Não seria a primeira vez que abandonaríamos o calor da cama para ir militar no frio da rua. Por Santiago Menconi
CAPÍTULO I “AS PARTES EM QUESTÃO”
CAPÍTULO II “GÊNESE DE UMA LUTA”
Data: de junho do ano 2010 até o início do lockout
Em junho de 2010 o grupo DOTA passou a administrar a MONSA. A pouco tempo de iniciar a gestão, ficaram claros seus objetivos: eliminar o corpo de delegados e a organização dos trabalhadores. Para conseguir isso, com a cumplicidade da UTA, colocaram como empregados os “barra bravas” do clube Nueva Chicago, que funcionaram como a tropa de choque ameaçando os trabalhadores com armas, botando fogo nos carros dos delegados Cáceres e Marcolín e entrando – no melhor estilo de uma força tática – na casa do ex-delegado Daniel Farella, amarrando as mãos de sua neta e fazendo uma busca pela casa.
Nos meses prévios ao lockout a investida patronal recrudesceu. Despediram três trabalhadores: Lema, Siriscevic e Canullán, além de não pagarem salários e alterarem as condições de trabalho do Corpo de Delegados, e encheram de multas e suspensões o conjunto dos motoristas. Nessa mesma linha saíram à caça de Ariel Benítez. O grupo DOTA começou um guerra sem quartel contra este companheiro.
Na quinta-feira 18 de Junho de 2015 bloqueamos a Ponte Saavedra exigindo a abertura das paritárias [negociação salarial]; coordenando a partir da agrupação Interlinhas, fez-se o mesmo na Ponte La Noria com companheiros das linhas 540 e 165. Em paralelo, Marcelo Pasciuto havia intimado aos delegados para que encerrassem o fundo de luta; que não se permitisse mais a entrada dos aposentados nem da Susana – uma histórica companheira sem-teto – na garagem e, como se fosse pouco, poder despedir trabalhadores através do artigo 245 da LCT [Lei de Contrato de Trabalho]. O avanço da empresa era manifesto, de fato já vinham falando em demissão do Benítez.
Sem perder tempo, convocou-se a um estado de assembleia permanente. Depois da investida empresário-estatal na qual 1500 gendarmes [força policial que cuida da fronteira do país, mas utilizada para repressão] haviam desalojado a garagem de Maschwitz para esmagar uma greve, as expectativas depositadas na paralisação como método de luta estavam desgastadas; tínhamos que golpear de outra maneira. Após avaliar todas as propostas, as assembleias realizadas em ambas garagens uniram-se sob uma mesma moção: passaríamos à ofensiva através da não cobrança de passagens [1].
QUARTA-FEIRA 24
Na quarta-feira 24 de Junho ocorreu de fato a demissão de Ariel Benítez, que vinha sendo perseguido desde vários meses atrás. Naquele meio-dia, com a notícia, a raiva se desenhou no rosto de cada trabalhador. As assembleias foram massivas em todas as garagens, a tal ponto que os companheiros pediam a gritos tomar ações imediatas. Houve várias propostas: estavam os que queriam paralisar a linha já; os que, de forma menos arriscada, propunham começar com uma operação-padrão; e outro setor, no qual estava a maioria, que insistia com a não cobrança da passagem. Esta última proposta havia sido posta em prática nas greves anteriores, onde havíamos conseguido um êxito parcial conseguindo que os passageiros participassem da greve. Após terminar os detalhes organizativos, votou-se a mãos erguidas e, quase por unanimidade, ganhou a moção que propunha não cobrar passagens. Cada intervenção, como os resultados da votação, ficaram registrados no livro de atas da agrupação “Ao Volante”.
A garagem da Linha 60 na Plaza Constitución está formada por dois terrenos: no edifício velho, o da rua Guanahani 420, estão localizados o combustível e os escritórios da administração, junto com algumas oficinas; colado a este se encontra a segunda parte, que se usa como estacionamento e onde os motoristas esperam entre volta e volta. No seu interior, o grupo de ativistas mais comprometidos esteve analisando os pormenores da ação: havia que empapelar todos os ônibus com a consigna da não cobrança e tínhamos que nos reunir com os delegados das demais garagens para produzir um comunicado para a mídia que anunciasse a medida.
