Apresentar como promíscua a relação entre o Estado e as empresas é pressupor uma economia pouquíssimo complexa, com poucas empresas de poucos donos. Por Manolo
Em artigo anterior, afirmei que as práticas usualmente classificadas como “corrupção” compõem o modus operandi mais adequado para o funcionamento do capitalismo. Esta afirmação pode parecer chocante à primeira vista para quem não tenha se debruçado sobre o assunto com mais calma e detalhe, em especial para aqueles que, como vimos, estão afetados pela ideologia da perfectibilidade do Estado. Mas é questão simples de explicar.
Os capitalistas exploram a força de trabalho de trabalhadores nas empresas para que produzam não apenas as mercadorias a serem postas à venda, mas também a mais-valia com que enriquecem. Para que as vendas aconteçam, é preciso que os produtos sejam “competitivos”, ou seja, que tenham a melhor relação custo/benefício possível. Mas esta relação custo/benefício só melhora se um produto de qualidade igual ou melhor aos demais pode ser vendido a preço igual ou menor aos demais; na medida em que os comerciantes dificilmente abrirão mão de sua margem de lucro para favorecer este ou aquele capitalista em particular sem que sejam eles próprios favorecidos de alguma maneira, é aos capitalistas que cabe a tarefa de tornar os produtos mais baratos reduzindo seus custos de produção (rebaixando salários e custos com instalações físicas, melhorando a logística etc.) ou aumentando sua produtividade (implementando novo maquinário com produtividade mais alta, modificando o processo de trabalho para aumentar a produtividade etc.). Resulta de tudo isto que os capitalistas concorrem entre si já na esfera da produção, e não na esfera das vendas como se costuma pensar na economia mainstream.
Na medida em que concorrem desde a produção de mercadorias, não apenas os capitalistas de cada setor, como também os diversos setores na economia capitalista concorrem pela garantia, para si, das posições mais favoráveis possíveis para suas atividades produtivas – e estas posições costumam ser aquelas onde o acesso às condições gerais de produção é facilitado. Existem diversos tipos de condições gerais de produção. Há aquelas que dão conta da existência e da reprodução física do proletariado, como a infraestrutura sanitária, os hospitais, as creches, etc. Há aquelas que tratam da realização social da relação entre dominantes e dominados, como a preparação e a reciclagem da força de trabalho, a repressão, o policiamento, etc. Há aquelas que garantem a existência física das empresas, como as redes de produção e distribuição de energia e as redes de transporte. Há aquelas que tratam do prosseguimento do processo de trabalho, como a veiculação, centralização e armazenamento de informação, e a informática é a principal condição geral de produção desse tipo, bem como as universidades, os laboratórios e os centros de pesquisa. Há aquelas que se voltam para a existência física de um mercado para os produtos, uma vez que todos aqueles produtos, cujo consumo não é direto, implicam a construção e a manutenção de instalações. Há, ainda, as condições gerais de produção que asseguram a existência social de um mercado para os produtos, das quais as mais importantes são os organismos de redistribuição de rendimentos voltados para um certo tipo de consumo, como a poupança, a publicidade, etc.
Alguns exemplos facilitarão o entendimento. Quem produz tecidos mais baratos: a fábrica dependente da energia produzida por termelétricas ou a que é energizada por meio de hidrelétricas, painéis fotovoltaicos ou parques eólicos? Quem produz soja mais barata: o pequeno agricultor isolado num município com más estradas, ou o pequeno agricultor cujas terras se encontram à margem das principais estradas da região? Quem pode investir mais eficazmente em tecnologia de ponta: a empresa de logística situada num país ou estado com altíssimas taxas de analfabetismo e/ou evasão escolar, e que portanto terá de investir não apenas no maquinário mas igualmente em sessões de treinamento mais longas para os trabalhadores que explora, ou aquela situada num país ou estado com altas taxas de escolarização e baixas taxas de evasão escolar? As respostas, quem lê que as forneça.
