Não é simplesmente trivial que estejamos a perder mais e mais pessoas para a repressão. Por Ian Caetano
No contexto de recrudescimento das liberdades ativistas, com prisões cada vez mais banalizadas em sua frequência e também em sua brutalidade (enquanto cerceamento de um direito fundamental, a liberdade), a “esquerda” (se é que tal termo ainda faz sentido enquanto conjunto político) defronta-se com uma conjuntura que parece cada vez mais desafiadora em seu todo.
Não só tem-lhe sido mais difícil encontrar espaço e apelo às suas pautas e formas de ação, como tem sido cada vez mais difícil encontrar estas pautas e formas de ação ante o contexto de amplificação dos discursos e movimentos conservadores ou mesmo reacionários. Em 2013 a pauta pela melhoria no transporte urbano serviu como um vetor aglutinador, não só pelo estado geral, facilmente tangível por críticas (quase universais em termos de diversidade social), como por sua condição estrutural fulcral nas cidades contemporâneas, indispensável à circulação da força-de-trabalho; mas também por um aproveitamento (intencional ou não) de uma conjuntura global de sublevações sociais, que, ao menos, se não inventaram repertórios (como novos estudos têm criticamente apontado, em relação à “glorificação” e ao “ineditismo” que inicialmente apontavam aqueles que analisaram 2013), certamente surpreenderam em alguma medida os aparelhos de repressão e o Estado.
Existem alguns textos que têm trabalhado com a ideia de que um certo “desconcerto” entre os discursos das frações do extrato dominante – e também em suas ações e seus respectivos aparelhos repressores – tenha sido um dos elementos fundamentais às pontuais vitórias conquistadas em 2013 (redução das tarifas em várias cidades e alguns programas de mobilidade urbana, em conjunto com a primeira medida, nalgumas outras). Por entre as fissuras dessa dissonância penetraram as raízes da esquerda, a fazer florescer algumas possibilidades de vitória. Este texto, conquanto o interessante do assunto, não trata disso.
Depois de 2013 ter “fugido” ao controle de seus atores, por assim dizer, “geradores” (atores de esquerda), a coisa arrefece um pouco em certas regiões, voltando às dimensões subcutâneas do ativismo (em trabalhos de base, rodas de discussão etc.), para regressar, em 2014, a repetir, neste caso talvez não a farsa da tragédia, mas talvez a tragédia reiterada do fracasso anterior.
Se, de certa forma, para o bem e para o mal, as táticas e arranjos empregues em 2013 surtiram um efeito de “imprevisibilidade”, ante os aparelhos repressores e os extratos da elite, que possibilitou uma vitória (ainda que depois os mesmos setores que a conquistaram tenham sido incapazes de levá-la adiante em um projeto de transformação mais aprofundada), o problema foi que em 2014 a tática empregue não teve o mesmo efeito. O que se viu foi uma polícia muito mais bem preparada para lidar com manifestações, esvaziando-as quase sempre com sucesso e com um grau de agência muito mais cirúrgico. Assim, as cenas de “guerra civil” presenciadas em algumas cidades do país em 2013 cedem lugar para contenções muito mais sofisticadas do ponto de vista da repressão. Tudo isso associado a um discurso bem azeitado na mídia e a setores burocráticos do governo muito mais experimentados nas resoluções discursivas e político-burocráticas frente às demandas das ruas. (Vale dizer que a “brutalização” da dinâmica repressiva de rua tem voltado à cena, todavia o diagnóstico em seu conjunto continua a valer, na medida em que, de fato, a esquerda tem encontrado dificuldades de manter apelo de rua e popular).
Se em 2013 o movimento acertou para depois perder, em 2014 perdeu para não voltar mais a ganhar. Como a política não é uma magia, repetir a receita tende a não produzir os mesmos resultados. A partir daí, o que se percebe é um contexto de desmobilização ampliado. Os movimentos continuam a existir e, em suas atividades ordinárias (trabalho de base, formação de quadros, elaboração discursiva, etc.), é possível dizer que ainda “manifestem-se” politicamente. Todavia, nas ruas cada vez menos têm conseguido resultados. O grau de “imprevisibilidade” tornou-se cada vez menor, as pautas cada vez menos apelativas à população em geral, e os movimentos (aqueles que não digladiaram-se em querelas internas ou em “disputas” pela eleição de culpados, tão frequentes ambas as coisas em contextos de refluxo militante) encontraram-se novamente na intangibilidade dos problemas sociais concretos, tendo pouco apelo junto à “sociedade civil em geral”.
