Setores do proletariado criticaram violentamente a direção bolchevique. Por GCI
Aviso do Tradutor: Este texto corresponde a um trecho de um capítulo do livro “A contrarrevolução russa e o desenvolvimento do capitalismo”, que se encontra disponível, no original espanhol, aqui. O texto escolhido segue a linha de textos e debates recentes deste site, a respeito da revolução russa e seus atores, ao não enfatizar o historiográfico senão a recuperação histórica para as conclusões políticas. O texto completo foi originalmente publicado em 1984, na revista Comunismo, e em 2007 foi reeditado em livro, com algumas alterações mencionadas nas notas ao pé.
Nessa situação histórica precisa de miséria, de guerra e crise [N.T.: o capítulo anterior trata das primeiras medidas econômicas do governo bolchevique], de queda brutal da produção, que não tem paralelo em toda a história do capitalismo[1], o sentimento de frustração do proletariado agrícola e urbano foi muito grande. Não apenas o governo bolchevique não tinha significado o fim do capitalismo, da guerra, da forma como os proletários esperavam, não apenas ele continuava defendendo a política econômica do capitalismo, mas tinha produzido o agravamento generalizado da situação do proletariado (aumento da taxa de exploração).
Como era de se esperar em tais circunstâncias, pela defesa intuitiva de seus interesses de classe, pela consciência revolucionária, ou por ambas as coisas, setores importantes do proletariado lutaram contra o Estado e criticaram violentamente a política da direção bolchevique. Por isso, contrariamente ao que comumente se pensa sobre o período, a política levada adiante pela direção bolchevique não foi só enfrentada pelos ex-empresários, pelos social-revolucionários de direita, os mencheviques e os anarquistas defensistas, os cadetes…, senão também pelo proletariado, por organizações revolucionárias e comunistas que não tinham abandonado a luta. Enquanto sobre a primeira oposição à direção bolchevique, a dos brancos, se fala sempre, a oposição proletária em geral é encoberta, escondida, desfigurada, ocultada, não apenas pela historiografia oficial da União Soviética, senão por todas as pseudo-oposições ao stalinismo, como por exemplo o trotskismo ou a social-democracia em geral.
Não podemos entrar aqui na análise detalhada dessa contradição entre o proletariado e a direção do partido bolchevique (direção ao mesmo tempo do governo, dos aparatos econômicos, do exército e da polícia), mas é indispensável sublinhar que desde o princípio, e de maneira crescente, houve um movimento do proletariado que se opôs firmemente à política defendida e aplicada pela direção bolchevique. Com respeito aos pontos mais altos desta luta (Brest-Litovsk, Kronstadt, Makhnovschina) temos previsto textos específicos[2]. O importante aqui é compreender que esses movimentos de luta contra o poder bolchevique, consistentes em greves, críticas virulentas na imprensa contra o poder central, manifestações, realizações de expropriações não autorizadas, cristalização de novos grupos estruturados fora do, ou como frações comunistas dentro do próprio partido bolchevique, atentados e até movimentos insurrecionais do proletariado rural e urbano…, tiveram profundas implicações na direção da política econômica e social bolchevique. De fato, essa é a razão fundamental das permanentes oscilações, idas e vindas, na direção do Estado: da pretensão de fazer passar tal ou qual medida (as nacionalizações, o controle operário…) como socialista ou como passagem ao socialismo, à defesa integral de todas estas medidas como uma necessidade do capitalismo nacional russo e vice-versa; da defesa do “capitalismo de Estado” para lutar contra o “capitalismo privado”, à defesa de todo o capitalismo para a luta contra a pequena propriedade; da proibição total e violenta de todas as expropriações efetuadas pelos operários sem autorização (e portanto apoio aos patrões) aos apoios abertos às expropriações de todos os patrões; do apoio às iniciativas do proletariado (por exemplo, dissolução da Assembleia Constituinte) à repressão, cada vez mais sistemática e terrorista, de toda iniciativa que não viesse da própria direção do partido.
Poderia se dizer que tais oscilações refletiam ainda a vitalidade da direção do partido para expressar, inclusive nessas circunstâncias onde a política não podia ser absolutamente considerada nem como proletária nem como comunista, ao menos de vez em quando, os interesses do proletariado. Mas essa afirmação omitiria por um lado que essas idas e vindas, esse saco de gatos que era neste momento o Partido Bolchevique, era resultado de uma unidade sem princípios e da inexistência de um programa verdadeiramente revolucionário (ver nossa crítica da concepção social-democrata de transição ao socialismo no texto anterior neste mesmo livro), e por outro lado, que um governo burguês qualquer teria feito exatamente o mesmo ante o fracasso rotundo da política aplicada (na simples gestão do Capital!) e, sobretudo, ante a luta proletária. Não se deve esquecer também que esta política de idas e vindas foi acompanhada da repressão sistemática de toda resistência proletária, a princípio contra aqueles que não aceitavam a disciplina do trabalho (desde princípios de 1918), logo contra os que se autodenominavam anarquistas (a partir de 12 de abril de 1918) e socialistas-revolucionários de esquerda… e muito rapidamente se transformou em repressão contra as frações do próprio partido bolchevique, chegando ao seu ponto culminante com a repressão do proletariado de Petrogrado na greve de 1921 e a matança de Kronstadt[3]. Deve-se portanto ter presente que o que se denominava oficialmente “terror vermelho” compreende não apenas elementos de terrorismo revolucionário contra o regime anterior, senão fundamentalmente o clássico terrorismo contra o proletariado e a revolução, terrorismo que os revolucionários coerentes devem denominar como correspondente terror: terror branco, terrorismo contrarrevolucionário.
