaille foi acompanhada por um mal-estar generalizado. Ruas escuras, com muitos fantasmas, como a noite de sono cotidiana dos escravos. Lembro-me que passei todo o caminho conversando com Alice, surpreendida com meu retraimento, cheia de maldosa curiosidade por minhas informações sobre a vida que levava. O curioso é que eu nada tinha de especial ou de uma vida promíscua. A minha vida, a despeito de minha abertura sexual, é um entrar e sair de bibliotecas e bares. O que eu mais tinha de épico eram minhas páginas, escritas cheias de artificialismos desde minha infância.

Os rostos contritos pelo álcool e erva seguiam uma tênue melodia de buzinas ecoando a distância. Só ali eu soube tratar das questões que me pareciam pueris. Apenas andei um pouco pelas ruas. Era a primeira vez que tinha meu orgulho ferido. Um pouco de satisfação por isso. Sentia mais profundamente o prazer de me demonstrar tão autocontrolada. Apesar da raiva me sentia alegre ao mesmo tempo. Alegria de ir avante, para novas aventuras. Havia Alice. Mas havia Tulio que gritava para que nós o esperássemos. À noite, o luar, o vinho, a realização de um desejo que se manifesta na concretização de um sonho acordado.

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A grande revolução a ser criada na vida cotidiana é descobrir como fornecer às pessoas comuns a maior quantidade de farinha possível e o meio de assá-la. Isso sempre preocupou um espírito das alturas.

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Pensei com certeza no que faria em meu apartamento, naquela noite tempestuosa, no protesto por minha falta de escrúpulos pelo convite feito a Vinicius. Independente disso, havia uma coisa de maior vulto. Levava comigo toda uma fortuna crítica que seria disposta na revista. Toda a intelectualidade, que conhecia, colocava como necessidade fundamental o desenvolvimento daquela revista.

Não era apenas curiosidade por todos os “famosos” nomes da intelectualidade paulista. A intelectualidade paulista é a interrogação. E talvez, fosse uma resposta. São Paulo nunca superou o bandeiritismo, eis a minha forma de enxergar sua baba de ódio. Eu sentia os ataques que sofria e que aceitava estoicamente de toda nova “esquerda” identitária. Teoricamente, eles ignoram inteiramente quase todas as doutrinas. Considero ridículas quase todas, as ditas, feministas que conheço.

No ponto de táxi, procurei algum que me levasse para casa. O primeiro que abordei deu-me um sorriso. Isso me deixou desconfortável, não se ri para um estranho. Sondava-me olhares inquisidores de minhas amigas. Os olhos de Carol iam de desânimo à esperança. Eu sabia o que deveria fazer; ignorar totalmente aquele amor nascente. Isso porque ele me era inexistente agora e urdia ou a enganar ou ser a indiferente. É horrível ter que fazer escolhas tais, por isso eu abdicava de antemão as duas possibilidades. Sei que a distância e a indiferença consolam mais do que o desengano.

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Afinal, embarcamos os quatro no carro. Vinicius? Não sei o que se sucedeu. Era uma tonta no táxi. Fustigada pelas tentativas suplicantes de aproximação por parte de Carol, fui obrigada a ceder minhas mãos e meu ombro. A noite se prolongaria.

Recorri, por insensatez, ao sentimento de amizade. Era sem dúvida má fé, pois sabia que ela me procuraria. A minha cara devia estar amável, a despeito de minha salutar saída de cena no Canaille. Atrapalhada, com os sentimentos que me eram caros, eu me sentia só. Todos no táxi conversando, rindo. Um grande aperto no peito, na garganta, um desejo de solidão, uma vontade de silêncio mortal.

Reagi, por fim. Convidei-os a ficar em casa e continuarmos a bebedeira. A ausência de Vinicius era um bom tributo de consolação. Quando percebi que independente de minha estranha abertura, os olhos de Carol fossem de tristeza e desconfiança.

