“Você não pode esperar que uma instituição de patrimônio vá resolver os problemas da especulação imobiliária em Salvador. Isso compete à Prefeitura”. Entrevista com Márcia Sant’Anna
O Passa Palavra entrevistou a professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia Márcia Sant’Anna, que por mais de 20 anos trabalhou no IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em Brasília e em diferentes escritórios regionais, entre eles o da Bahia. Márcia Sant’Anna é atualmente uma das maiores especialistas brasileiras em preservação do patrimônio histórico e arquitetônico e nessa entrevista comenta o caso do empreendimento La Vue, centro de um escândalo nacional que levou à demissão de dois ministros do governo Temer. Primeiro o Ministro da Cultura, Marcelo Calero; e mais recentemente o pivô do escândalo, Geddel Vieira Lima, ex-ministro da Secretaria de Governo e proprietário de um apartamentos no empreendimento.
Passa Palavra (PP): Profa. Márcia, a disputa em torno do caso do empreendimento La Vue questiona também a legitimidade do atual governo, mas as atuais denúncias de corrupção envolvendo o agora ex-ministro Geddel raramente alcançam os problemas estruturais, ficando no âmbito das disputas palacianas ou moralistas. Entretanto, nada disso é novo. A Prefeitura de Salvador e o mercado imobiliário atuam sistematicamente e há muito tempo a favor da especulação. Queríamos começar a entrevista entendendo como se deu a extinção do ETELF (Escritório Técnico de Licenciamento e Fiscalização), qual a relação dele com o IPHAN (regional e nacional) e o qual o nível de interferência dos interesses do mercado imobiliário e da política na elaboração dos pareceres.
Márcia Sant’Anna (MS): Eu trabalhei no ETELF entre o final dos anos 1980 e o começo dos anos 2000. O ETELF foi criado no final dos anos 1980 para melhorar a gestão do patrimônio em Salvador, a partir de um convênio estabelecido entre o IPHAN, IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia) e Prefeitura de Salvador para evitar que os processos de licenciamento percorressem longas burocracias quando os órgãos não estivessem reunidos. O Escritório passa a ter fundamental importância porque a partir dos anos 1980 crescem em Salvador as áreas protegidas pelos dois órgãos e Prefeitura. Mas além de contornar a burocracia, o Escritório tinha uma outra missão, mais nobre e que nunca foi cumprida, que era a de funcionar como uma equipe de desenvolvimento de estudos (morfológicos, urbanísticos e históricos) de modo a normatizar de uma maneira específica todas as áreas protegidas do município de Salvador. E até hoje nenhuma das áreas protegidas através das áreas de proteção cultural e paisagística tem normas específicas estabelecidas. A Lei Municipal que regula as áreas protegidas é genérica, sem especificar nada e permitindo um vácuo onde cabem as mais diversas interpretações. O Escritório fez estudos para áreas do Centro Histórico de Salvador e propôs normas específicas para as áreas dos Perdões, Santo Antônio e Carmo, mas elas nunca foram aprovadas. Em Salvador há a situação na qual os conjuntos protegidos estão nessa situação, e o entorno dos monumentos tombados também. O Escritório também causava incômodo, já que emitia pareceres que contrariavam certos interesses imobiliários, mas não sei dizer se foi por conta do La Vue que ele foi extinto. Ele foi extinto antes do caso La Vue estourar. E vinha trabalhando precariamente por falta de apoio dos órgãos conveniados.
PP: Mas há fortes indícios de interesses políticos e do capital imobiliário na extinção do Escritório…
MS: O ETELF tinha problemas de funcionamento, tenho que reconhecer, inclusive que limitavam o seu próprio trabalho. Funcionava com insuficiência de técnicos, mas mesmo assim emitia pareceres e, em muitos casos, como disse, contrários a determinados interesses. Não descarto a possibilidade de que ele tenha sido eliminado [o convênio entre prefeitura e governo estadual não foi renovado] por causa disso. Mas, na realidade, independentemente do Escritório, dentro do IPHAN, pelo menos, quando um projeto como este chega para apreciação, há uma análise técnica preliminar e esta análise é enviada depois para a chefia da área técnica e depois para o superintendente regional, que podem reformar a decisão do técnico que primeiro analisou o processo. Isso já aconteceu inúmeras vezes na história do IPHAN. Muitas vezes a posição da superintendência entra em discordância com a da área central do IPHAN em Brasília, e é esta última que prevalece. E o IPHAN em Brasília pode também chamar o processo para si, que foi o que aconteceu no caso La Vue.
PP: Qual foi a justificativa técnica do IPHAN da Bahia para aprovar o projeto?