Quem olha à primeira vista para as condições gerais de produção acima descritas pensa quase que imediatamente em serviços públicos. Algumas delas são desenvolvidas desta forma, outras como empresas privadas, mas isto pouco importa. Em especial no caso dos serviços prestados pelo Estado, deve-se levar em conta que ele não é uma instituição oca e tampouco as condições gerais de produção funcionam automaticamente. O seu funcionamento exige um corpo de gestores econômicos e tecnológicos, e o seu relacionamento com cada capitalista em particular exige um corpo de gestores administrativos, uma burocracia. Do mesmo modo, as condições gerais de produção exigem um relacionamento mútuo, e há ainda múltiplos canais de relacionamento entre aquela relação mútua entre condições gerais de produção e cada capitalista em particular. Tudo isto exige um corpo de gestores administrativos vasto e complexo, e o conjunto de todos estes gestores, nos seus variados níveis e setores, será tanto maior, mais coeso e socialmente mais forte quanto mais desenvolvidas forem as condições gerais de produção. É pela proximidade das condições gerais de produção, não pelo preço mais baixo ou pelo lucro mais alto, que os capitalistas disputam, que concorrem, que se digladiam, pois da primeira decorrem todos os outros. E, ao contrário do que pensa a vastíssima maioria dos economistas, esta disputa é permanente, jamais restrita aos períodos de crise e de “socialização das perdas” entre as empresas.
Se, por um lado, os efeitos da proximidade entre empresas e condições gerais de produção podem ser explicados em termos econômicos de forma razoavelmente simples, por outro lado o processo pelo qual determinada empresa, e não outra(s), ocuparam esta posição próxima, ele até o momento parece ser impossível de explicar em termos puramente econômicos. A necessidade de meios de transporte para o escoamento da produção, por exemplo, pode ser explicada em termos econômicos (sem transporte dos produtos do local onde são produzidos para o local onde são vendidos não há economia que funcione), mas por que a preferência pelo transporte rodoviário em dadas situações, e outras não? Por que, continuando com o exemplo do transporte rodoviário, o trajeto de uma estrada passa próximo de determinadas fazendas, galpões ou fábricas, e não de outras? Por que a construtura escolhida para a construção da estrada foi esta(s), e não outra(s)? Não obstante as recorrentes tentativas de explicação “racional” de tais escolhas, o máximo que se consegue com estes termos é uma casuística mal remendada, pois trata-se de um processo político, explicável por meio de termos políticos, e não mais econômicos. E a política, como se sabe, não se faz apenas respeitando as regras postas, mas violando-as sempre que se fizer necessário para alcançar as melhores condições de exercício de poder; significa dizer que as leis submetem-se à política, tanto porque são criadas na esfera política (legislativo, para o caso de leis, e executivo, para o caso de decretos), como também porque refletem acordos políticos momentâneos, fotografias da conjuntura política e parlamentar de um momento dado, cujas dificuldades de alteração imediata (composição de maiorias congressuais, processos legislativos etc.) fazem de sua interpretação e aplicação o campo de atuação por excelência dos corpos jurídicos das grandes empresas e dos órgãos de controle interno do Estado. Daí dizer: as leis regulamentadoras da concorrência no mercado, as leis licitatórias, as leis regulamentadoras das relações entre Estado e empresas etc. não passam de frágeis referências de atuação, sempre passíveis de vergarem para um ou outro lado ao sabor das circunstâncias concretas, quando não de serem aberta ou dissimuladamente ignoradas.