Neste texto, centrado na política econômica e social dos bolcheviques e as suas consequências sobre a evolução da sociedade russa (a continuidade capitalista), o que mais nos interessa daquela contradição são suas consequências na polêmica socialismo-capitalismo de Estado, assim como no resultado histórico concreto: a política econômica efetivamente aplicada e o fato de que aquela polêmica tenha contribuído para deixar mais claro para a posteridade a natureza indiscutivelmente capitalista da economia russa. Deve-se ter muito claro que essa discussão acerca da estatização, da socialização, da centralização, da planificação, não se desenvolveu precisamente no interior de um escritório de planificação, entre um conjunto de cientistas, mas muito pelo contrário, na rua, como uma violenta e sangrenta luta de classes e frações, e com armas em mãos.
A resistência do proletariado contra essa política econômica teve um conjunto de expressões teóricas, tanto contra o partido bolchevique como conjunto, como no interior do mesmo contra a política leninista. A importância destas últimas radica, mais que em sua radicalidade ou consequência, dado que em geral capitulariam frente ao leninismo, no que são as únicas fontes conhecidas que obrigaram a Lenin e aos seus argumentarem explicitamente pela política econômica. Enquanto que a todas as outras expressões do proletariado responderá com terror aberto de Estado, aos bolcheviques de esquerda se lhes responderá com argumentos que mostram a coesão interna da argumentação leninista[4].
Recordemos então globalmente as posições do que se chamou frações comunistas de esquerda do Partido Bolchevique, conhecidas também como “oposições de esquerda”[5], e sublinhemos que, como as outras forças do proletariado revolucionário, acusavam os bolcheviques de defenderem o capitalismo contra o socialismo.
A primeira oposição de esquerda comunista no partido bolchevique se forma contra a posição de Lenin sobre a paz com o Estado alemão. Dita oposição, que refletia de uma maneira desordenada e primária uma ampla oposição do proletariado à direção dos bolcheviques naquela questão crucial[6], tomou a forma do grupo que se expressava a partir do jornal Kommunist, cujos mais conhecidos animadores foram Smirnov, Ossinski e Bukharin. Rapidamente, e em especial através da pluma de Ossinski, se converte em uma oposição mais geral a respeito de toda política econômica levada até esse momento. Dizia por exemplo: “Nós não apoiamos o ponto de vista da construção do socialismo sob a direção dos trusts. Sustentamos o ponto de vista da construção da sociedade proletária sobre a base da criatividade dos próprios trabalhadores e não sobre a base dos ditados dos capitães da indústria. […] O socialismo e a organização socialista devem ser restaurados pelo próprio proletariado ou, de forma contrária, não alcançará nada. Em troca, teremos a instauração de outra coisa, “capitalismo de Estado”[7]. Convém sublinhar que esta luta e polêmica se produz quando corria o mês de Abril de 1918, em pleno começo otimista do “controle operário”, e quando Lenin defendia a necessidade da “administração científica” de Taylor (que o próprio Lenin, antes de assumir o poder, havia denunciado como “a escravidão do homem ante a máquina”). Lenin, que havia abandonado toda pretensão de destruir o Estado, já defendia abertamente como política a manutenção dos especialistas, dos cientistas e dos empresários do regime czarista sobre o “controle operário”.
Como se vê, o “controle operário” era a forma elegante que o capitalismo tinha de reestruturar-se sobre as velhas bases, utilizando a ilusão de que os operários controlariam o processo. A política de Lenin se afirmava como a política do capitalismo para os operários, como sempre havia sido a política social-democrata.
Quanto à política dos acordos com o capital internacional, acompanhada da concepção de que se podia manter a revolução em um só país, os comunistas de esquerda mostraram uma grande e premonitória lucidez: “A revolução operária da Rússia não pode estar a salvo abandonando o caminho da revolução internacional, evitando incessantemente o combate e recuando frente ao avanço do capital internacional, fazendo concessões ao capital nacional. Deste ponto de vista é indispensável adotar resolutamente uma política internacional de classe que, paralelamente à propaganda revolucionária internacional através da palavra e da ação, reforce a ligação orgânica com o socialismo internacional e não com a burguesia internacional”[8].
Apesar da claridade acerca de alguns pontos programáticos, este grupo não foi capaz de opor um projeto global coerente. Será considerado pelos revolucionários que enfrentam os bolcheviques com armas como “oposição à Sua Majestade”[9], não será capaz de assumir revolucionariamente suas posições e por isso, prisioneiro do mito da unidade do partido, desaparecerá rapidamente. No entanto, esta primeira oposição de bolcheviques prefigura as que virão nos anos posteriores e, por outro lado, suas críticas terão importantíssimas consequências. Já mencionamos que os componentes desta fração renunciam a desempenhar cargos de responsabilidade, o que facilita o predomínio tecnocrático nos organismos concebidos para a centralização econômica. Por outro lado, foi a crítica deste grupo que obrigou Lenin explicar a concepção de conjunto que guia a política dos bolcheviques, a declarar abertamente que se tratava de desenvolver o capitalismo (ver mais adiante). Além disso, a incidência dos comunistas de esquerda na adoção da política dura do “comunismo de guerra”, de nacionalizações…, não deve ser subestimada. Por outra parte, às inconsequências de dito grupo de bolcheviques de esquerda, que terminou acatando a contrarrevolucionária unidade do partido, deve somar-se ao fato de que o mesmo se considerou parcialmente satisfeito pela adoção dessa política mais radical de expropriações.