Nesse contexto surge uma nova forma que parece atrair para si alguma coisa parecida ao que 2013 havia posto: as ocupações escolares. Novamente uma tática que impôs algum grau de “imprevisibilidade” em relação aos elementos de repressão (ainda que agora, como em 2013, este esteja sendo minado) e que causou algum desconcerto nos discursos e ações dos setores dominantes. Com este panorama, no sistema de pressão e descompressão das tensões sociais, e de uma certa “base mobilizada” mais ou menos fixa que se formou em torno destes contextos de luta, a repressão também se transforma. Não só aparelhos foram comprados, técnicas de controle de massa adquiridas, enquadramentos públicos acerca da atividade militante inventados, formas de monitoramento das redes aprimorados, e tantas outras coisas, mas um ponto tem-se tornado cada vez mais evidente: a violabilidade do direito à liberdade tem aumentado.
Segundo podem recordar aqueles que no contexto de 2013 estiveram nas ruas, a violência policial sempre foi uma tônica, mas algumas nuances se foram formando. Iº) sempre foi comum ser “detido” durante um protesto, para depois ser solto; IIº) passou-se a fazer registro de detidos por meio de Termos Circunstânciados de Ocorrência (TCOs) assinados em delegacias; IIIº) começam a deter ativistas em protestos e estes passam a ter de pernoitar – ou até passar mais tempo – encarcerados, em geral com alguma acusação a ser admitida.
A partir daí vieram os casos de judicialização. Por meio de inquéritos policiais, identificava-se “lideranças” a serem responsabilizadas por conjuntos de acusação e expostas midiaticamente como responsáveis por tais coisas (Troféus na distinção elaborada entre o “ativista” e o “vândalo”; juntamente com um grau mais elevado de intimidação dos setores mais constantemente mobilizados; além de manutenção, junto à opinião pública, da ideia de que as sublevações sempre têm, por detrás dos panos, alguma “organização” ou “comitê” controlador). Tal processo ocorreu em diversas cidades.
Uma outra coisa paralela foi o desbloqueio de certas ações até então pouco usuais (falo em relação ao passado bem recente): a prisão de advogados ativistas, que até então mantinham certo véu de “neutralidade de campo”, com o qual podiam circular entre militantes e delegacias com o mínimo de garantias formais atribuídas por meio de seu ofício; e a prisão de professores universitários, historicamente uma “casta” respeitada também em sua “senioridade” e “neutralidade de campo”.
Gradativamente, a intensidade das práticas repressivas e o escopo dos alvos se amplia. Sabemos que a polícia sempre privilegiou a detenção de pessoas associadas estético-culturalmente à periferia social. Negros, punks, skatistas etc. sempre foram alvos gerais da polícia e, dentro de protesto, alvos bastante procurados. No contexto de 2013, os adeptos da tática black-block também tiveram sua cota de abuso por parte das autoridades policiais. Na etapa da judicialização, “figuras públicas” do movimento, aqueles que discursavam com maior frequência, aqueles que eram vistas com frequência em várias atividades e discussões em páginas online foram também atingidos de forma. Depois vieram os setores auxiliares (advogados e professores), em geral responsáveis não só pela defesa em termos da legalidade “democrática” e “jurídica” das manifestações, mas também ajudando a construir – e constituindo – uma espécie de discurso da necessidade das lutas e de sua legitimidade histórica, uma legitimidade pública.
Claro que este esquema simplifica a realidade, mas é justamente por isso que ele se propõe não propriamente uma reconstrução dos fatos, mas um modelo reconstrutivo da tendência histórica do fenômeno repressivo.
Com todo esse contexto, de recrudescimento da repressão, conjugado com uma “perda” de horizonte palatável pela esquerda, surgem algumas consequências. Uma delas é que o número de detidos/processados tende a subir, considerando a repressão mais pesada e as formas de luta menos esguias em relação a ela (conjugadas com o arrefecimento do apelo popular das mobilizações). Uma outra derivação lógica desta última é que, ato contínuo, mais e mais os ativistas precisarão interromper sua mobilização política expressa para defender e lutar pela liberdade de pessoas detidas. Nesse imbróglio, paira a aura do que classifico aqui como certa mistificação da ideia de “preso político”. Uma confusão principalmente entre as ferramentas discursivas mais usadas na defesa de ativistas eventualmente presos e os entendimentos mais objetivos do fenômeno por parte dos próprios militantes.
