Embora feministas reconheçam noções de bom e mau sexo, despojam-nas de toda sua complexidade social. Por Maya John

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Como mencionamos antes, no processo de transição de um sistema socioeconômico pré-capitalista para outro capitalista, o estupro começou a ser definido não em função da falta de consentimento da comunidade ou da família para poder ter acesso sexual à mulher, mas pela falta de consentimento da mulher como indivíduo. Não obstante, a transição do pré-capitalismo pré-moderno ao moderno capitalismo foi um processo cheio de múltiplas e variadas complexidades. Aonde nos levou? À conjuntura histórica contemporânea: o predomínio do paradigma do direito burguês, que se por um lado se nega a identificar certos atos como estupro (como, por exemplo, o adultério, a fuga de casa, as relações à margem do casamento etc.), por outro não consegue identificar outros atos como estupro (como as agressões sexuais dentro do matrimônio ou durante um encontro). Este paradigma legal tende a trabalhar com uma noção de consentimento extremamente problemática, na qual certo tipo de aceitação, por exemplo, aceitar se casar ou sair com alguém etc., se confunde com o consentimento de manter relações sexuais.

Evidentemente, outra importante limitação do direito burguês é que embora aceite e reconheça certas experiências individuais como estupro, o faz apenas de maneira parcial. Isto é, apesar de que as noções de danos, lesões e erros/injúrias (sofridos pela mulher como indivíduo) foram incorporadas à categoria de estupro, isto foi levado a cabo de maneira muito problemática, concebendo esses danos ou lesões acima de tudo em termos de dano social causado à vítima. Para esclarecê-lo, a noção de errado [no original, “wrong”, palavra com conotação jurídica que indica injúria, crime, difamação, calúnia – PP] que faz parte da categoria de estupro foi encaixada à força na posição última do estupro do eu; a invasão do espaço mais íntimo e privado da mulher; a destruição do eu; uma espécie de assassinato da alma, um crime espiritual, pois enquanto que o corpo pode se curar, a mente talvez não, nem o futuro da vítima etc. Portanto, o erro que se identifica com a categoria de estupro termina reduzindo-se à “desonra” sofrida, e com ela a exclusão social a que fica exposta a vítima. Estas duas noções são muito úteis para a categoria de estupro, pois ao mesmo tempo em que conservam o sentido do consentimento individual, também conseguem ligar este consentimento individual à questão da honra familiar ou comunitária, uma honra que supostamente se localiza nas partes mais íntimas e privadas da mulher (suas genitais, basicamente).

À margem dos mencionados problemas internos das leis, também está a questão do predomínio de sistemas “legais” (como as leis ditadas pelos khap panchayas, etc.) paralelos à legalidade burguesa, baseados em uma “moral econômica” e regulados pela autoridade das comunidades tradicionais. Estes sistemas “legais” informais têm mais importância nas aldeias, onde a hierarquia de casta é palpável, o que leva a que os matrimônios entre indivíduos de distintas castas sejam extremamente difíceis. Aqui, o nexo entre a polícia local e as castas dominantes torna quase impossível que os direitos dos adultos sejam reconhecidos pelas leis institucionalizadas. As fatwas ou os ditados dos organismos locais das aldeias, que reclamam a anulação de alguns compromissos de casamento, ou a pena de morte, o boicote social etc., normalmente são ratificados e postos em prática. Só se retiram quando uma pressão externa logra que a polícia local atue para impor a lei estatal. Nas cidades, a lei burguesa já não tem que competir diretamente com sistemas paralelos de “leis” informais (comunitárias), e na medida em que os casais jovens trabalham nas cidades, vivendo longe de suas famílias e comunidades, têm maior facilidade para se casar livremente. Não obstante, o processo através do qual o sistema criminal de justiça verifica a capacidade das mulheres de dar seu consentimento, e determina se esse consentimento é aceitável em um juizado, é deficiente e altamente desejável[30]. O que tudo isso reflete é a própria forma, dada, do direito burguês, isto é, a realização completa da posição individual do sujeito, que está ainda por se desenvolver plenamente e difundir-se uniformemente de modo a diminuir suas inconsistências internas.