O próprio Bukharin retrocederá em suas críticas e escreverá Problemas do período de transição, onde a política econômica e social não é fustigada como capitalista, senão considerada como adequada na marcha em direção ao socialismo. Já não se criticava o capitalismo de Estado, senão o fato de denominar “capitalismo de Estado” o que, segundo Bukharin, era o sistema da “ditadura socialista do proletariado”. Essa confusão alcançou sua máxima intensidade durante a guerra e no pós-guerra. Expressou-se principalmente na mais absurda confusão entre o sistema de capitalismo de Estado e o sistema da ditadura socialista do proletariado. E tomando um exemplo de Ziperovich, Bukharin dá risadas dele por considerar a fase posterior a outubro como “o degrau do capitalismo de Estado”. Nos fatos, Bukharin criticava (sem atrever-se a fazê-lo diretamente) a Lenin, que já havia reconhecido abertamente que as medidas aplicadas “favoreciam o capitalismo de Estado”. No entanto, Lenin estava muito mais próximo da realidade (na verdade se desenvolvia o capitalismo a secas), e as boas intenções de Bukharin se confundiam com um conjunto de ilusões acerca da relação entre essas medidas e o verdadeiro socialismo, que a própria realidade se encarregaria de desmontar. Bukharin paradoxalmente passaria alguns anos depois a ser o defensor mais claro do capitalismo aberto e declarado, como Lenin o era nestes primeiros anos.
Daquela primeira fração ficaria apenas uma minoria que em 1919 construirá o grupo do “centralismo democrático”, cujos militantes mais conhecidos foram Ossinki e Sapranov, que darão “batalha” no IX Congresso do Partido (1920), contra o princípio de direção única, a burocracia, a concentração do poder nas mãos de uma pequena minoria… Este grupo estava ligado teórica e organicamente com outro cujo principal dirigente foi Smirnov e que se opunha à política militarista e burocrática de Trotsky, que havia readotado o exército czarista como modelo. Trotsky, neste momento chefe do exército do governo, considerava absurda e a serviço do inimigo toda crítica da “burocratização”.
A oposição mais conhecida hoje é a que menos importância tem do ponto de vista revolucionário. Se trata da Oposição Operária, cujos principais dirigentes foram Kollontai, Shlyapnikov, Medvedev… Dita oposição se opunha à militarização do trabalho e dos sindicatos – posição defendida por Trotsky[10] –, assim como à posição de Lenin, que queria manter os sindicatos em seu papel clássico. Frente a eles, a Oposição Operária reivindicava a necessidade de que os sindicatos tomassem diretamente em suas mãos toda a organização da economia, compreendida a produção, a distribuição, a centralização. Embora essa oposição não tivesse então nenhuma alternativa revolucionária de destruição da sociedade mercantil, se opunha em geral a toda política econômica e por isso nos fatos teve (até sua capitulação vergonhosa que logo denunciará Miasnikov) grande importância no proletariado industrial.
Quando ocorre o X Congresso dos bolcheviques, o antagonismo entre os bolcheviques e o proletariado chega a níveis explosivos. A Oposição Operária é considerada contrarrevolucionária, e de fato ameaçada a ter a mesma sorte que os proletários e os marinheiros do bastião revolucionário de Kronstadt. Frente a isso, a maior parte capitula e apoia a repressão. Apenas uma minoria continuará o difícil e importante trabalho de oposição clandestina, e constituirá os núcleos iniciais de grupos, como os três que indicaremos a seguir.
Logo após esta onda de repressão, os bolcheviques instauram a Nova Política Econômica (NEP), declaradamente em favor do comércio e do capital. Já era totalmente claro que todo desacordo com respeito à política oficial conduzia à prisão e à tortura, e portanto deveria estruturar-se na clandestinidade. Não existem dúvidas de que neste momento se desenvolve um importante movimento de oposição clandestino, mas dele é ainda mais difícil conhecer suas verdadeiras posições e críticas. Apesar disso, podemos distinguir três grupos[11]:
– O grupo Verdade Operária, que publicará Proletkult e cujo principal dirigente foi Bogdanov. Apesar de que suas posições positivas eram também claramente burguesas, reformistas, pois consideravam necessário transformar a Rússia em um país capitalista progressista, foram conscientes do desenvolvimento dos irreconciliáveis antagonismos de classe entre, por um lado, “a classe operária desorganizada […] que leva uma existência miserável” e, por outro, a “nova burguesia” (os funcionários responsáveis, os diretores de empresa, os homens de confiança, os presidentes dos comitês executivos) e os NEPmen (“homens da NEP”). Ao mesmo tempo eram conscientes de que os sindicatos não eram mais organizações de defesa dos interesses econômicos dos trabalhadores, senão “organizações para defender os interesses da produção, isto é, do capital estatal, primeiro e sobre todas as coisas”.