MS: No caso do La Vue, o IPHAN da Bahia não aprovou o projeto, ele simplesmente emitiu um parecer afirmando que o empreendimento estava fora da área de proteção e aceitou a delimitação proposta que excluía a área do empreendimento. Foi formado um grupo dentro do IPHAN da Bahia para fazer um estudo sobre a região da Barra (Forte de Santa Maria, a Igreja de Santo Antônio da Bahia e o Forte de São Diogo, este último de competência estadual). Mas não sei dizer se o estudo foi provocado pelas questões do La Vue ou se vem de antes. O estudo propôs a delimitação da área de entorno desses bens tombados, na qual uma parte da poligonal passa no eixo da Avenida Sete [de Setembro, trecho mais conhecido por Ladeira da Barra] após a área da Mansão dos Mariani, deixando de fora a área do La Vue, que, assim, deixaria de ser da competência do IPHAN da Bahia. O IPHAN da Bahia criou na realidade uma forma de se omitir.
PP: E mesmo assim ele teria validade?
MS: Nas áreas urbanas sensíveis – onde os interesses imobiliários se chocam com as áreas de preservação – normalmente são realizados estudos para delimitação de entornos. Eles são feitos nas superintendências, mas, antes de serem efetivados, são enviados à Brasília para análise e, muitas vezes, são levados ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural (instância que representa a sociedade dentro do IPHAN) para aprovação. Somente após esse percurso é que as delimitações são efetivadas e passam a valer como norma. E isso não aconteceu no caso do bairro da Barra. O estudo foi feito no âmbito local, foi aprovado aqui mesmo, mas não foi referendado por Brasília e nem pelo Conselho. O superintendente do IPHAN, quando esses estudos são feitos, precisa encaminhá-los para Brasília, que, por sua vez, os converte numa portaria da presidência para que, assim, passem a valer como norma. Do ponto de vista normativo, portanto, a decisão do IPHAN da Bahia é no mínimo frágil. Portanto, eu entendo que esse estudo realizado pelo IPHAN da Bahia, que envolve o La Vue, não é válido.
PP: O La Vue virou um escândalo nacional devido à denúncia do ex-ministro da Cultura, e por envolver diretamente outro ministro, Geddel, mas a gente sabe que em Salvador isso não é um caso isolado e que outros casos parecidos recentemente aconteceram, a exemplo da Marina Cloc, a Mansão Wildberger etc. Então, qual é a frequência com que os interesses imobiliários vêm passando por cima dos pareceres técnicos ou são emitidos pareceres técnicos de caráter duvidoso?
MS: No momento que este vetor de produção imobiliária, que começa na [Corredor da] Vitória, se consolida na região e ela vai se tornando uma área muito demandada por empreendimentos imobiliários de alto luxo, que apostam na possibilidade de uma vista particular para o “Espetáculo da Bahia”, cresceram muito as demandas por pareceres técnicos relacionadas a empreendimentos dessa natureza. Hoje, este vetor se expande em um conjunto de empreendimentos que descem pela Ladeira da Barra, por um lado e, por outro, pela Avenida Contorno, passando pelo bairro 2 de Julho e chegando à Cidade Baixa. Isso é parte de um movimento de exploração imobiliária de toda essa área com vista para a baía, que concentra muitos imóveis e conjuntos protegidos. Estamos diante de um fenômeno que se intensifica recentemente em Salvador, quando se cria a ideia, entre as classes altas, de que é desejável voltar a morar nessas áreas por causa da vista. A partir daí começam a aparecer no IPHAN as solicitações de aprovações de projetos como o La Vue. Alguns foram aprovados e outros, não.
PP: Pode citar exemplos?
MS: Por exemplo, quando eu ainda estava no ETELF, no começo dos anos 1990, houve uma proposta, que foi recusada, de construção de duas torres enormes em terreno de encosta próximo ao Yate Clube da Bahia e à Vila Brandão, numa área que ainda não era considerada ”non aedificandi“. Chegou ao IPHAN pelas mesmas razões do La Vue e o IPHAN negou. Na mesma época também houve a proposta da Bahia Marina que consistia não só do aterro (que foi feito), mas também da construção de duas torres de mais de 20 andares sobre o mar, o que também foi negado. Foram projetos que abriam alas para o momento atual. A Marina acabou se instalando, mesmo sem as torres e, a partir daí, começa a gentrificação da borda da baía com a apropriação dos trapiches. O projeto no Trapiche Adelaide, por exemplo, foi aprovado pelo IPHAN. Você tem nesta área uma situação muito difícil, pois não há estudos técnicos que determinem o que pode e o que não pode ser feito. Sem isso projetos desse tipo vão continuar a ser apresentados, pois esta é hoje uma das áreas mais disputadas da cidade.