Neste sentido, a tendenciosa perspectiva do direito – especialmente no que diz respeito à definição do consentimento individual da mulher, ou do dano, agressão e erro/equívoco sofridos – abriu as portas a uma possível contestação. Em países como os Estados Unidos, as lutas encabeçadas por Brownmiller, Catherine MacKinnon [31] e Andrea Dworkin começaram a influenciar a forma como o direito tratava problemas como o do estupro, a pornografia e o assédio sexual. Suas intervenções, por exemplo, pavimentaram o caminho para que se eliminassem cláusulas muito significativas do direito, como o “requisito de castidade”. Segundo esta cláusula, os advogados defensores dos estupradores podiam apresentar ao juizado o passado sexual das vítimas, prática que permitia justificar os estupradores e que colocava as vítimas sob uma tremenda coação. Graças a algumas campanhas e a prolíficos compromissos com a comunidade jurídica, muitas destas feministas lograram que a “lei de proteção às vítimas de estupro” fosse aprovada em começo dos anos 1980, o que impediu, a partir de então, que os advogados levassem o histórico sexual das vítimas ao processo judicial.

Desde então se desenvolve essa tendência do movimento de mulheres a combater este modo (legal e patriarcal) de considerar o estupro. Estas lutas abriram interessantes perspectivas no sentido de ver o estupro de uma maneira mais amável para as mulheres. Em primeiro lugar, existe uma tendência crescente a pôr o acento no desconforto físico, incômodo e dor ligados ao estupro. Esta ênfase deliberada permite minimizar o caráter sexual da agressão na hora de determinar a punição. Isto é importante se queremos superar essa crença popular (que reforça o ostracismo que sofrem as vítimas de estupro) segundo a qual a sexualidade e os órgãos sexuais são partes “sagradas” do corpo, que há que proteger mais e de maneira diferente que as demais partes do corpo e a pessoa.

Aqui é importante assinalar a maneira como alguns tentaram responder ao paradigma legal existente, exigindo leis mais fortes, que supostamente impediriam futuras tentativas de estupro. A reclamação de leis férreas como a pena de morte por estupro, por exemplo, tem um caráter muito patriarcal, pois se centra acima de tudo no caráter sexual da agressão. Em vez de pôr a ênfase no dano e o desagrado (o que tornaria mais fácil considerar o estupro como outro tipo de violência física e castigá-lo da maneira correspondente), aqueles que apoiam a pena de morte, castração etc. terminam reforçando essa tendência a considerar o estupro como um tipo concreto de agressão na qual o dano e a dor causados são de épicas proporções, pelo que devem ser castigados com leis mais severas[32]. Assim, o problema destas severas (e, portanto, improdutivas) leis como a pena de morte, ou de medidas corretivas como o isolamento, é que reforçam o estigma associado ao estupro, e desta forma impedem que enfoquemos o problema de uma maneira que permita às vítimas andar por aí sem se sentirem eternamente marcadas. Além disso, só questionando esta marcada ênfase na natureza sexual da agressão se pode criar um espaço que permita reconhecer que existe estupro naqueles casos em que se costuma negar. Ao criar um espaço em que o estupro não se conceba como estupro da parte mais íntima e privada de uma mulher, mas com essa noção de mal-estar, desconforto e de repugnância, permitimos por exemplo que se reconheça o estupro no matrimônio, o das prostitutas, etc. Ao introduzir a noção de estupro baseando-nos no mal-estar, no desgosto, no dano e na dor, podemos, por exemplo, defender os direitos das prostitutas, que por sua profissão não podem dizer que tenham um espaço íntimo sagrado, e sim que podem sofrer estupros quando o cliente as obriga a algo ou vai embora sem pagar.