– O Grupo dos Comunistas Revolucionários de Esquerda, que se propunha a constituir um verdadeiro “Partido Comunista Operário”, dado que o “Partido Comunista Russo havia feito dos negócios sua principal ocupação”, e que “não existe nenhuma possibilidade de reformar o Partido Comunista Russo por dentro”. Ao mesmo tempo, acusava a Internacional e sua política de compromisso com o capital de constituir um instrumento “da reconstituição da economia capitalista mundial”.
– Por último, o grupo programático e historicamente mais importante, o Grupo Operário Comunista, cujo dirigente mais conhecido foi Miasnikov. Sobre a crítica que este grupo realizou contra a política capitalista dos bolcheviques, temos previsto um trabalho especial que aparecerá proximamente nesta revista[12].
Passemos agora a ver a resposta “intelectual” que os bolcheviques oficialistas e seu chefe Lenin darão às esquerdas comunistas (além da resposta intelectual, existia a repressão aberta, é bom lembrar), pois esta constitui a exposição mais acabada da coerência global que guiava toda política econômica e social dos bolcheviques.
Notas
[1] “Todos os dados russos, mesmo aqueles que aparecem na História do Partido Comunista (Bolchevique) e no Manual de Economia Política, profundamente stalinistas, concordam em afirmar que a produção industrial russa atingiu o seu nível mais baixo em 1919 e que então a produção era 1/7 em relação aos níveis do pré-guerra. Isso confirma o que falamos sobre o quadro em relação à queda da produção entre 1913 e 1920, que é quase 87% do seu nível inicial. Não se encontra nenhum outro exemplo histórico de uma queda de tal gravidade. A máxima queda provocada por uma crise econômica dessa gravidade é a que conheceram os Estados Unidos e foi de 46%, isto é, metade do desastre industrial russo, um quarto em referência ao seu ponto de chegada. Além disso, nos EUA essa queda ocorre a partir de um nível elevado de potencial industrial, muito maior do que o máximo russo do pré-guerra. […] Se considerarmos as quedas máximas na produção industrial causadas pela guerra, descobrimos que os valores máximos correspondem duas vezes à Alemanha (45 e 69%) e uma vez ao Japão (70%) […] (o que, no pior dos caso) deixa em pé por volta de um terço (31% e 30%), ou seja, ao menos o potencial industrial que a Rússia tinha antes da queda”. Bordiga, Structure economique et sociale de la Russie d’ajourd’hui, p.38-9.
[2] Os textos aqui referidos foram publicados em 1984 na revista Comunismo, nos números 15, 16 e 17. Em seguida, eles continuaram a ser discutidos internacionalmente e reformulados, assim esperamos republicá-los melhorados. O próprio título do texto sobre o movimento do proletariado na Ucrânia deve ser mudado, pois discordamos com a identificação que foi feita do mesmo com o militante revolucionário Nestor Makhno.
[3] O particular em Kronstadt não foi o massacre de proletários, nem de militantes revolucionários, coisa que existiu desde que os bolcheviques tomaram o poder, mas era a primeira vez que a direção do Partido Bolchevique ordenava a matança em massa de companheiros de partido. Na véspera da guerra imperialista (“segunda” guerra), esse método tinha sido usado tanto que já não restavam militantes revolucionários que tivessem participado na insurreição de outubro 1917.
[4] Quando escrevemos este texto pela primeira vez, dizia: “As expressões mais elaboradas da luta do proletariado contra a liderança bolchevique emergiram do próprio Partido Bolchevique”. Hoje, ao publicar o livro, baseado em um melhor conhecimento da história do socialismo revolucionário na Rússia e em particular dos diferentes grupos e partidos que se denominam desta forma, consideramos que é indispensável corrigir aquela afirmação. Houve, desde o início, socialistas revolucionários de esquerda e organizações proletárias que se reivindicaram do maximalismo, assim como no anarquismo revolucionário e no anarquismo comunista, que expressaram as posições clássicas do proletariado revolucionário e lutaram ferrenhamente contra o Estado burguês dirigido pelos bolcheviques. Como não podíamos modificar completamente o texto neste sentido, sublinhamos alguns elementos a respeito na apresentação do livro.
[5] Na verdade não há termo muito apropriado para estas frações. O termo “oposição de esquerda” induz à confusão, porque ele está associado com a oposição que logo seria liderada por Trotsky, Zinoviev,… que devemos diferenciar radicalmente. De fato, foi durante estes primeiros anos que todo o futuro da sociedade era decidido na Rússia e o que seria conhecido como Oposição de Esquerda surgiria logo que seus principais representantes tivessem desempenhado um papel decisivo no Estado na afirmação da contrarrevolução e da repressão proletária. Além disso, Trotski, Kamenev, Radek e Zinoviev foram tão decisivos quanto Lenin e Stalin na conformação da sociedade russa atual. Portanto, essas oposições dos ex-responsáveis bolcheviques sempre foram confusas, nunca chamaram claramente à revolução social, mas defenderam o modo de produção imperante e chamaram de maneira obsequente ao apoio supostamente crítico ao Estado. Em vez disso, estas primeiras oposições denunciaram os bolcheviques, com razão, como pró-capitalistas.
[6] Como já dissemos, esta é apenas uma expressão dessa luta. Houve outras mais radicais e consequentes, como a que foi levada adiante contra toda a política burguesa nacional e internacional leninista pelos socialistas revolucionários de esquerda e outros grupos revolucionários.