Aquela tarde combinamos uma reunião num bar próximo à estação Aristóbulo del Valle. O céu estava nublado e prometia chuva para as próximas horas, mas nada disso importava: apilhados sobre uma mesa, alguns companheiros junto ao corpo de delegados [representantes eleitos pelos trabalhadores] discutíamos os pormenores da ação. Um computador velho portátil ia tomando notas de cada uma das propostas a seguir. Naquela vez, diferente de outras reuniões, não demoramos muito em estarmos de acordo; ao final de pouco tempo, as redações dos principais jornais recebiam o seguinte e-mail:
DEMISSÕES DE TRABALHADORES E MEDIDA DE FORÇA [2]
Os trabalhadores da Linha 60 deixaremos de cobrar passagem a partir das 00h do dia 25/06, por tempo indeterminado.
O corpo de delegados e os trabalhadores da Linha 60 decidimos, mediante uma assembleia, o início da não cobrança de passagens por tempo indeterminado. Esta medida de força é em resposta à demissão injustificada de um trabalhador, e aos constantes atropelos que vêm sendo exercidos contra o conjunto de trabalhadores.
O grupo DOTA, atual administrador da linha 60, vem levando uma política de ameaças constantes aos trabalhadores e ao atual corpo de delegados. Às demissões por perseguição sindical dos trabalhadores Lema, Siriscevic e Canullán agora se soma a de Ariel Benítez, que foi demitido de forma discriminatória por um acidente de trânsito.
Em resposta a estas demissões e às constantes investidas do grupo monopólico – que deve 10 meses de salário aos representantes gremiais, suspensões arbitrárias e negativa de tarefas ao delegado Juan Manuel Tejada –, o corpo de delegados, junto ao conjunto de trabalhadores, decidimos em assembleia a medida de não cobro de passagem, a partir das 00h do dia 25/06. Isto é em protesto ao anteriormente exposto e como forma de nos solidarizar com o público usuário, que padece diariamente a precariedade do serviço brindada pela empresa.
Enquanto isso, nas garagens tudo ia encaminhado. Ao cair a tarde já havíamos esvaziado várias garrafas térmicas de mate [bebida idêntica ao chimarrão] e os baldes de cola caseira estavam prontos para colarmos cartazes. Os grupos de Whatsapp, assim como as timelines de Facebook, estavam em estado de assembleia permanente: todos eles ardiam em comentários contra a patronal. O ambiente estava fervilhando, a não cobrança de passagem estava para começar.
QUINTA-FEIRA 25
Às 00h da quinta-feira os empapelados sobre os ônibus haviam mudado de consigna, já não convocavam a lutar pelo aumento, agora convidavam o passageiro a viajar grátis. Para poder garantir a medida, e que não seja boicotada pelos fura-greves, tivemos que estabelecer vigílias. O ativismo da 60 está acostumado a este tipo de sacrifícios, não seria a primeira vez que abandonavam o calor da cama para ir militar no frio da rua. Cada vez que algum motorista afim à empresa saía para conduzir, era acompanhado por um dirigente da agrupação que o guiava no trajeto. Claro que nem todos aceitavam a companhia e, de vez em quando, um ou outro cobravam a passagem.
Enquanto os ônibus iam saindo, os companheiros os esperavam na porta para colar os cartazes e dar um ânimo. É oportuno dizer que o método de persuasão com os motoristas que se negavam a participar das medidas sempre foi o diálogo. No entanto, o presidente da 60, Marcelo Pasciuto, saiu dizendo na mídia que o Corpo de delegados “fazia reféns” aos trabalhadores que não estavam de acordo com sua política. Nada mais longe da realidade. Na 60 os fura-greves são uma minoria em relação ao ativismo, o boicote que eles podiam levar adiante não alterava o êxito de nossa medida.
Já durante a manhã o acatamento era massivo. Os companheiros do turno da madrugada traziam excelentes notícias da atividade: os passageiros subiam diretamente sem pagar passagem e os inspetores não eram suficientes para controlar os motoristas. Em cada parada os ativistas os abordavam fazendo assembleias; se algum inspetor conseguia escapar, era seguido de moto até a parada que pretendia controlar. Tudo estava dentro do planejado. Nas portas do Kentucky [cadeia de pizzarias] da estação Pacífico, um grupo de quatro motoristas faziam agitação com panfletos em mãos, enquanto as câmeras de televisão filmavam os feitos. Outro grupo bastante numeroso foi cobrir as paradas de serviço semirrápido, onde costumam trabalhar os “acomodados” pela patronal, ali também os meios de comunicação cobriram a ação. A atividade estava sendo exitosa.