E é precisamente isto o que está em jogo no debate em torno da corrupção. Apresentar como promíscua a relação entre o Estado e as empresas é considerar anômalo algo que é exatamente uma das componentes estruturais do capitalismo. É querer tornar exceção aquilo que na verdade é a regra. É fazer daquilo que realmente existe algo errado, corrupto, passível de correção com base em critérios definidores do que seria um “bom” capitalismo – e assim retornamos ao campo da moral, cujos problemas na análise do funcionamento do capitalismo explicitei naquele outro artigo. Neste “bom” capitalismo o Estado é um ente pretensamente neutro, imune à influência das empresas e de outros entes da sociedade. Pior ainda: tal posição pressupõe uma economia pouquíssimo complexa, com poucas empresas pertencentes a capitalistas individuais ou a um pequeníssimo número de sócios, reduzida aos termos mais simples dos manuais básicos de economia e administração, e igualmente imune à influência de fatores extraeconômicos.
Toda a exposição até o momento trouxe apenas os termos gerais do debate. Ficou estabelecida naquele artigo anterior a confusão entre critérios ontológicos e deontológicos na compreensão do funcionamento do capitalismo; aí foi apresentado um modelo geral, uma descrição abstrata desta ontologia, deste funcionamento econômico e social. Não foi trazido até o momento nada que comprove se este modelo corresponde ao funcionamento real do capitalismo. A exposição feita até o momento parece padecer do mesmo problema que critica: estabelece um modelo abstrato de funcionamento do capitalismo na atualidade sem demonstrar se é realmente assim que ele funciona, ou se este é, também, um modelo normativo de funcionamento do capitalismo. Ora, é apenas uma questão de ordem da exposição do argumento geral: ao invés de ir construindo na mente de quem lê, etapa a etapa, os aspectos integrantes do funcionamento de um capitalismo em que empresas desiguais em tamanho, em seu relacionamento com as condições gerais de produção e com o Estado, optei por apresentar as conclusões antes de mostrar como foi possível chegar até elas. Todas as etapas que levaram à construção deste modelo ficarão mais evidentes com os exemplos que trarei em artigos próximos, que tratarão de modos de relacionamento legais e ilegais entre empresas e Estado, entre empresas e as condições gerais de produção, e entre empresas reciprocamente consideradas, levando em conta o modelo apresentado neste artigo.
Entendo que a corrupção sempre existirá enquanto forma de driblar regras sociais em um ambiente onde a concorrência predomina. Não é apenas a corrupção entre empresas e Estado capitalista, incluindo aí as experiências do socialismo real, mas também entre o proletariado — como em situações de miséria e guerra, quando alguns setores têm de recorrer à propinas e “taxas” para conseguir acesso à mercadorias de subsistência. Existe aqui uma questão de correlação de forças entre os que podem impor “taxas” e os que se veem obrigados a pagá-la (por falta de opções ou por ver aí também uma oportunidade de crescimento).
Mas eu queria chamar a atenção a outra forma de corrupção entre empresas e Estado, pois se é certo que existe uma disputa ininterrupta por melhores colocações nas CGP, que supõe uma luta pela produtividade e por posições de ponta na concorrência local e mundial, também temos os casos bastante comuns na américa latina de superfaturamento ou de não cumprimento com as condições mínimas estabelecidas nos acordos com o Estado. Este tipo de corrupção não supõe um ambiente de alta competitividade capitalista empurrada pela guerra de preços ou pelo barateamento da produção. Talvez o volume de dinheiro das corporações e dos gestores que estiveram construindo o Brasil na última década e meia seja inalcançável pela pequena burguesia, mas as pequenas corrupções entre empresas menores e esferas menores da máquina pública estão por todo lado e nem sempre têm como resultado uma melhora das CGP para este ou aquele setor produtivo. Obras sendo feitas abaixo do custo estipulado ou produtos de pior qualidade, isso muitas vezes se traduz em mortes, gastos repetidos de manutenção desnecessária, comida de pior qualidade para estudantes, para ficar nos exemplos mais diretos e apelativos. Para explicar isso no caso brasileiro é necessário, me parece, não apenas levar em consideração as pressões populares mas também os conflitos de interesse (ou falta de) intra-burguesia e a forma como os gestores operam estes interesses. Que fique claro que não estou levantando a bandeira escrota do “corrupção mata”, apenas digo que enquanto o capitalismo de ponta usa a corrupção para dinamizar alguns setores por sobre outros, o capitalismo arcaico usa a corrupção para acumular mais-valia sem desenvolver as forças produtivas.