Não considerarei aqui os carreiristas habituais que eventualmente, e certamente, possam existir. Se o movimento vê um destes, que se lança aos braços dos polícias para depois sair nas capas de jornal com finalidades de autopromoção, e ainda o mantém em suas fileiras, daí não há nada que se possa dizer sobre isso. Em casos de prisão, o mais corrente é serem mobilizados os recursos de defesa e opinião pública, a reivindicar os direitos constitucionais referentes às liberdades de expressão e associação política (bem como os da garantia da processualidade legal padrão prescrita); os direitos humanos referentes ao tratamento que se dá às pessoas e de como estes direitos destoam da realidade do encarceramento (em geral e em particular em se tratando de um “ativista”); uma ou outra nota internacional da ONU sobre o caráter medievo das nossas polícias militares; um ou outro relato político-histórico do caráter imprescindível do direito de livre-manifestação à democracia etc.
Mas um cacoete que parece recorrente é os militantes passarem a, de fato, crer nestes instrumentos de disputa da opinião pública eles próprios. Este é um primeiro ponto.
Não me julguem por tacanho, é óbvio que estes “direitos” são compostos por – e em – sistemas complexos que, apesar de – no agregado – estarem a serviço das frações dominantes, não podem agir em completa e flagrante contradição delituosa em relação às suas próprias lógicas manifestas (o que permite-nos, pois, alguma margem de ação por meio deles). Todavia, não parece haver na esquerda contemporânea nenhum tipo de discussão de por que mais e mais militantes são presos em manifestações e, no caso das judicializações, fora delas. Que o Estado é “fascista, tem lado e defende só o direito dos ricos” são favas que até o mais novo dos militantes aprende a repetir. Neste sentido, parece haver uma contradição de difícil resolução entre o que de fato esperamos do Estado e o que dizemos dele esperar. Não se trata de abdicar da reivindicação de direitos historicamente conquistados, mas de não refletir acerca do porquê de estarmos cada vez mais a precisar reivindicá-los. E se compreendemos o processo de emancipação como autoemancipação e não contamos com, e nem esperamos a, benevolência do Estado, então nalgum outro lugar havemos de encontrar o peso do fardo.
Só à esquerda cabe o ônus – e a responsabilidade – de suas próprias falhas em deixar-se ser presa. Não se trata aqui de nova corrida na busca por culpados, “você não correu o bastante, aquela pedra vi sair da tua mão, se não tivesses feito aquilo o polícia não te tinhas pego, etc.”, mas de pensar como o voluntarismo puro e este espírito algo cristão de que só o martírio limpa a alma, do “o ímpeto e a gana de corrigir as injustiças são mais fortes que eu”, da substituição da discussão racional-política pelo atavismo do emocional puro, tem sido contraproducentes na luta. Vale lembrar que a exposição de si, e a consequente prisão, não só muitas vezes culminam na sua própria tragédia pessoal, mas também, em vários casos, na entrega de dados importantes do conjunto à repressão, além do já falado desvio de forças específicas a um fim não objetivado.
Algumas destas questões passam por debates mais profundos tático-organizativos:
Em relação às práticas atualmente nomeadas de “ação direta”, e ao caráter profundamente individualizado com o qual nos investimos para soltar não só comentários públicos – sejam eles online ou em outras mídias – como para tomarmos parte em debates e ações que têm claros fins que extrapolam o nosso destino individual; bem como algumas táticas mais “pragmáticas” que veem o patente recrudescimento como um dado contra o qual se deve jogar, utilizando-o, em sua ocorrência, como um objeto passível de exploração. Seja pela propaganda do “abuso” estatal na expectativa de angariar indignados, seja na utilização disso para a publicização da pauta pela qual se lutava quando da prisão.
Estes dois casos têm tratamentos diferenciados, porque não são propriamente, ainda que possam estar imbuídos de, “mistificação” no sentido “cristão” que aqui atribuo. De toda forma, na prática, têm se mostrado também igualmente inférteis ou, quando férteis, efêmeros. O estopim só “estoura” um tonel que esteja cheio de alguma substância inflamável. Tais eventos podem claramente ser um estopim que desemboquem sublevações mais acentuadas, mas a substância à qual darão combustão constitui-se por elemento diferente, que precisa ser produzido doutras formas.
Para além destas particularidades, há o fenômeno que chamei cá de mistificação pura e simples, onde o “preso” é visto como herói, alguém que “provou seu valor militante” e que, precisamente por isso, foi encarcerado. Tal processo de mistificação faz com que, longe de um revés, o encarceramento seja quase visto como um rito de passagem, de onde o militante sai mais “experimentado” na trama revolucionária, pois defrontou-se finalmente com o cerne duro da treva estatal, em sua opressão cabal.