A imprensa gráfica também tomou nota de nossa atividade. A agência Télam reproduziu o e-mail, quase em sua totalidade, na sua página web: “Através de um comunicado o corpo de delegados e os trabalhadores da Linha 60 informaram, após uma assembleia, ‘o início da não cobrança de passagens por tempo indeterminado.” Graças à difusão conseguimos que os passageiros conhecessem a medida antes de ler nossos cartazes. De fato, jogaram um papel ativo na não cobrança, sendo eles os que apertavam os motoristas que pretendiam cobrar algo. Como relata o motorista Guillermo Moyano:
As pessoas apoiavam, estava contentes porque o protesto era duplo: lutávamos pelo nosso e pelo deles, denunciando o mal serviço. Nas assembleias que ocorriam no ônibus, os passageiros se solidarizavam e nos agradeciam por não deixar eles a pé.
Com um clima de luta e um frio que cortava os ossos, terminamos o primeiro dia da não cobrança com um balanço excelente. A repercussão foi maior que a esperada e a patronal estava incomodada.
SEXTA-FEIRA 26
No segundo dia de nosso plano de lutas, a empresa tinha lançado uma feroz campanha de medo, na qual prometiam suspensões e demissões a quem se negasse a cobrar passagem. É normal, frente a qualquer medida de força, que os trabalhadores menos comprometidos com a luta ou os que estão próximos de aposentar sintam medo das represálias do patrão, e frente às ameaças, decidam não participar da luta coletiva. É algo que notamos nas atividades anteriores e, por isso, decidimos acompanhá-los no trajeto. Pelo contrário, e para nossa surpresa, foram os motoristas novos os que mostraram seu caráter insurgente e com grande potencial para levar os pesos da luta nos ombros. Enquanto eles conduziam, nós distribuíamos panfletos e fazíamos assembleias durante as viagens. Também aproveitávamos as paradas mais importantes para panfletar na fila e para ver se havia algum inspetor escondido amedrontando os motoristas.
Não demorou e as ameaças da DOTA se cumpriram, não com os companheiros novos, senão que apontaram contra nossos representantes gremiais. Por volta do meio-dia a empresa cortou o serviço dos delegados e a um dos nossos companheiros. Começavam a responder. À tarde ocorreu o menos esperado: em cada garagem recebemos a visita do esquadrão antibombas. Vários agentes desceram dos caminhões com suas roupas antifogo, queriam fazer buscas nos terminais porque, segundo o que receberam, havia uma ameaça de bomba. Ao vê-los, os companheiros começaram com as brincadeiras, até que um motorista ficou mais sério e alertou o resto: “Vamos falar um pouco sério, acabam de ligar da Zona Norte e lá também estão fazendo buscas, se esses caras estão entrando na garagem é por dois motivos: ou vêm para espiar ou vêm para implantar um flagrante e culpar a gente de alguma coisa. Vamos deixar para brincar depois e vamos acompanhar os agentes, para não ficar de bobeira e não acabar com um morto aqui”. Entre brincadeiras, os trabalhadores acataram e acompanharam os agentes na busca. Logo os bombeiros haviam buscado por cada esquina das instalações, supervisionados pelos motoristas que os acompanhavam sem perdê-los de vista. O suposto “atentado” era outra jogada da empresa e, como era de se esperar, não encontraram nada.
Não é demais explicar que nem o Estado nem a UTA reconheciam a não cobrança de passagem como uma legítima medida de força. De um tempo para cá nos propusemos a demonstrar o contrário. No ano 2014, graças a uma denúncia da DOTA, obtivemos uma sentença na Câmara Nacional de Apelações no Criminal e Correcional da Capital Federal, que resolveu o seguinte: “a sala confirmou a desestimação das autuações por inexistência de delito, no entendimento de que os imputados atuaram amparados em seu direito constitucional de greve”.
Ademais, rastreamos em hemerotecas os antecedentes da medida. Uma notícia encontrada na edição do jornal Crónica do dia 28 de agosto de 1989 nos chamou muito a atenção, a matéria da capa dizia: “Se não houver aumento, a partir de amanhã não cobrarão passagem”. Na nota, Roberto Fernández, Secretário Geral de nosso sindicato (sim, o mesmo que dizia que a medida era ilegal), dizia que: “esta será a primeira vez que os motoristas se negam a cobrar passagem” e ele sustentou que “em caso de que os serviços sejam paralisados, será por responsabilidade dos empresários.” O que nós fizemos então não foi mais do que retomar antigos métodos de luta; o que disseram de parte da UTA contra nossa organização, portanto, foi uma impostura que não resistiu a uma simples busca de arquivos.