Ao contrário dessas campanhas (patriarcais) que tentam implantar leis “mais duras” contra o estupro, as reivindicações feministas de reformas legais representam nobres esforços que impulsionam a generalização do direito burguês, ou basicamente o desenvolvimento deste direito com a incorporação de amplas demandas. De fato, os recentes esforços do movimento de mulheres vão encaminhados a estender a categoria de estupro até incluir aquelas agressões que podem “começar de maneira consentida, mas terminar em submissão e sentimentos de dor, impotência, humilhação e estupro”. Estas campanhas do movimento feminino refletem que certos tipos de agressões/atos cada vez se percebem mais como violações, e não porque o sexo se leve a cabo à margem do “direito” patriarcal ao acesso sexual, mas porque o sexo se produz sem o completo consentimento da mulher. Isto quer dizer que existem muitos tipos de “mau sexo”[33] (que não respeitam os sentimentos, o desejo sexual e a completa satisfação da mulher) que poderiam e deveriam começar a se ter em conta na hora de distinguir entre o que é fazer amor e os distintos tipos de agressões sexuais. Seguindo este argumento (sobre as relações sexuais não satisfatórias), inclusive se a coerção física é mínima, e ainda que haja consentimento verbal, a experiência pode ser considerada como estupro.

Dito isto, devemos entender e afrontar as posturas feministas de maneira mais precisa, para ressaltar as lacunas que há neste tema do consentimento da mulher. Em geral, as feministas acertaram ao assinalar que o mau sexo predominante é um problema que deve ser abordado. É precisamente o mau sexo crescente em nossa sociedade que torna possível o estupro e outras formas de exploração sexual e sentimental. Se falamos do mau sexo dentro do casamento, é óbvio que uma de suas formas de expressão se baseia na completa falta de consentimento, isto é, uma forma de atividade sexual identificada como estupro conjugal. Tendo em conta que esta forma de mau sexo (o estupro conjugal) se baseia na falta de consentimento, as feministas lograram iniciar um debate dentro da comunidade jurídica burguesa, abrindo a possibilidade de que as velhas leis sobre o estupro venham eventualmente a ser revisadas. Este processo de revisão das antigas leis, entretanto, segue aberto.

Não obstante, as coisas se complicam na hora de tratar outra forma de mau sexo no matrimônio. O mau sexo também engloba aquela atividade sexual na qual as mulheres deram seu consentimento. Desafortunadamente, é no terreno destes encontros sexuais onde erram mais as feministas. As feministas liberais, por exemplo, consideram difícil ou incômodo rotular de erradas aquelas relações sexuais nas quais as mulheres, ao contrário dos casos de estupro em que o consentimento da mulher diretamente não se tem em conta, deram seu consentimento. Ao serem tão influenciadas pela lógica (burguesa) do direito comercial em que os indivíduos chegam a acordos “livremente”, as feministas liberais tendem invariavelmente a bater em retirada no que diz respeito à questão do mau sexo (consentido). Esta retirada se revela de maneira característica no exagerado empenho que colocam estas feministas por estabelecer se houve ou não consentimento durante uma relação sexual. E também se reflete em suas tentativas de ignorar os estragos que causa a prostituição, e em seus nulos esforços por reclamar sua legalização[34].

Ao contrário das liberais, as feministas radicais enfocaram esta questão do mau sexo (consentido) argumentando que todo sexo é estupro. Esta perspectiva também traz muitos problemas. Para começar, equivale a trivializar o estupro como categoria concreta de agressão sexual, mediante a qual as mulheres são exploradas através da completa transgressão de sua capacidade e de seu direito a dar seu consentimento. Segundo, e mais importante, o enfoque das feministas radicais mescla desnecessariamente o dano que implica o sexo não consentido com aquele provocado pelo mau sexo consentido. Ao negar a existência de um tipo diferente e concreto de dano, o provocado pelo sexo consentido, as feministas radicais não conseguem expor para suas irmãs os perigos que implica a perda do direito orgânico à “autonomia” sobre o próprio corpo e sobre a mente nas relações sexuais[35]. Ao negar que o sexo consentido possa se desenvolver de tal maneira que permita o prazer e a satisfação mútua, as feministas radicais tampouco logram expor o que pode significar realmente o sexo prazeroso para as mulheres.