[7] Kommunist, No. 2, abril de 1918. Acerca de la construcción del socialismo.
[8] Citado por Lenin, Sobre o infantilismo de esquerda. Podemos ver em que extensão a contrarrevolução escondeu a obra da esquerda comunista, pelo fato de que a maioria dos textos daqueles revolucionários é inacessível até hoje. Muitas vezes conhecemos as suas posições – como aqui – sobre questões fundamentais da revolução internacional por citações feitas por seus adversários!
[9] “Preferem desempenhar o papel de ‘oposição à Sua Majestade’ proletária e não ir mais longe do que indignações respeitosas e pequenas correções. Na presença de diferenças tão profundas como as que constatamos, a tática escolhida pelos bolcheviques de esquerda é criminosa, porque quando você exclui ou dissimula suas diferenças, favorece esta mesma política, que do seu próprio ponto de vista descompõe e desorganiza a revolução operária e camponesa. Em nome da ‘unidade’ do partido, os bolcheviques de esquerda sacrificam a razão de ser do partido e a existência mesma da revolução”. Extraído do folheto publicado pelos socialistas revolucionários de esquerda em 1918 e reproduzido em Les Socialistes-révolutionnaires de gauche dans la Révolution Russe, une lutte méconnue (Socialistas revolucionários de esquerda na Revolução Rússia, uma luta desconhecida), Edições Spartacus, que não conhecíamos quando escrevemos a primeira versão deste trabalho.
[10] Aqui, como em outros lugares, Stalin não faz mais do que realizar o que Trotsky (e/ou Lenin) haviam defendido.
[11] As citações reproduzidas a seguir foram retiradas de um texto do ICC, La gauche communiste en Russie, números 8 e 9 da Revue Internacional (1977). Recordamos uma vez mais que, quanto ao que concerne a essas oposições, quando nós escrevemos este texto desconhecíamos a importância das oposições revolucionárias não bolcheviques.
[12] Ver No. 20 de Comunismo (outubro de 1985) e, particularmente, nesse mesmo número, o Manifesto do Grupo Operário do Partido Comunista da Rússia (Bolchevique) [N.T.: pode-se encontrar o manifesto em espanhol aqui].
Traduzido do espanhol por Lucas. Revisado pelo Passa Palavra. As obras que ilustram o texto são da autoria de Kasimir Malevich.
Depois de ler essa tradução, fica uma sensação de inconclusão. Embora sejamos alertados, lá no começo, que se trata de um trecho de um capítulo de um livro, a tradução acaba onde as coisas começam a ficar interessantes. Seria interessante que o tradutor continuasse a tradução.
O texto é interessante porque traz alguns elementos importantes para o debate. Que houve resistência à política capitalista da direção bolchevique no poder, por parte de diversos grupos com inserção na classe trabalhadora e/ou originados a partir da classe trabalhadora, inclusive por parte de membros do próprio partido bolchevique, não é muita novidade, mas o texto acrescenta duas reflexões importantes: a de que a direção bolchevique (principalmente Lenin, chefe do governo) foi obrigada a reconhecer o caráter capitalista (embora, na sua concepção, transitório) de suas políticas, por conta da resistência encontrada; e a de que o governo bolchevique caracterizou-se por oscilações, com idas e vindas, determinadas pela dinâmica da luta de classes, por vezes violenta. Outra reflexão importante é a de que as questões da estatização, planificação, centralização etc. foram discutidas e tomaram forma, primeiramente, nas ruas, por vezes em contextos de luta violenta entre classes e frações de classes. E uma última reflexão importante é a de que, mesmo entre aqueles que faziam oposição à direção bolchevique e, consequentemente, ao governo bolchevique, havia pontos de concordância com as medidas implementadas pelo governo, reforçando a posição do governo.
Mas todas essas questões, me parece, são a preparação do debate. E o texto termina antes que essas questões possam se desdobrar e ser tratadas particularmente, isto é, de acordo com a ideologia e a prática particular de cada oposição ao governo bolchevique ou, pelo menos, das que os autores do texto consideram mais importantes: chegamos a acompanhar brevemente o percurso da primeira oposição, reunida em torno do jornal Kommunist; acompanhamos também, brevemente, o percurso da Oposição Operária; mas, quando aparecem as oposições que, para os autores, foram verdadeiramente revolucionárias, porque deram prosseguimento à oposição na clandestinidade, o texto acaba (o grupo Verdade Operária, o Grupo dos Comunistas Revolucionários de Esquerda e o Grupo Operário Comunista).
Apesar disso, a atribuição de um caráter verdadeiramente revolucionário apenas aos grupos que prosseguiram a luta na clandestinidade já vale um debate em separado, inclusive a caracterização da Oposição de Esquerda como “pseudo-oposição”. Ora, a Oposição de Esquerda pode não ter colocado em causa os principais fundamentos do regime soviético, a burocracia e o predomínio do Estado no âmbito econômico, mas ela chegou a recorrer à clandestinidade para divulgar suas propostas e, no período stalinista, teve membros assassinados, inclusive o filho de Trotsky, Leon Sedov (isso demonstra que ela era uma ameaça séria a Stalin, mesmo que ela não rompesse completamente com o regime soviético). Outro ponto que merece um debate à parte é atribuir à Oposição Operária uma capitulação vergonhosa, pois a Oposição Operária fez críticas internas, corajosamente, justamente no momento da repressão ao movimento de Kronstadt, que coincide com o X Congresso do partido, em março de 1921 (ora, os autores do texto reconhecem, na nota n. 3, que a direção bolchevique ordenou, durante a Revolta de Kronstadt, pela primeira vez, o massacre de seus próprios companheiros de partido).