PP: E a Prefeitura de Salvador?
MS: A Prefeitura se coloca como uma instância que não tem nada a ver com isso e joga a responsabilidade para o IPHAN, de aprovar ou recusar, quando a maior responsabilidade deveria ser dela. O que há de interessante nesse processo do La Vue é que não se fala na responsabilidade da Prefeitura de Salvador; não se fala, por exemplo, do licenciamento da SUCOM (Secretaria Municipal de Urbanismo), como se a questão fosse da competência exclusiva do IPHAN. Claro que o IPHAN não conduziu bem o caso, produzindo um estudo de entorno equivocado, e errou também por não ter encaminhado para as instâncias superiores… Mas o problema maior relacionado a esta área em especial, e a muitas outras também, é o vazio da ação municipal. Você não pode esperar que uma instituição de patrimônio vá resolver os problemas da especulação imobiliária em Salvador. Isso compete à Prefeitura. É a legislação urbanística e o planejamento urbano que têm este papel. Principalmente se levarmos em conta que Salvador tem muitas áreas protegidas pelo município. A verdade é que a Prefeitura não tem nenhum interesse em atuar neste aspecto, sendo cômodo deixar para o IPHAN as decisões. É importante deixar bem claro: a Prefeitura e o IPHAN têm obrigação constitucional de trabalharem juntos nessas áreas de valores patrimonial. É uma competência concorrente estabelecida na Constituição. O que ocorre é que a Prefeitura delimita as áreas de proteção cultural e paisagística e estabelece, genericamente, que é para proteger, mas não determina nenhum parâmetro específico e, quando isso existe, ela mesmo não os respeita.
PP: E esta omissão da Prefeitura serve somente para os grandes empreendimentos ou também acaba atingindo os bairros populares?
MS: Eu elaborei pelo menos uma área de proteção cultural e paisagística para a prefeitura nos anos 1980 quando eu trabalhava no projeto MAMNBA (Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia), que era um projeto de mapeamento e preservação dos terreiros de candomblé de Salvador. Pessoalmente, fiz o estudo da APCP (Área de Proteção Cultural e Paisagística) que existe até hoje para a área do Terreiro do Gantois, feito com ampla participação da comunidade, inclusive garantindo toda a necessidade de privacidade do terreiro, que se encontrava fortemente ameaçada pela verticalização da região que, então, começava a acontecer. Todos os estudos e normas ainda estão em plena validade e a Prefeitura nunca os respeitou, permitindo a construção de vários empreendimentos totalmente por fora da normatização vigente. É preciso, portanto, fazer a normatização, mas ela em si não basta. É preciso que a sociedade participe e conheça as normas específicas para poder pressionar o poder público quando elas não forem obedecidas. No caso do Terreiro do Gantois, nem se trata de grandes empreendimentos. Por ser uma área de ocupação popular, a Prefeitura nem se deu ao trabalho de analisar o que se passou ali. Eu tenho dito algumas vezes, e fico chateada comigo mesma por ficar repetindo, mas não vejo outra saída a não ser a participação da sociedade nesses processos. E não me refiro à participação em audiências públicas somente. É importante ter observatórios e organizações da sociedade que fiquem acompanhando sistematicamente, mobilizando e cobrando permanentemente. Se não houver isso, mesmo com legislação específica, o desrespeito ao interesse público continuará a acontecer.
PP: Para a maior parte da população que não é da área, que não tem o domínio técnico sobre o tema, parece que tudo não passa de uma guerra entre profissionais, poder público e mercado imobiliário. Mas qual é real impacto desse tipo de permissão (ou omissão) dos órgãos públicos na produção da cidade? Quais são os impactos diretos na vida da população?
MS: Há uma promiscuidade entre os interesses públicos e privados em Salvador. Principalmente no que diz respeito a interesses ligados ao capital imobiliário. É uma situação de todo o país, mas em Salvador ela surge de uma forma muito explícita e plenamente refletida no PDDU recém-aprovado. O problema passa ainda pelo financiamento das campanhas eleitorais e ensejam, depois, as liberações de gabaritos, taxas, coeficientes de aproveitamento e demais parâmetros que permitem construções absolutamente exageradas e inadequadas ao ambiente e à paisagem urbanos, enfim, à qualidade de vida urbana. E isso é algo que o Brasil não consegue resolver. Não há um nível de organização e participação social que coloque um freio neste processo. No caso específico da interferência do ex-ministro Geddel no caso La Vue, em qualquer lugar do mundo, ele teria que ser demitido sumariamente e não somente após uma grande pressão da mídia. Eu louvo a atitude do ex-Ministro Calero. Ele fez um bem à sociedade explicando os motivos da sua demissão. O IPHAN Nacional tomou também uma atitude correta ao reformar o parecer local e, ao fazê-lo, deslegitimou a delimitação do entorno que havia sido feita (e que excluía a área do La Vue). Agora, novos estudos terão que ser realizados para delimitar e normatizar esta área. A sociedade brasileira (e a soteropolitana em particular), contudo, não pressiona os órgãos públicos para normatizar essas áreas. O IPHAN, por exemplo, tem ingerência sobre toda a faixa da borda da baía, da Barra ao Comércio, que hoje é alvo de muitos projetos similares. A sociedade baiana poderia aproveitar esse episódio do La Vue para exigir do IPHAN um posicionamento mais detalhado, obrigando-o a abrir a discussão, de forma participativa, e a promover os estudos necessários para regulamentar toda esta área.