Ao cair o sol, e sem a presença dos bombeiros, fizemos um fogo; essa vez para jogar umas carnes na grelha. Estávamos cansados e com frio, muitos companheiros tinham vários dias sem descansar os olhos. Já mais tranquilos, aproveitamos para ver o jogo da seleção argentina que naquele dia jogava contra a Colômbia pelas quartas de final da Copa América. Quando acabou a partida, com a vitória da celeste-e-branca nos pênaltis, tomamos uns mates fazendo o balanço do dia.
SÁBADO 27
Até o momento, a não cobrança de passagem vinha sendo efetiva: os passageiros agradeciam que o serviço não fosse interrompido e a empresa atacava a tática. No entanto, um militante do PO [Partido Obrero] nos dizia que estávamos tentando evitar a paralisação e que, cedo ou tarde, nos veríamos obrigados a interromper o serviço. Nós argumentávamos o contrário, dizíamos a ele que com essa medida ganhávamos a opinião pública ao mesmo tempo em que prejudicávamos os lucros da patronal. De todas as formas e para além do debate, seguiríamos com o que foi decidido em assembleia. Para poder fazê-lo e mantê-lo em pé sem desgaste, devíamos continuar com a propaganda sobre os usuários; para isso, votamos por fazer agitação nas principais paradas.
No sábado pela manhã, sob uma garoa abundante, fizemos uma grande atividade na Plaza Italia. Fomos à parada final do serviço Semirrápido com bombos e faixas, panfletamos e convocamos os passageiros das demais linhas a que viajassem grátis conosco. Após um tempo, uma ligação telefônica nos avisou de que alguma coisa ruim ocorria na garagem.
Quando chegamos à empresa nos topamos com uma situação inédita: o chefe de pessoal, junto com um funcionário administrativo, estavam interrompendo o serviço dos companheiros, obrigando eles a assinar uma planilha onde deveriam comprometer-se a cobrar a passagem. E, como se fosse pouco, tinham em mãos uma lista com o nome de 47 trabalhadores despedidos. Foi difícil tirar da cabeça a imagem do pessoal de controle tendo que dizer aos seus próprios companheiros que não podiam tomar serviço por estarem despedidos. O motorista Ángel Barrios, melhor conhecido como Coringa, relembra assim:
Quando cheguei me encontrei com o Turco limpando seu ônibus, pergunto para ele o que aconteceu: “me mandaram embora”, me disse “dá uma olhada que capaz que você também entrou nessa”. Chego ao controle e, efetivamente, me notificaram que eu estava demitido. Mas não era o único, eram muitos mais, e longe de ter medo ou pânico, sentimos uma liberação porque sabíamos que tínhamos que atuar. Era parte de nossa dignidade, e o fizemos, atuamos.
O detalhe anedótico foi contado pelos próprios trabalhadores despedidos. Começaram a dizer ao chefe de pessoal que ele era um filho da puta e a cantar que ele ia ter que enfiar os telegramas no cu. Cada demissão foi festejada. Eles sabiam, como sabemos todos, que na 60 não fica ninguém de fora e que se mexiam com 51, mexiam com todos.