Lucas, no que diz respeito a estas outras forma de relação entre empresas e Estado tocada pelos capitalistas pequenos e por gestores estatais de médio e baixo escalão, elas, de fato, merece uma análise à parte. Não estão na mesma escala das relações analisadas até o momento, e mereceriam mesmo um artigo específico só para elas.
Alguns elementos para abordar a questão, que poderão ser desenvolvidos posteriormente:
1) No que diz respeito a certas compras e obras, o Estado ou é oligopsonista ou é monopsonista, quer dizer, ou é ele um dos poucos compradores ou tomadores de serviço, ou é simplesmente o único. No caso da merenda escolar, por exemplo, ele é oligopsonista; no caso das estradas e de outras obras públicas que envolvem construção pesada, ele é monopsonista. Basta olhar outros setores para caracterizar uma ou outra situação no que diz respeito ao assunto.
2) Sendo um dos maiores compradores e havendo empresas, inclusive, especializadas em fornecimento de produtos ao Estado em atacado, não sei nem se é possível qualificar estes fornecedores como pequenos em seus respectivos setores. Seria o caso de estudos empíricos mais aprofundados. Se levarmos a questão em termos estritamente teóricos para delimitar o campo de análise, entretanto, numa tal situação, o superfaturamento das compras públicas assume características de acumulação originária, no sentido de que a mais-valia concentrada no Estado por meio de impostos é apropriada por estes capitalistas pequenos como forma de vencer os concorrentes menores e fazer frente aos concorrentes maiores.
3) Não se espante quanto à má qualidade dos produtos nos períodos de acumulação mais intensa. O velho Marx passou uma temporada analisando os blue books parlamentares ingleses e mostrou como tais práticas eram inseparáveis desta mesma acumulação. Analisando o caso brasileiro, basta colar tais práticas, digamos, “sujas” com as taxas monstruosas de crescimento econômico brasileiro em todo o século XX para ver o processo se repetindo: o “não cumprimento com as condições mínimas estabelecidas nos acordos com o Estado” se enquadra na mesma situação.
Tudo isto me leva a repetir o alerta, a Lucas e a quem mais leia: no capitalimsmo não existe “regra” que não as da acumulação, não existe “moral” ou “ética” que não a maquiavélica, não existe “corrupção” nenhuma a ser combatida. Enquanto não nos livrarmos deste léxico e de sua centralidade, enquanto nos mantivermos na perspectiva “cidadanista” oculta por trás destas pautas, não conseguiremos avançar um só milímetro na luta anticapitalista.
