Parece cada vez mais claro que o Escola Sem Partido está muito aquém de uma discussão pedagógica minimamente séria. Por Danilo Nakamura

img_9874Criado há mais de uma década por Miguel Nagib – pai indignado com as aulas, dadas para sua filha, que comparavam a bondade de Francisco de Assis com o senso de justiça revolucionária de Che Guevara –, o movimento Escola Sem Partido, desde o ano passado, ganhou espaço diante da polarização ideológica que agita o debate político no país. Hoje diversos estados e municípios seguem o caminho de Alagoas num esforço de aprovar leis que coíbam a “doutrinação política e ideológica nas salas de aula”. No âmbito federal, o Projeto de Lei do Senado 193/2016, apresentado pelo senador Magno Malta (PR-ES), visa incluir nas leis de diretrizes bases da educação o “Programa Escola Sem Partido”.

Apesar da proposta de lei falar em “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”, “liberdade de aprender e ensinar”, “liberdade de consciência e de crença”, o fundamento inicial é uma acusação, ou seja, afirma que os professores educam de forma partidária, dogmática e ideológica nas escolas e universidades brasileiras. Situação que, na visão dos defensores e militantes do movimento, piorou na última década com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder. Completando o programa, eles procuram também barrar discussões como as de gênero, religião e diversidade étnica. O argumento, no caso do debate sobre gênero, é que o Estado não pode intrometer-se na opção sexual dos alunos e não pode permitir práticas que antecipam ou direcionam o desenvolvimento das crianças e adolescentes em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo, portanto, “vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”. De forma geral, o pressuposto para barrar esses debates é que o comportamento dos adolescentes, bem como a educação religiosa e moral, são direitos inalienáveis da família [2].

No outro polo, professores e pessoas preocupadas com esse movimento procuram, de diversas formas, demonstrar como a proposta é conservadora e está em consonância com uma série de outras emendas constitucionais e projetos de lei que visam atacar direitos sociais garantidos pela Constituição. Assim como as leis trabalhistas e os direitos sociais estão sendo atacados pela PEC 257 e 241, por exemplo, a liberdade de expressão estaria sendo golpeada por esse programa. Tendo em vista esses retrocessos, defende-se um processo de “descolonização” do currículo e de ampliação dos direitos de aprendizagem dos estudantes. Entende-se que o debate de gênero seja um tema que deve ser debatido nas escolas, uma vez que ninguém “escolhe” a sexualidade porque a escola “comprometeu”, “precipitou” ou “direcionou” o “amadurecimento natural”, como querem os defensores da Escola Sem Partido. A sexualidade, longe desses argumentos teológicos de “escolha” consciente (livre arbítrio), “se constitui em nós por meio de relações que se tecem às nossas costas, de histórias de desejos que partilhamos, de experiências que sofremos” e, deste modo, o que está em jogo é o respeito à singularidade dos indivíduos [3].

Desks in empty classroom

Em nossa opinião, o segundo grupo é muito mais sensato. Uma vez que não é possível falar em “liberdade de aprender e ensinar” sem minimamente ter em conta que os sujeitos do conhecimento “tomam partido”, “fazem escolhas” e “selecionam recortes” ao pensar os objetos. E, tão pouco é razoável afirmar que o Estado deva garantir a “liberdade de crença” sem afirmar que o Estado deva também garantir a liberdade de opinião e de expressão dos cidadãos. Nesse sentido, parece cada vez mais claro que o programa Escola Sem Partido está muito aquém de uma discussão pedagógica minimamente séria, além de demonstrar incapacidade de refletir sobre a complexidade da realidade e dos problemas que se apresentam nas escolas. A afirmação de que determinados assuntos sejam de responsabilidade exclusiva da família, por exemplo, não leva em conta que dentro da família os estudantes podem estar sujeitos a conviver com os mais diversos preconceitos e formas de opressão. Assim, mais do que tratar os filhos como “propriedades” da família, os membros de uma sociedade democrática devem entender que a igualdade é um valor fundamental e a escola, como instituição pública que trabalha com a formação dos indivíduos, não pode virar as costas pra isso.