Seja como for, o fato de que a tradução termina por aí (e não há qualquer menção à publicação de outras partes do texto traduzido) é tanto mais grave quanto lemos, na nota n. 8, que os documentos dos movimentos de oposição são pouco conhecidos e que, como consequência, são acessíveis, muitas vezes, somente a partir das citações de seus adversários; ao que tudo indica, o texto original analisaria, a seguir, as respostas de Lenin aos opositores e, provavelmente, detalharia um pouco mais a atuação daqueles três grupos (Verdade Operária, Grupo dos Comunistas Revolucionários de Esquerda, Grupo Operário Comunista).
MAIS & MELHORES BLUES (para gáudio de Fagner Enrique)
https://libcom.org/library/o-leninismo-contra-revolu%C3%A7%C3%A3o-gci-icg
https://libcom.org/library/o-leninismo-contra-revolu%C3%A7%C3%A3o-segunda-parte-o-leninismo-como-supressor-da-ruptura-comunis
Fagner, a melhor resposta aos seus comentários seria continuar a tradução da obra. No entanto não tenho este projeto a curto prazo, quem sabe logo encontro tempo para fazê-lo. Fica este texto como convite à leitura em espanhol, que não é nenhum bicho de sete cabeças. No mais, aponto uma questão: o livro ao final não chega a tratar dos pequenos grupos de oposição bolchevique, apenas trás um apêndice com alguns breves textos sobre os Socialistas Revolucionários de Esquerda e sua atuação clandestina pós-1918, como parte de uma dívida pendente na recuperação histórica que os autores quiseram fazer nesta muito breve história das oposições revolucionárias nos primeiros anos do novo regime.
A minha escolha em traduzir este capítulo também é uma certa dívida que eu tinha nos debates aqui feitos sobre a Rev. Russa, já que me parecia haver pouca atenção à tais grupos e como eles se encaixavam no movimento histórico e político em questão — creio que para mim essa é a forma de dilucidar aos poucos as duas palavras que nos meios políticos pelos quais circulo (virtual e presencialmente) muito se usa e para as quais eu menos consigo ter uma noção clara a respeito do que se pretende significar: “autonomia” e “leninismo”. Para muita gente, leninismo pode ser equivalente a partido, a autoritarismo, a socialismo científico, a centralismo democrático, etc… e nem vou entrar na questão da autonomia. Na perspectiva desta obra, leninismo diz respeito particularmente à forma adotada pela direção bolchevique, em sua aliança com os gestores para manter o Estado burguês “à serviço do proletariado” [talvez seja interessante ler, nesse sentido, a obra que o Ulisses indicou aqui para um maior esclarecimento deste significado na perspectiva destes autores]. Posso adiantar, já que te pareceu o ponto mais interessante do debate adiantado, que para os autores as posições da virada capitalista de Lenin (concedendo que sua obra “Estado e Revolução” propunha a destruição de fato do Estado burguês, e portanto uma posição bem mais à esquerda do que realmente chegou a tomar uma vez no poder) tem 2 textos como fundamento: “Sobre o infantilismo da esquerda” [não confundir com o “A doença infantil…”] e o “Sobre o imposto em especie” [aclaro que não li nenhum dos dois e não sei se assim se traduzem ao português], dando gás às interpretações estatistas do socialismo e transformando as análises classistas da sociedade em análises de “massas pobres” contra “pequenos capitalistas”, etc.
Particularmente sobre o grupo de Miasnikov, que mereceu destaque para os autores, é uma pena que o número da revista dos autores em que tratam especialmente sobre esse grupo não está disponível em versão digital. O que pude encontrar na internet foi o manifesto do grupo em espanhol, que é um documento interessante, publicado clandestinamente em 1923 e que resume muitas das críticas que Mianikov vinha fazendo já nos anos anteriores, e também um artigo de Paul Avrich sobre o tal grupo, em inglês, que é extenso, conta a vida de Miasnikov e como o regime ia lidando com esta figura, as vezes diplomaticamente, as vezes expulsando-o do país, até que o stalinismo decide matá-lo logo após a segunda guerra. E no final deste artigo encontrei algo muito interessante que me remete aos textos do João Bernardo sobre Lucien Laurat:
For the rest of his life the cult of the proletariat dominated Miasnikov’s thinking. Neither his disillusioning experience in Russia nor the bitterness of emigre life could shatter his high hopes and fervent faith in the ultimate triumph of the workers. Following Trotsky’s rebuff, however, he became an isolated figure. From Constantinople he received permission to go to Paris, where he settled in October 1930, finding work at his old trade in a metals factory. In 1931, he published his manuscript on the Soviet bureaucracy under the title of Ocherednoi obman (The Current Deception). Two years later, when the French Marxist Lucien Laurat issued a similar treatise, Trotsky was quick to note the parallel. Laurat, he wrote, was “obviously unaware that his entire theory had been formulated, only with much more fire and splendor, over thirty years ago by the Russo-Polish revolutionist Machajski,” and that, only recently, the same idea had been put forward by Miasnikov, who maintained that “the dictatorship of the proletariat in Soviet Russia has been supplanted by the hegemony of a new class, the social bureaucracy.”
https://libcom.org/book/export/html/1200
OBITUÁRIO
György Márkus (1934-2016)
O penúltimo vicediccionista sublukacsiano. Que a terra lhe seja leve!