Aquele olhar de paixão, como eram enfadonhos. A expressão idêntica ao que conhecia cercando-me pelos, outrora, namorados. Os mesmos olhozinhos ressecados, a mesma imposição de uma futura esperança, as mesmas cobiças sexuais, a mesma disputa exibicionista e implícita nos gestos. Carol, ficou embriagada finalmente, espiando, atropelando e impondo um assunto que dizia ser mais importante que qualquer outro. Uma ninfa obscena. Depois de suas preleções íntimas, depois de suas confissões políticas, não mais consegui ligá-la à moça que me fizera gozar.

“Não sei?”, exclamei, “Mas a ideia de Wittig da simples supressão da categoria de gênero já traz em seu bojo muitos problemas, porque… tudo bem! Tendo visto que a categoria gênero é opressiva, o fato dela existir não é simples ato de vontade, mas nascida e construída histórico-socialmente, se é que existe essa palavra!”

“Veja só… a questão é que quando se demarcam os sexos já há aí a normatização das diferenças. Tal concepção desafia a noção de naturalização do sexo e acabam por denunciar o uso político da discriminação utilizada para um determinado fim…”

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“Não coloco isso em causa e sei também que isso desvenda muita coisa, mas o que me preocupa de fato é os caminhos políticos e as determinações do agir que essa teoria fomenta!”, disse-lhe sentando-me no sofá e, ao acender um cigarro, continuei, “A questão que discordo de sua teórica é a seguinte: para ela a diferença ou cisão dos sexos já é uma interpretação cultural que se apoia na normatividade. Não! A própria interpretação cultural é engendrada pelas relações sociais. Veja só: estou de acordo até certo ponto, mas isso é só um momento do movimento. Ela ao dessencializar o gênero acaba por essencializar a norma. Como se a norma por si só respondesse tudo, quando, na verdade, a norma existe como uma reprodução e produção da cultura, ou em termos, menos complicados para nós: das relações sociais. E a questão da reatualização do corpo…? que massada viu!”

“Não vejo desse modo, não!”, redarguiu Carol, “Acredito que você comete uma injustiça com Butler… Com a existência do gênero o que se aceita são as normas da cultura e estas por sua vez dão as diretrizes de nossa interpretação sobre o corpo… Como o gênero está ligado a noção binaria de homem e mulher, ele passa a não dar contar das diversas formas de sexualidade. Nesse caso, Helo! O que Butler propõe é a subversão das categorias presentes no gênero porque ele enquanto categoria universalista não dá conta.”

“Estou de acordo que a categoria do gênero seja binária e se baseie numa condição que determina a cultura, mas de fato essa categoria também é determinada pelas relações que Butler insiste em chamar simplesmente de culturais ― termo aliás complicadíssimo. Entretanto, há aí um aspecto incompreendido, na própria noção de universalidade que pode ser aplicada a tudo. A própria cultura tem um modo inclusive de suplantar tal categoria. De modo que vejo que não é Butler que está subvertendo a categoria de gênero, mas a própria dinâmica histórica que se encarregou disso. Se encarrega disso quando aquilo que antes era descartado, agora é aceito no mercado; quando se é integrado como fonte de reprodução do valor. Por isso, outras categorias que não seriam aceitas antes do processo de falência de modernização agora estão sendo reconhecidas inclusive com grandes nichos de mercado e participam da grande abstração dos direitos. Naturalmente isso se dá criando um fetiche identitário e competitivo vide Tomas Hobbes.”

“Eu sei! Eu sei! E nem quero entrar em discussão com você a partir de sua trincheira!”, deu uma gostosa risada Carol, enquanto Alice conversava animadamente com Tulio na varanda, “Não é bom que a própria noção de gênero prolifere? Não é por isso que as aulas de direito humano na Sanfran[1] estão lotadas de novas palavras para classificar as novas modalidades de sexualidade?”

“Te entendo e gosto de sua ânsia, mas, veja só, Beauvoir já deu conta disso!”, respondi com alegria ao que Carol retrucou:

“Simone de Beauvoir era biologizante. Ela não admitia, por exemplo, a existência de gêneros que ultrapassassem a forma binária imposta pela cultura”.