Enquanto os motoristas ligavam para suas famílias para contar que haviam sido desligados da empresa, nosso delegado Ivan Iza foi até a estação policial realizar uma denúncia, mas mesmo depois de insistir com diferentes argumentos, não a quiseram tomar. O próprio delegado dos trabalhadores relata assim:
Junto a dois companheiros afetados por essa manobra fomos ao Departamento Policial 26, que tem jurisdição, para denunciar o lockout. Os companheiros e suas planilhas eram uma prova contundente. No entanto, a oficial de serviço não tinha a mais remota ideia de que isso de “locau” fosse um delito ou algo parecido, e menos ainda de que esse nome faça referência a um delito de parte do empresário. Imediatamente foi buscar o seu superior, o subcomissário Sánchez para não seguir com a situação vergonhosa, já que nossa insistência aumentava. Claro, eu não sou advogado, mas antes de entrar lá eu liguei para nossos advogados companheiros e, em minutos, me tornei um especialista em Direito Penal e disse a ele: “Artigo 158 do Código Penal, olha aí que está bem claro. (ARTIGO 158. – Será reprimido com prisão de um mês a um ano; o trabalhador que exerça violência sobre outro para compelir a tomar parte em uma greve ou boicote. A mesma pena sofrerá o patrão, empresário ou empregado que, por si ou a nome de alguém, exerça coação para obrigar a outro a tomar parte de um lockout e abandonar ou ingressar a uma sociedade gremial ou patronal determinada)”. Como o senhor Sánchez não podia nos convencer de que estávamos errados, decidiu seguir o litígio em sua sala e não no saguão. Chegando lá, passando-se por simpático aposta um café comigo de que ele tem a razão; busca o artigo mencionado no seu computador e passamos a ler palavra por palavra – eu já quase do lado dele da mesa – e ao perceber que ele perdeu para o grande júri da 60, fecha a página de internet, levanta da cadeira com força e nos diz que não tem nenhum “locau”, que se quiséssemos podia tomar uma declaração nossa ou algo assim e que não enchêssemos mais o saco (esse último foi subentendido com seus gestos). Assim conhecemos o senhor Sánchez, quem dentro de alguns dias teria um papel central em todas as manobras contra a gente feitas pela Policia Federal [força policial até recentemente responsável pelo território da Capital Federal]. Já não havia o que fazer ali. Saímos em busca urgente por um escritório do ministério público de plantão, mas esse sábado à noite não houve nem procurador nem escritório que tivesse a luz acendida. Terminamos, pela necessidade de que constasse ante alguém o lockout, fazendo uma denúncia em uma estação policial da polícia Metropolitana, com o fim de chegar a utilizar a denúncia nas primeiras horas da segunda-feira. A guerra passava a ser declarada sem metáforas a partir desta noite.
De pouco em pouco nos dávamos conta de que a empresa ia vir com tudo para efetivar as demissões. Alguns diziam que já era, que tínhamos que paralisar o serviço; outros sustentávamos que não, que isso era o que o empresário queria: ficar como vítima frente à opinião pública. Pelo contrário, decidimos continuar com a não cobrança de passagens e assim, frente ao impedimento de nos dar serviço, seria a própria patronal que garantiria a paralisação. Alguns de nós fomos a nossas casas buscar roupa abrigada e mantas para a noite, sabíamos que a luta ia ser longa e que, de agora em diante, dormiríamos na garagem.
DOMINGO 28
Nas primeiras horas do domingo já havia novidades. Uma ligação telefônica de Rincón nos deu a notícia de que, em ambas as garagens da Zona Norte, o pessoal de controle havia abandonado a empresa. Em Maschwitz, um grupo de passageiros foi até o guichê de atenção para reclamar com os funcionários hierárquicos. Cansados de esperar o ônibus, começaram a insultá-los com a confiança de quem tem razão; encurralados pelo povo, abandonaram covardemente as instalações em um carro. Em Rincón nem precisou de justiça popular, sem dizer nenhuma palavra se foram da garagem.
Às duas da manhã o único controle que estava funcionando era o da Plaza Constitución. Haviam saído apenas dois fura-greves cobrando passagem. Os demais, impedidos de tomar serviço por ordem do chefe de pessoal, se juntaram aos companheiros que seguiam colando cartazes.
Nessas horas tivemos que suportar uma nova hostilidade. O pessoal de controle, colocado ali pelo empresário para este fim, provocava os companheiros com insultos e ameaças. Foi um supervisor – com antecedentes de capanga – quem ousou mostrar uma faca a um dos nossos companheiros. Naquele momento, frente ao medo de que os trabalhadores os expulsassem, foram embora por sua própria conta. Mas são tão cagões que chamaram a polícia para nos denunciar. Denunciar o quê?! Se foram eles mesmos que nos ameaçaram.
No meio deste incidente com os controles, os fura-greves que tinham saído para cobrar passagem chegaram de volta à garagem. Os companheiros, com raiva, foram tirar satisfação. Entre as coisas que disseram, pode-se escutar o que alguns despedidos diziam: “Vocês não percebem que são os bonequinhos do empresário e que vão despedir vocês também?!”, “Quanto é que o Faija te paga para foder com teus companheiros?” e “Depois você é que vai ficar na mão, seu lixo, o mundo dá voltas e amanhã pode ser você!”. Afrontados pelas verdades gritadas em suas caras, um dos fura-greves foi correndo à porta, teve a sorte de que justamente estacionava aí perto um carro da Polícia Federal. Logo que viu, começou a berrar “querem me bater, não me dão garantias!”. Na verdade a gente já tinha conversado entre nós que ninguém tocava nem ameaçava os fura-greves fisicamente.