Evidentemente, como mostra a exposição anterior, a críticas ao funcionamento do direito gira em torno de como a forma legal burguesa é atrasada com respeito ao teor de descontentamento que é gerado dentro da sociedade burguesa. As feministas bem podem seguir debatendo todos os detalhes do mau sexo consentido, mas dentro do movimento feminista progressista existe acordo na hora de considerar que ambos, tanto o estupro como o mau sexo, são problemas reais. A este respeito, o movimento das mulheres faz bem em pressionar com o que chamo reivindicações intermediárias, cujo objetivo é superar algumas das inconsistências do direito[36]. A importância destas reivindicações intermediárias é que elas servem de terreno para preparar lutas antissistema mais amplas. É neste próprio processo de preparação que o movimento feminino deve agir em auxílio da mulher usual, enquanto ao mesmo tempo expõe as enormes limitações que advêm quando se recorre ao direito e ao Estado. Por exemplo, a reivindicação e a luta subsequente para que se registrem obrigatoriamente as denúncias das mulheres (FIRs) nas delegacias locais permite que as mulheres vulneráveis e maltratadas tenham apoio externo, e torna o Estado responsável pela segurança das mulheres (responsabilidade que de outro modo o Estado burguês conscientemente se esquiva).

Não obstante, as reivindicações intermediárias para combater a violência contra as mulheres devem vir acompanhadas de uma política baseada na visão última da liberação da sexualidade humana (isto é, tanto do homem como da mulher), e portanto dirigida para a superação do capitalismo. Desafortunadamente, sob a forma como as organizações de mulheres colocam muitas destas reivindicações intermediárias, mais que servir de meio, de plataformas para uma política consistente e transformadora a largo prazo, elas se convertem em um fim em si mesmas e adquirem o caráter de reivindicações finais. Assim, pois, o que a contestação feminista ao direito não leva em conta é o simples fato de que ainda que a sociedade moderna lograsse reconciliar a forma do direito com seu florescente conteúdo (a opressão da mulher), ainda seguiria existindo certa falta de coerência que o direito seria incapaz de eliminar, e portanto a opressão da mulher seguiria de pé. Isto significa que, mesmo que se fortaleça a noção de consentimento individual, o direito burguês seguirá eludindo o fato de que o consentimento se estrutura mediante relações, e a maior parte das mulheres não está em condições de exercer uma ativa escolha individual. Como muitas vezes foi assinalado por algumas líderes comunistas como Clara Zetkin ou Alexandra Kollontai etc., a maior parte das mulheres não está em condições de exercer essa possível escolha, pois dependem abertamente de seus companheiros masculinos. Ao formar parte de um sistema socioeconômico que se desenvolve aumentando o desemprego para extrair o máximo trabalho a partir de quanto menos pessoas for possível, as mulheres ou estão sem emprego ou trabalham por salários miseráveis. Nestas condições, a dependência da família para o sustento econômico das mulheres é inevitável. As consequências são os péssimos casamentos, o mau sexo, a violência etc.

Está claro, pois, dado que estão envolvidos a mente e o corpo de duas pessoas, que é importante ter em conta como se pode estruturar o consentimento através das dinâmicas desenvolvidas entre as duas pessoas afetadas. A este respeito, o consentimento verbal sempre pode estar influenciado por sentimentos de obrigação, dependência etc. Os compromissos e a força (às vezes chamada de sedução) são possíveis graças às impressões mentais que entram em jogo, assim como às condições de dependência (emocional, psicológica, financeira) de seus maridos em que se encontram as mulheres. De fato, continuamente somos testemunhos de situações em que as mulheres, por medo de serem abandonadas, e devido a sua dependência econômica, consentem formas de sexo em que o prazer se separa do corpo-pessoa e nas quais o corpo das mulheres se converte em mero instrumento para o prazer masculino e não feminino. De fato, semelhantes formas de sexo nunca permitem que se desenvolva a gratidão, o afeto, nem o aprofundamento em uma relação entre duas pessoas (aquilo que em teoria deveria facilitar os encontros sexuais orgânicos).