Esse militante tem de ser visto, ao contrário, como alguém que fracassou ser bem sucedido na empreita estipulada coletivamente e em ocultar os traços de sua ação. Se, talvez, pela “qualidade” de sua ação, fala ou exposição, algo de positivo tenha sido conquistado, em revés temos tudo já aqui enunciado (e fala-vos alguém que foi encarcerado). Fracasso é termo demasiado forte, e não se trata aqui também de vexá-lo, o eventual preso, ao amargor da própria incompetência, mas de se entender que glorificar a derrota (e prisões nada mais são que isso, derrotas) não ajudará a esquerda em nada.
É interessante notar (e o tom ensaístico do texto permiti-me tais floreios) o misto de medo e glória que passa no olhar dos militantes, em especial os menos experientes (mas eles não são exclusivos nestes delírios. E notemos que experiência não é uma clivagem necessariamente etária), quando a figura do preso político emerge. A solidariedade com todos aqueles que foram presos permanece não só um elemento indispensável como uma necessidade prática da luta, até para fortalecer os laços de confiança de todos aqueles que militam. Para saberem que, caso caiam, terão aqueles que por eles lutem. Todavia, existe uma diferença entre a solidariedade camarada (e todo o instrumental discursivo e prático mobilizado para isso) e a mistificação da prisão política, da qual nada sai, a não ser a fantasmagoria das perdas em “vitórias” ou “títulos” e a abertura de trampolins aos interessados em autoprojetar-se politicamente.
Não é simplesmente trivial que estejamos a perder mais e mais pessoas para a repressão. Não é simples “desnudar” do caráter brutal do estado. Urge à esquerda constatar as suas próprias falhas e reequacionar o que entende por ganhos, méritos e perdas, se ainda acredita que a luta vale o esforço.
Agradecimentos especiais a Heitor Vilela pela leitura e comentários.
Sobre o autor
É mestrando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e membro do Programa de Pesquisa sobre Ativismo em Perspectiva Comparada (PROLUTA-UFG)
As imagens que ilustram o texto são de Caravaggio.
Existem “atalhos” que a sociedade do espetáculo nos prepara: ser preso significa ser um desafio ao sistema, cobrir o rosto e atirar uma pedra significa combater o sistema, ir a uma manifestação significa lutar contra o sistema, etc.
Creio que é aí onde a narrativa da “perda do controle” de 2013 realmente trás problemas se queremos analisar mais seriamente os últimos anos de mobilização no Brasil. Ainda espero daqueles que colocam as coisas nestes termos que me expliquem exatamente o que é que estava “sob controle” e quem é que tinha o controle. O MPL no máximo tinha poder de convocatória, e isso não é controle, mesmo porque não controlavam nada do que ocorria nas manifestações, tanto por parte dos manifestantes, quanto por parte da PM. O termo “perder o controle” talvez tenha mais a ver com o fato de que nunca quiseram tê-lo, do que com o fato de tê-lo e depois perdê-lo.
Essa introdução serve para pensar quem eram e com que “ethos” muitos dos manifestantes iam e seguem indo a certas manifestações de caráter “horizontal”. Os black blocks, por exemplo, vicejaram justamente em manifestações heterogêneas, mas que eram essencialmente heterogêneas não porque havia uma enorme pluralidade de pessoas organizadas, senão que justamente porque se tratava de um público não organizado, um grande coletivo de indivíduos não organizados. Como o título do texto bem aponta: “aderentes de protesto”. Talvez por isso quantidades tão expressivas destes simpatizavam com a defesa teórica da participação dos BB nas manifestações: ambos estavam lá “realizando seu direito”. Oras, esse nível de discussão era extremamente raso, e se dava não por outro motivo que a participação individualizada destes manifestantes, que não participavam de qualquer instância de debate e organização que pudessem definir os destinos e as táticas da luta à qual colocam apenas o corpo, de vez em quando. O MPL convocava, as pessoas apareciam para um passeio com adrenalina. Alguém convocava algo contra a Copa, as pessoas apareciam, se manifestam, e iam para casa esperar até a próxima manifestação. Minha pergunta é: como pode existir QUALQUER piso de auto-defesa com uma composição assim? Só pode imperar o salve-se quem puder e o oportunismo de gente que usa a massa de escudo para suas ações heroicas individuais.
Acredito que aqui existe uma tarefa não apenas estratégica do ponto de vista revolucionário mas também da forma de defesa contra a repressão, que é uma maior inserção nas organizações de massas, pois sindicatos e movimentos sociais não apenas contam com uma pluralidade ideológica que permite que a solidariedade se estenda mais além da afinidade imediata, como também contam com recursos jurídicos e financeiros que fazem a diferença quando a repressão sobe a níveis como os que parecem estar avizinhando-se.