Por questões legais fizemos a denúncia. Na estação policial vimos que os mesmos que nos haviam agredido agora nos denunciavam para a polícia. Depois de um par de perguntas, e depois dos trâmites formais, voltamos à garagem. Havia começado o lockout.
Outra vez, depois de bastante tempo, voltamos a sentir a liberdade que a luta dá. A garagem se encheu de companheiros. Alguns tinham começado um fogo para suportar o frio, outros se apertavam frente à televisão e os outros tomavam mate por aí, indo e vindo ocupado com alguma tarefa. O clima era bom, apesar das demissões, ninguém tinha medo e todos mantinham um bom humor. Naquelas rondas de mate e de fogueira, as conversas giravam em torno das anedotas e vivências das greves passadas, como esta que um companheiro velho contava ao resto:
Uma vez em uma greve fazia um frio da porra, era de noite e a gente propôs fazer uma partida de futebol para sentir um calor. Organizamos os ônibus no estacionamento e acendemos os faróis: parecia um estádio, estava tudo iluminado. Bem, a questão é que depois de jogar um pouco, alguns começaram a trazer os extintores de incêndio e a encher o campo com esse pó branco. Ficou tudo nevado, parecia Wembley mas era a 60. Lembro que fizemos uma partida simbólica: a patronal contra a agrupação, nós ganhamos nos últimos minutos e demos a volta olímpica, foi lindo!
Passamos aquela tarde em guarda, não sabíamos qual carta poderiam jogar e, pelas dúvidas, nos mantivemos em estado de assembleia permanente. Nas rondas de mate abundavam explicações sobre o que significava o lockout; este termo em inglês, novo para muitos. Embora na 60 tenhamos feito muitíssimas paralisações, nunca nos tinha ocorrido que quem o fizesse fosse o empresário. Um companheiro citou o exemplo do lockout em pleno governo peronista, onde a resistência patronal paralisou o serviço por três dias frente o decreto que implicava o aumento dos salários, o décimo terceiro e a dupla indenização. O clima era bom, depois das explicações a gente relaxou um pouco jogando truco e xadrez.
A indignação voltou à noite, quando escutamos pela televisão o discurso que Pasciuto dava. Ele nos acusava de ter ocupado ilegalmente a 60, também dizia que éramos uns gangsteres e que “na sexta-feira um motorista cobrou passagem, não aderiu, marcaram ele, seguiram ele com uma moto e cortaram um dedo dele”. Depois, se desvinculou publicamente do grupo DOTA e coroou a mentira dizendo que Ariel Benítez “teve 13 acidentes em três anos”. Frente a isso, em outro canal, quem se encarregou de responder foi o delegado Hugo Schwartzman, que lembrou ele de que: “ele também foi motorista da empresa e teve um acidente fatal em Las Heras e Pueyrredón e um capotamento com lesionados no acesso a Tigre e a rodovia 197, e agora quer demitir trabalhadores que querem trabalhar.”
Um companheiro tirou a televisão da tomada, ninguém dava crédito a tanta mentira junta. A sala foi se esvaziando pouco a pouco, alguns foram dormir nos seus carros ou em algum ônibus. Os que ficamos acordados continuamos conversando sobre o discurso do Pasciuto, nos perguntávamos se efetivamente seriam capazes de cortar fora o dedo de algum fura-greves para justificar sua ficção. Com a intenção de sublimar e mastigar a raiva, pintamos as instalações da empresa. Numa parede grande fizemos um grafite, o já clássico “Ao Volante” e, sobre a entrada, mandamos a real: Fernández + Faija + Tomada = lockout patronal.
ALGUMAS CONCLUSÕES:
Antes da demissão de Ariel Benítez uma ideia desmoralizante invadia a cabeça dos companheiros: “não é possível partir para a ofensiva contra a patronal quando ela está apoiada pelo Governo”. Para piorar, o panorama externo era desfavorável para a gente, dado que as últimas lutas sindicais não haviam triunfado. Depois de ter falhado com as paralisações, tivemos que tomar a tarefa de buscar outro método, e conseguimos. A não cobrança de passagens nos deu novos ares e demonstrou que, soldando a solidariedade com os usuários, podíamos isolar a patronal e escapar das medidas repressivas da justiça.
Notas dos tradutores:
[1] Não há catracas nos ônibus na Argentina, o pagamento é feito direto ao motorista e mais recentemente por meio do bilhete eletrônico.
[2] Uma medida de força é uma ação direta gremial, pode ser um piquete, uma greve ou a não cobrança de passagens.
Tradução de Lucas e Pablo Polese.