A este respeito, pode a mera existência de um paradigma legal resolver este espinhoso problema do consentimento enquanto as condições materiais em que se baseiam as relações homem-mulher não sejam transformadas? Depois de tudo, por acaso a existência de um paradigma legal firmemente cimentado no consentimento individual pode gerar um terreno fértil para o bom sexo baseado na intimidade e no mútuo compromisso e consentimento? Não, definitivamente não. O mau sexo não é um problema sexual individual baseado na falta de compreensão do corpo feminino de sua esposa por parte do homem. Ao contrário, o fato de que o bom sexo siga sendo um sonho distante para a maioria de nossa sociedade constitui um problema social geral. Em um sistema socioeconômico em que a maioria suporta muitas horas de trabalho, apenas há tempo para cultivar as relações humanas e para compreender mutuamente nossos corpos. Neste contexto, muitos não têm outro remédio senão conviver com o mau sexo, ou presumir de um suposto bom sexo, como costuma ser o caso das mulheres das classes médias em ascensão.

É interessante assinalar que embora as feministas reconheçam e manejem as noções de bom e mau sexo, dentro do enfoque mais amplo de suas concepções estas noções ficam despojadas de toda sua complexidade social. As feministas liberais, por exemplo, pensam que o problema reside nos maus companheiros, que não buscam o consentimento de sua parceira feminina. Segundo esta postura das feministas liberais, para ter bom sexo tudo o que se necessita é liberdade para poder escolher um parceiro (adequado), liberdade para ter muitos parceiros, etc. Claro, aqui não se diz nada sobre se a escolha individual está em si mesma determinada pelo fato de que a pessoa escolhe aquilo que a sociedade moderna lhe oferece. Hoje em dia há feministas radicais que começam a aceitar que existe um problema mais amplo, mas dentro do marco do predomínio de uma (mais extensa) desigualdade social entre homens e mulheres.

Neste contexto, é ilusório pensar que o paradigma legal existente pode chegar a julgar e prevenir os danos que as distintas formas de mau sexo consentido causam às mulheres. Na realidade, a judicialização do mau sexo, sobretudo no que diz respeito a suas variantes formas de consentimento, vão para além do âmbito do direito burguês na medida em que seu paradigma legal se baseia na noção de acordo entre indivíduos “livres”. Segundo sua própria lógica, no marco de um acordo mútuo entre indivíduos livres, uma vez dado o consentimento, desaparece o problema da exploração, ou ela se torna algo imaterial. Isto significa que a questão do mau sexo e todas as suas múltiplas formas só pode começar a ser resolvida se a sociedade for para além da ideologia do livre mercado, um processo que só pode desenvolver-se se as relações humanas se desfizerem de todas as desigualdades que terminam reproduzindo o egoísmo, o sexo desumanizado e o sentimento de alienação com respeito a outros seres humanos. A desorientação dos argumentos das feministas radicais em suas tentativas de “empoderar” as mulheres e erradicar as desigualdades homem-mulher, e com elas a exploração sexual das mulheres, reflete-se em sua suposição de que as mulheres podem chegar a “empoderar-se” enquanto a outra metade da espécie humana permanece presa à exploração e à opressão criada por um sistema socioeconômico mais amplo.