imagem-escola-sem-partidoAgora que já nos posicionamos contra o programa Escola Sem Partido – que, mesmo sem ser aprovado, tende a mergulhar o país num clima de perseguição ideológica e comportamentos anti-intelectualistas – resta-nos pensar o significado político dele para além da guerra cultural entre os dois polos do debate. Afinal, o que significa criar um clima de perseguição ideológica e de caça as ideias “subversivas”, quando falta justamente o elemento subversivo no atual momento histórico? Como afirmou Paulo Arantes, a subversão “foi extirpada com sucesso em 1964”, uma contrarrevolução contra o fantasma do “populismo”, que ampliava a participação popular das massas historicamente excluídas e propunha reformas estruturais. Ou ainda, um golpe preventivo cujo objetivo era eliminar seletivamente a militância cujo horizonte político não se esvanecia na sociedade de classes. Essa era a ideia, e a partir dela encaminhou-se a legalização da nova esquerda que, no momento posterior, de abertura democrática, ficou liberada para alternar com a direita o comando da gestão de uma sociedade não menos letal que a Ditadura Militar, mas “que responde a uma outra racionalidade” [5].

Isso é claro quando pensamos a educação propriamente dita. Antes do golpe, Paulo Freire – hoje um dos principais alvos do Escola Sem Partido – criou um método que buscava alfabetizar adultos no campo, uma vez que no Brasil o analfabeto não votava. O método, bem entendido, não concebia a leitura como uma técnica neutra, mas como força no jogo da dominação social e, deste modo, o acesso à palavra estava acoplado à liberdade e a participação política dos camponeses. O golpe, na esfera educacional, serviu para anular os sujeitos que perceberam que o analfabetismo era “parte integrada no movimento rotineiro da dominação do capital”. Hoje, num tempo histórico de expectativas decrescentes, o método freireano é resgatado discursivamente por programas estatais e ONGs de educação. Como discurso, as proposições de Paulo Freire são adaptadas às novas teorias pedagógicas, mas a energia social – que outrora visava uma transformação, ou melhor, a formação de um país de passado colonial através de um projeto de integração nacional – hoje é canalizada em programas educacionais que atendem a população de forma quase universal, no entanto, transformando os sujeitos em objetos de “projetos” já moldados por uma política de gestão de pessoas sugerida pelas organizações internacionais (Banco Mundial, ONU e outras). Em resumo, fala-se em protagonismo, propostas de intervenção, interdisciplinaridade, territorialidade, autoria dos sujeitos no processo de aprendizagem, direitos de aprendizagem, mas, no limite, esse linguajar militante é apenas uma forma de rebatizar as chamadas “habilidades e competências” do ensino tradicional, que moldam o ensino público e o privado. As diferenças de “qualidade” e de “condições materiais” entre as redes apenas condicionam a seleção de “ganhadores” e “perdedores” numa sociedade cuja mobilidade é rara [6].

Notas

[1] Texto escrito para debater com as professoras da E.M.E.I. Porto Nacional, localizada na Brasilândia, Zona Norte da cidade de São Paulo. Agradeço às professoras pela atenção e pelo riquíssimo debate que fizemos em 03 de set. de 2016.

[2] Ver: o projeto Escola Sem Partido. In: <https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666>.

[3] SAFATLE, V. É ilusão acreditar que instituições expressam normas da natureza. In: Folha de São Paulo, 5 de agosto de 2016.

[4] ARANTES, P. O nome da crise. In: <https://blogdaboitempo.com.br/2015/04/10/paulo-arantes-o-nome-da-crise/>.

[5] Idem.

[6] SCHWARZ, R. Cultura e Política. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2009.

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