PP: Mas o IPHAN é um órgão federal…
MS: Sim, e o governo Federal, por exemplo, destina milhões ao PAC Cidades Históricas. Só para Salvador são mais de 200 milhões de reais destinados à recuperação de igrejas, de monumentos históricos, de antigos ascensores etc, mas não há nenhum centavo a ser aplicado em normatização, em planejamento, em suma, em definir o que se pode e o que não se pode fazer nas áreas tombadas. Por que não se investe nisso? Hoje, na minha avaliação, este investimento é um dos mais importantes, até porque esses processos se multiplicam aqui e em todas as cidades onde há bens tombados, a exemplo das intervenções na Marina da Glória, no Rio de Janeiro. Em várias outras cidades, o IPHAN passa por pressões similares. Mesmo assim, a instituição não se move de uma maneira ágil e efetiva no sentido de destinar recursos para a elaboração de estudos dessa natureza, em conjunto com os municípios e governos estaduais, para estabelecer, de forma participativa, um planejamento de salvaguarda. Por isso, absurdos como o La Vue ocorrem em todo o país.
PP: O IPHAN foi sistematicamente denunciado no atual escândalo, e você nos diz que é preciso também responsabilizar a prefeitura de Salvador pela liberação do empreendimento e pelas demais arbitrariedades. Mas além deles, além dos órgãos públicos, há o capital imobiliário…
MS: No Brasil se construiu uma ideia que confunde preservação com tombamento, implicando que tudo fica sob responsabilidade do IPHAN, como se esta instituição fosse a única responsável pelo patrimônio das cidades. Vamos imaginar outra situação. E se aquela zona onde se encontra o La Vue não contivesse bens tombados pelo IPHAN, e fosse apenas uma área de preservação do município, seria possível construir um edifício daquele tamanho ali? Como a Prefeitura permite isso? A Prefeitura é, em última análise, a instância que mais tem responsabilidade sobre a cidade e é inadmissível que o governo municipal não zele pelo seu patrimônio. Apenas por uma questão pura e simplesmente de zelo com a paisagem, já seria uma aberração a introdução de um volume como esse naquela área ou em qualquer outra da cidade. E é também uma aberração permitir, em qualquer lugar, que proprietários de uma nesga de terra daquele tamanho possam multiplicar o solo dessa maneira. Eu não entendo por que as cidades precisam ter torres residenciais de 30 andares, mas, em Salvador, isso virou algo corriqueiro. Esta cidade vive hoje um momento muito complicado e não somente nas áreas protegidas. A especulação e os interesses diretamente relacionados ao capital imobiliário invadiram a cidade com propostas completamente absurdas e nada acontece em defesa do interesse público, da cidade e da população, principalmente, quando isso atinge as localidades e comunidade mais pobres. Veja o exemplo da Linha Viva. Se fizermos um inventário dessas aberrações em Salvador, talvez nos coloquem num dos postos mais altos do ranking das cidades onde esse tipo de força está conseguindo se reproduzir e prevalecer de uma maneira absolutamente fora de controle.
PP: Profa. Márcia, para encerrar a entrevista, qual alerta você deixa aos movimentos sociais?
MS: Uma das principais formas, atualmente, de acumulação e reprodução capitalista é através da produção do espaço urbano, principalmente nos espaços que possuem algum elemento de distinção (paisagísticos, patrimoniais ou de qualquer outro tipo) que agregue valor. A única forma que há para resistir a isto é a mobilização da sociedade para exigir dos organismos públicos o estabelecimento de regras que sejam favoráveis à cidade e à população, e não somente aos investidores e empreendedores. Será que temos chances de fazer isto em Salvador? Eu espero que não fiquemos restritos ao La Vue, pois ele é apenas a ponta de um enorme iceberg.
Ótima e esclarecedora entrevista!!!