Lucas,
O problema não é ser mais ou menos complicada a leitura do espanhol; aliás, se fosse para apenas indicar o original, bastava publicar um comentário com o link do texto. O prosseguimento da tradução e a publicação de novos trechos do livro seriam importantes por dois motivos: 1) o texto e o debate gerado por ele fariam parte do acervo do Passa Palavra; 2) o debate poderia prosseguir sem que fosse necessário fazer referência, frequentemente, a um conteúdo externo ao site, para tratar de um ponto ou outro.
Causa-nos surpresa (positiva) a exposição de materiais da esquerda comunista dentro do passapalavra, ainda mais do GCI, grupo com o qual temos inteira afinidade.
O contexto da obra sobre o leninismo pode ser acompanhado nas seguintes traduções, feitas por grupos brasileiros:
http://www.oocities.org/autonomiabvr/lenin1.html
https://libcom.org/library/o-leninismo-contra-revolu%C3%A7%C3%A3o-segunda-parte-o-leninismo-como-supressor-da-ruptura-comunis
Da nossa parte, estamos dando reparos finais em textos do próprio GCI (traduzidos diretamente do francês), do período 1986-1991, sob o título “Revolução e Contra-Revolução na Rússia”. Nossa atividade teórica foi em parte interrompida em parte por causa de ofensivas da repressão que nosso grupo tem sofrido dentro e fora dos meios virtuais (tanto de bozonaristas como de petistas e anarcoides) por assumir abertamente a autonomia proletária, a afirmação anárquica do comunismo e a luta sem quartel – dentro das próprias lutas sociais inclusive – contra todas as variantes da social-democracia/colaboração de classes, tenham o título que tiverem.
Recentemente caíram em nossas mãos não só textos do Manifesto do Grupo Operário de Miasnikov (facção mais fiel ao programa comunista no contexto da Rússia daquele período), que além do manifesto incluem cartas a Trotsky e o texto “O último engano”, publicado na França, como de outras organizações como a ala esquerda do partido social-revolucionário, a versão de Kommunist que circulou na Bulgária, escrita/publicada por uma facção que se manteve fortemente à esquerda da III Internacional.
Em todas as tentativas revolucionárias do proletariado existiram facções mais ou menos definidas em relação a onde queriam chegar e ao papel autônomo do proletariado na Revolução Social, a respeito da abolição do capitalismo e do Estado. Tais facções foram violentamente dizimadas pela social-democracia que, no poder irá usar os mais variados nomes (“socialista”, “comunista” e até mesmo “anarquista” conforme a conveniência oportunista do momento),e o estigma ideológico contra todas as forças revolucionárias que sinceramente se mantiveram no caminho da revolução – quase sempre a acusação de “doença infantil” do comunismo, de radicalismo “pouco produtivo”, de não levarem em conta as “condições objetivas” que a depender do reformismo serão sempre adversas a qualquer transformação, de não respeitarem a “marcha da história” que requer acordos – e logo renúncias – em relação à facções da burguesia, de não considerarem as “mediações”, as “transições” – na verdade transações e oportunismo traduzidos num jargão aparentemente dialético – que implicam trabalhar dentro das instituições burguesas, necessitando-se então mantê-las, etc..Essas facções são ao mesmo tempo a continuidade do programa revolucionário – que invariantemente é o mesmo, mas durante toda a história também aparecerá com diversos nomes, por vezes como comunismo, por vezes como anarquismo, por vezes como socialismo – e a afirmação dos avanços e debilidades da classe trabalhadora dentro de uma dada conjuntura num determinado período. Assim, na Rússia teremos facções revolucionárias que fazem uma ruptura inconclusa com a social-democracia. A Oposição Operária é o exemplo mais gritante (o ponto nevrálgico, centro de todas as debilidades estará na afirmação do sindicalismo como meio de gerir a sociedade), embora o Grupo em torno da revista Kommounist estivesse ressentido das mesmas características. Em todo caso, o grupo de Miasnikov foi o que mais longe chegou e não tardará a ser castigado pelo leninismo, excomungado por Trotsky e caçado por stalinistas russos e europeus ocidentais. Para se ter uma ideia, Miasnikov encontrou acolhida nas facções da esquerda comunista francesa e belga (influenciadas pela Esquerda Italiana, liderada por Bordiga), que já naquela época tinham uma atividade consistente e certeira contra a III Internacional e a bolchevização dos partidos ocidentais (esse papel no Brasil coube ao que sobrou do PCB, libertário e assumidamente comunista, de 1919 e ao destemido Antonio Canellas, alvo do ódio siamês de stalinistas e trotskistas). Na Bélgica, para se ter um exemplo, Miasnikov teve contato e correspondência com o grupo de Michelangelo Pappalardi, exilado italiano, uma das lideranças do importante grupo “L’Ouvrier Communiste” (“O operário comunista”), que na época era o que havia de mais próximo à revolução naquele país. No entanto, as inconsistências e incompletudes apontadas nos grupos internos ou expulsos do partido bolchevique apareciam também em suas oposições externas. Assim, o movimento de Kronstadt realizava o comunismo na prática, mas nas edições do Izvestia local acusava-se o governo de Lênin de “comunismo” (o que será um grande argumento em favor do anticomunismo anarcoide- e não anarquista -, de muitas décadas mais tarde). O mesmo pode-se dizer da guerrilha expropriadora e coletivista de Makhno, que no entanto era mais consequente a respeito de reivindicar o comunismo, embora agregando-lhe o diferencial de “libertário”, mais para efeito de afirmação contra a falsificação leninista do que para supor que no comunismo não há liberdade (cf. o papel do grupo de Makhno no exílio francês).