“Você comete o mesmo anacronismo que Butler e, ademais, essa possibilidade estava em aberto para Simone. Primeiro, por admitir que é a construção e relação social que molda o tornar-se algo; segundo, que com isso já denunciava o sistema binário, retirando toda sua característica ontológica, essencialista e naturalizada”.

“Tudo bem, mas você há de concordar que ela não avança, né?”, respondeu Carol, “As possibilidades de ultrapassar e superar as limitações binárias do gênero devem ser algo mais do que uma resolução com o próprio sexo, ou como a moda existencialista tratou… é necessário que quebremos os rituais cotidianos da vida e restabelecemos uma autonomia para nosso próprio corpo!”

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“E qual a diferença entre esse programa e a moda existencialista? Como isso vai ser traduzido em força político-cultural? A meu ver, isso é somente uma concepção individualista que se coloca como forma de contracultura! De novo isso? O que legifera sobre nossas costas em nenhum momento é tocado por essa dialética da recuperação do sexo… aliás, Boal no teatro já havia demonstrado como a alienação incide sobre nosso corpo, e de uma forma muito mais visceral e revolucionária… O que Butler propõe? Nada mais liberal!”, encerrei com um riso espontâneo. “Aliás, não me parece que Beauvoir está preocupada com essa relação sexo e gênero. E é certeira porque apresenta uma descrição fenomenológica da diferença sexual. O que é muito sério. Beauvoir está mais para Merleau-Ponty do que para Sartre e nada tem em comum com uma teoria voluntarista do gênero, como a acusa tua teórica!”

Carol ensaiava uma resposta quando fomos interrompidas:

“Gente vamos fumar um!”, bradou Alice da varanda, “Vocês querem?”

“Em todo caso, meu amor, não devemos levar tão a sério a filosofia!”, respondi por fim e me dirigi para a varanda.

Arthur, sabes que minha ignorância é bastante exigente.

Já passavam das duas da madrugada. Eu queria muito mais, pretendia encontrar uma saída para aquela noite. E era esse o lugar mais vivo da América Latina ― a varanda de meu apartamento adornada por vasos, plantas, quadros, Tulio, Alice e Carol.

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Nosso desejo tem limites que raramente contemplamos; o que lhe incita é a carência, o que o motiva é a saciedade. Se saciar é, ao mesmo tempo, se tornar carente.

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Eu ficava. Ria com eles. Discutia, tomando parte nas conversas, aceitava aquelas presenças confortáveis. Eu procurava. Não se pode dizer se eu sabia o que. Não esperava muita coisa. Só algo que me absorvesse por inteira. Um nervosismo me levava a expressões e risos que me escapuliam. Nadava em minhas entranhas e recusava qualquer sentimentalismo. Enquanto nadava, eu nadificava. Nadificava minha existência ao se ocultar nas minhas próprias ideias. Gostaria de repelir esse sentimento, mas queria era repelir Carol de mim. E por isso acenei proximidade com Tulio.

Uma conversa entre amigos sucumbe se houver interesses. E aquele sorriso interessado de Carol, sua atitude humilhada. Tudo aquilo me deixava puta. Minha face se iluminou para Tulio e assombreou-se para Carol. Muita confusão. Era quase de manhã, o melhor seria dormir. Despeço-me com languidez. Como uma gata que ao andar demonstra toda preguiça.

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Tulio entendeu meus sinais. Carol chocou-se ― e segundo Alice, chorou copiosamente em seu colo.

Dormimos e se eu tiver de fato grávida, como um vaso sagrado, a Cruz será nossa. Tal como o transeunte que ajudou Cristo a carregar a cruz até o Gólgota, assim, será Tulio na minha vida se eu permitir que essa tragédia se concretize.

Tudo isso me absorve meu amor…

Com tanta vontade de chorar encerro por aqui…

Te amo.

Heloisa.

Nota [1] Faculdade de Direito da USP, também conhecida por Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

As imagens que ilustram esta carta são de Paula Rego.

Leia aqui a 3ª Carta de Arthur a Helo.

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