The VVitch é interessante não apenas pelos seus próprios méritos fílmicos, mas pela associação  com os tempos extremistas que estamos vivendo. Por Enrique Nascimento

thewitch1The VVitch: A New-England Folktale, ou simplesmente “A Bruxa”, primeiro longa metragem escrito e dirigido por Robert Eggers, é um dos melhores filmes de terror que assisti. Especialmente porque não tem quase terror nenhum, no sentido usual do termo. O terror que há, em imagens, é quase infantil. O que aterroriza é o contexto, pura e simplesmente. Na saída do cinema muita gente reclamava de que o filme não assusta e é chato. As pessoas estão acostumadas com filmes de terror cheios de clichês, como quando uma personagem está de frente para um espelho, e você sabe que vai acontecer algo da próxima vez que ela voltar a olhá-lo. Eu estou já de saco cheio de found footage, por exemplo, que é um dos tipos mais comuns agora; neste estilo, talvez só se salve o clássico Cannibal Holocaust.

Mas aí vem a questão: até que ponto aquilo que a família vive no filme é real? Até que ponto não passa, tudo, de alucinação coletiva? O filme é ambíguo.

Tudo o que a família vive, todas as agruras, tudo tem alguma conotação religiosa, e eles eram fanáticos. Quem garante, por exemplo, que a filha mais velha não enlouqueceu depois do isolamento da família na floresta, e sua loucura é vista como possessão demoníaca? Tudo o que aconteceu pode não ter passado de um delírio. Eles perderam qualquer vínculo com qualquer comunidade que não a deles próprios enquanto família. E estão num isolamento brutal. Podemos nos lembrar aqui da premissa psicológica de The Shining (“O Iluminado”), por exemplo, que tem certa base empírica: o extremo isolamento leva a alterações no comportamento.

TheWitch3Por outro lado, o filme dá abertura para uma interpretação que vê tudo aquilo como real. O pai da família, que é a minoria religiosa na colônia, acredita que sua versão do cristianismo é a única verdadeira, e se ela não vai se impor, ele prefere o autoisolamento. A filha mais velha é a última a aceitar a escolha do pai, ainda na cena inicial. Deste ponto de vista, o filme pode ser lido na seguinte chave: “o diabo realmente existe, bruxas existem, e se você tem tanta fé, vamos ver até onde ela vai”. Tudo o que a família passou pode ser visto como uma espécie de teste, e no final todos falham, porque todos foram seduzidos: o filho mais velho pela luxúria, como nas cenas em que fica olhando para os seios da irmã mais velha; a mãe pela avareza, preocupada com o cálice de prata perdido; o pai é tomado pela soberba, não reconhece que se meteu numa enrascada; daí decorrem as cenas em que eles resolvem “confessar” seus pecados uns para os outros. Todos pecam: mentem ou omitem a verdade; os filhos mais velhos desobedecem aos pais, saindo escondidos para a floresta; a filha mais velha brinca ter feito um pacto com o demônio para amedrontar a irmã mais nova, etc.

O que leva, novamente, à interpretação “realista” do filme, por assim dizer. Todos pecam, mentem, fazem de tudo, e para piorar estão extremamente isolados e com fome. A colheita não dá certo, a caça é infrutífera, e por aí vai. Eles estão famintos.

Mas há elementos que permitem um retorno à interpretação, digamos, “fantástica” do filme. A cena em que o pai vai atirar no coelho passa a impressão de que o animal, uma das personificações do Mal no filme, faz o tiro sair pela culatra. Há também a cena em que o filho mais velho, já possuído, vomita um pedaço de maçã. Em uma cena anterior ele havia mentido ter visto um pé de maçã na floresta. É claro que tiros saem pela culatra e pessoas podem ver coisas onde não existem, mas há um clima de que aquilo tudo não é natural: a natureza, as pessoas, os objetos estariam sofrendo uma intervenção mágica.

the-vvitch-04Mas não seria exatamente esta a intenção da direção do filme? Que entrássemos no mundo delirante de uma família fanática e isolada num ambiente inóspito? Que fôssemos capazes de acreditar na realidade do Mal Absoluto, mesmo que apenas num contexto fílmico? Se você acredita no Mal Absoluto, é claro que você também verá uma intervenção mágica ali. É a explicação mais simples. Mas o filme é real. Não digo que você tenha sido convencido da existência do Mal Absoluto, mas sim que você o experienciou enquanto assistia o filme.

No balanço entre a interpretação “fantástica” e a interpretação “realista”, há quem diga que vai ver filmes como The VVitch exatamente para sair da realidade e viver uma fantasia por alguns instantes, como nas sagas de Guerra nas Estrelas e O Senhor dos Anéis. Sair da realidade por alguns instantes, mesmo de brincadeira, não apenas é interessante como inclusive necessário para a saúde psíquica. Não há quem não busque tal alívio. Mas ali em The VVitch o limite entre real e fantasia é quase inexistente – e é aí que tudo começa a ficar interessante. É justamente quando o limite entre fantasia e relato documental se esfumam que o filme fica melhor, e mais aberto a interpretações. The VVitch é interessante não apenas pelos seus próprios méritos fílmicos, mas pela associação da intolerância e do fanatismo com o autoisolamento e autodestruição. O filme casa direitinho com os tempos extremistas que estamos vivendo. Cada qual acreditando nas alucinações motivadas por suas próprias crenças. O final, sabe-se lá…

1 COMENTÁRIO

  1. Bom, pode-se até dizer que as bruxas não eram tão bruxas assim…
    Mas que a temporada “OFICIAL” de caça pode estar começando, isso pode:

    “Justiça mantém sem-terra presos com base na lei antiterrorismo” (disponível em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,justica-mantem-sem-terra-presos-com-base-na-lei-antiterrorismo,10000066632)”

    Em tempos de tantas “ficções”, “estados de emergência” (oficiais e oficiosos…) aqui ou na França (ou em qualquer outro lugar), não se limitarão a ser o momento oportuno para impor perdas de direitos aos trabalhadores ou a espoliação do patrimônio público. Eles serão mesmos agentes fundamentais na fragmentação da classe tanto no âmbito internacional, quanto intraclasse. Eis a colaboração dos multiculturalismos…

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