(continua…)

Notas

[30] Em contextos urbanos, as famílias das mulheres que fogem de casa (e de casamentos arranjados) para escolher com quem querem se casar se aproveitam das disposições do sistema jurídico que podem ser usadas contra essas moças (tentativa de sequestro, etc.) de modo a que os procedimentos jurídicos e a conivência da polícia local com as famílias permitem aos “guardiões” masculinos exaurir estes casais durante os meses ou inclusive anos que dura o litígio. Por outro lado, informados por um viés classista a polícia local muitas vezes salta os procedimentos do sistema judicial até o ponto de rechaçar o registro de uma denúncia por desaparição de uma moça de classe operária, ou não se registra uma denuncia de sequestro quando a família da moça nomeia os suspeitos. Está claro que quando se trata das mulheres dos setores mais pobres da sociedade, a polícia geralmente supõe que abandonaram seu lar por vontade própria, o que lhes permite não ter que perder tempo procurando tal moça de modo a se assegurar de que efetivamente ela se foi por vontade própria, como prescreve a seção 164 do Código Penal.

[31] Catherine MacKinnon é uma destacada e influente investigadora jurídica. Ver Fred R. Shapiro (1996), “The Most Cited Law Review Article Revisited”, Chicago-Kent Law Review, vol. 71. E também Catherine Mackinnon (1987), Feminism Unmodified (Cambridge, Mass: Harvard University Press). Há que assinalar que sua perspectiva, como a de Dworkin, etc., se difundiu a outras partes do mundo através das redes de ONG multinacionais e os organismos financeiros que participam nas campanhas internacionais pelos direitos da mulher.

[32] Surpreendentemente, inclusive os intelectuais progressistas que, obviamente, estavam influenciados pela emotiva e tensa atmosfera que se criou depois do estupro coletivo de 16 de dezembro, começaram a reclamar penas mais severas, ainda que não do tipo da pena de morte ou castração. Por exemplo, um conhecido blogueiro progressista, Shuddhabrato Sengupta, deu a ideia de um isolamento perpétuo para os estupradores. (Op. cit., nota 9).

[33] Empreguei o termo mau sexo em vez de usar outro conceito mais adequado capaz de expressar a falta de reciprocidade, cuidado e satisfação em muitos encontros sexuais. O conceito de mau sexo, pois, se refere àqueles encontros sexuais em que o prazer de um implica dor, mal-estar ou desgosto para o outro.

[34] Exatamente ao contrário destas perspectivas das feministas liberais, outras argumentam que a prostituição (haja ou não consentimento) é violência sexual em si mesma, pois não é senão um estupro pago em que o dinheiro tem a função de pagar remorsos contra o homem. Por exemplo, veja-se Trisha Baptie (2009), “Sex worker? Never met one!”.

[35] Por perda de autonomia não me refiro à capacidade individual de escolha frente a outros indivíduos ou interesses sociais. Para mim, tanto o indivíduo quanto a autonomia da qual este desfruta estão condicionados pelas relações que os envolvem. O indivíduo nunca está isolado e sozinho pode adquirir independência se entra em constante relação com outros seres humanos. O que significa verdadeiramente esta perda de autonomia na escolha sexual é a ruptura da conexão psíquica entre o prazer, o desejo, a motivação e a ação. Assim, a questão não é recuperar a autonomia em seu sentido liberal, mas criar diferentes formas de relações (sociais).

[36] Veja-se Appeal to All Concerned with Violence Against Women and Demand Charter (2012), escrito por Maya John em nome do Centre for Struggling Women (CSW) e apoiado por outras organizações. E também a nota de imprensa de CSW e Nurses Welfare Association: “Nurses and women’s groups demand safety audit of workplaces”, The Hindu, 22 de enero 2013. O texto discute a reivindicação de reformar as leis e a regulação estatal para criar lugares de trabalho mais seguros no contexto dos interesses das operárias. Uma das sugestões das enfermeiras enquanto trabalhadoras mulheres é a da realização, por parte do Estado, de auditorias de segurança regulares em todos os locais de trabalho.

As imagens que ilustram este artigo são obras de autoria de Mallika Chabba. A imagem do destaque é uma foto de Sanchita Bhattcharjee representando a deusa hindu Durga numa performance de odissi, dança tradicional indiana. O texto de Maya John, traduzido por Pablo Polese, foi originalmente publicado em Radical Notes e sairá dividido em sete partes, uma por semana.

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