Sobre essa incompletude da ruptura revolucionária, mesmo nas facções mais avançadas, é importante observar que mesmo nos países ocidentais a coisa não era muito diferente. Assim, ainda no começo dos anos 20 a esquerda comunista belga lançava candidatos às eleições. No X Congresso do Partido é fato que a Oposição Operária votou a favor do esmagamento de Kronstadt, sendo nisso apoiada pelo KAPD alemão (o partido mais significativo do movimento do “comunismo de conselhos”) e pela esquerda italiana. Isto pode ser explicado seguindo-se o raciocínio de tais facções que imaginavam ser possível capturar o Estado russo ou que ainda dava para direcionar o partido bolchevique em um sentido revolucionário, que havia um governo em disputa (eis ai o germe da teoria do “estado operário degenerado” de Trotsky). Ou ainda, raciocínio falacioso que será repetido trilhões de vezes por stalinistas, trotskistas e todos os seus simpatizantes e assemelhados durante o século XX e também no XXI: que era preferível uma URSS visivelmente capitalista e convertida numa mistura de quartel e oficina de trabalho, mas com discurso aparentemente “socialista” (“era uma referência”, dirão os reformistas veteranos no século XXI), do que a contra-revolução aberta e declarada, que no caso em questão era o triunfo do exército branco e a restauração do czarismo. O que esse falso dilema revela e que tais facções não perceberam é que naquele momento já se revivia a contra-revolução, o termidor leninista já estava em andamento (um dos textos de Miasnikov se chamará “Contra o Termidor”), o plantio do stalinismo já era uma realidade e não era nenhuma coincidência a repressão a Kronstadt coincidir com o decreto proibindo frações e tendências dentro do Partido Bolchevique. Assim, praticava-se a repressão para dentro e para fora do aparato estatal. Esse movimento histórico foi perdido por essas facções, que embora tenham percebido o espírito dos tempos um tanto tardiamente (mas perceberam-no antes do trotskismo), mantiveram acesa a chama da rebeldia, das denúncias à contra-revolução em andamento e sintetizaram a resistência proletária ao capitalismo de tipo “soviético” na Rússia e no resto do mundo.
Outro evento pouco conhecido onde tais características do confronto entre a esquerda comunista e o estado capitalista de novo tipo encarnado por uma contra-revolução em andamento foi na Revolução Chinesa, mormente no período da Revolução Cultural (1966-69). Proliferaram no país tendências afirmando a autonomia revolucionária da classe trabalhadora, a necessidade do combate ao Estado e a recusa às relações sociais capitalistas mantidas pelo aparato maoísta. Facções como “Guarda Revolucionária de Shangai”, “Comitê Revolucionário de Hunan”, “Grande Exército Rebelde 22 de Abril” de Kiangsi tomaram posições teóricas práticas sobre o que identificavam como “nova burguesia” no poder após 1949 e sobre a necessidade de uma “nova revolução”. Tais movimentos padeciam das mesmas dificuldades que seus congêneres russos entre 1920-1926: alguns, por exemplo, acreditavam na possibilidade de uma “guinada à esquerda” do partido – e do próprio Mao – conforme se intensificasse a pressão da base. Com o envio do exército liderado por Lin Piao às ruas (seguindo ordem do próprio Mao), as guardas revolucionárias e os militantes de tais organizações encontraram o caminho da prisão, da morte ou do exílio. Mais tarde o “Grupo de Ação de Pequim” teria um rumo semelhante em 1989. Isso só para falar no exemplo chinês. Outros poderiam ser mencionados como o cubano, dada a posição das oposições de esquerda (sobretudo anarquistas) à opção castrista de capitalismo e a situação criada com a guerrilha conduzida majoritariamente por trabalhadores rurais em Escambray em 1960-63 (que ao contrário da lenda oficial, foi gangrenada pelo bloqueio norte-americano, ficando rapidamente desabastecida de armas e suprimentos). O ecletismo ideológico e o frentismo deste último caso ajudaram a descaracterizá-lo e a turvar as tendências proletárias e subversivas envolvidas.
Os fenômenos mencionados mostram uma trajetória vermelha perpassando as grandes experiências revolucionárias da classe trabalhadora, mantendo a memória da rebeldia, a crítica impiedosa da contra-revolução e a manutenção da orientação subversiva do comunismo dentro das limitações e possibilidades traçadas pela própria luta de classes – avanços e debilidades proletárias – e sobretudo a sobrevivência da perspectiva comunista mesmo contra seus autodenominados representantes que levaram adiante o desenvolvimento capitalista na prática.