Manolo,
entendo que no capitalismo a corrupção não deva ser combatida politicamente pelas organizações classistas pois não é nosso papel propôr melhoras para o sistema. No entanto existem diferentes níveis de análise e diferentes táticas comunicativas num ambiente como o brasileiro. Em primeiro lugar, havendo contextos nacionais onde a corrupção tem maior ou menor preponderância ou incidência no papel do Estado, está sim aberto à análise os condicionantes históricos e econômicos que fazem parte de uma caracterização das burguesias e das facções gestoriais do país enquanto relacionados com as práticas de corrupção (incluindo aí a relação entre as polícias, as agências de espionagem e os demais setores estatais que jogam mais para um lado ou para outro). Por outro lado, se o combate não é contra a corrupção no capitalismo, em alguma medida deve ser contra o discurso que instaura a corrupção “em geral” como tema nacional; outra questão ainda é quando a corrupção toca diretamente demandas populares, como por exemplo desvios de verba na saúde: não se deve aproveitar tais casos para realizar agitação, sendo a questão da corrupção algo tão sensível e moralizado pelo sentido comum, no caso de um hospital que será fechado, por exemplo? Seria um erro, creio, abster-se de pautá-la. O erro não é discutir a corrupção e identificá-la nas práticas de setores majoritários da classe dominantes brasileira (e em boa parte de setores explorados também), mas sim entendê-la como algo a ser combatido pela classe trabalhadora organizada num contexto de plena normalidade capitalista (especialmente se a acusação for moral e ética). A defesa da Lava-Jato por um lado e a defesa relativizadora dos governos petistas (“todos os governos são corruptos e a perseguição à Lula é coisa dos estados unidos”) são ambas posições políticas que reivindicam a ordem capitalista. Mas denunciar a máfia da merenda escolar em SP, a compra de alvarás para construção em áreas preservadas, etc, não são corrupções que devam ser combatidas? É claro que o que se está combatendo aqui não é a corrupção em si, abstrata, mas seus efeitos mais deletérios para os trabalhadores; e se a corrupção é o modos operandi no capitalismo, a conclusão a que se chega não é a de naturalizar a corrupção como algo politicamente nulo e portanto algo sobre o qual não vale a pena falar, mas sim a oportunidade para mostrar os vínculos necessários entre corrupção e capitalismo. A denúncia contra o rompimento de regras não se faz por serem estas estimadas pelo enunciador, mas sim para desafiar o sentido comum de quem escuta.
Não consigo entender o que há de tão especial no “ambiente brasileiro” para fazer dele uma excepcionalidade no capitalismo. O mesmo noticiário que nos inunda o imaginário com malas e malas de dinheiro aqui, é o noticiário que fala das sete deusas na Coreia do Sul (quer caso mais prosaico?) e omite toda e qualquer informação sobre os Papéis do Panamá ou sobre a campanha anticorrupção chinesa imediatamente posterior ao 18º congresso do PCC, em 2012. No caso chinês, há quem diga que foi a corrupção a detonar os protestos da Praça da Paz Celestial, não a exigência por democratização do regime (que teria vindo a reboque quando as denúncias contra corruptos não teriam sido devidamente apuradas). Entendo a necessidade de apontar que relações Estado e empresas assumem em cada caso concreto, mas não vejo razão alguma para privilegiar o caso brasileiro, ao menos enquanto a economia brasileira permanecer capitalista; é a manifestação particular de um problema global, não uma singularidade.
No que diz respeito aos momentos em que a corrupção toca nas demandas populares, novamente, nada a estranhar. Ou o correto seria esperar que os capitalistas e os gestores, em cada ramo da economia, agissem em favor dos trabalhadores? Só sei de algo do tipo quando os trabalhadores lhes apontaram suas armas. Tais casos devem ser tratados como o que são: mais um ataque dos capitalistas contra os trabalhadores.
Sim, corrupção no capitalismo. Mas há uma especificidade no capitalismo dependente: http://www.blogsintese.com.br/2016/06/sobre-corrupcao-no-contexto-do.html
Silvia, agradeço pelo envio do link e pela possibilidade de abrir uma frente de diálogo que talvez não estivesse tão explícita no texto.
É certo que a inserção de tal ou qual fração da burguesia ou dos gestores no processo produtivo é desigual, e que todos competem entre si pelos melhores postos, usando todas as armas possíveis. Mas, confesso, tenho enormes dificuldades em raciocinar mediante este modelo cepalino de “capitalismo periférico/dependente vs. capitalismo central”. Não me agrada, cheira a Mihail Manoilescu, e onde há cheiro de Manoilescu o corporativismo e o fascismo não andam longe.
(Diga-se: não é que defender esta tese transforme automaticamente seus defensores tardios em fascistas ou corporativistas; trata-se, entretanto, de entender bem de onde falamos para falar o que falamos, pois tudo isto tem antecedentes e, o pior, consequências.)
Ora, vejamos a questão em perspectiva histórica e global. A “captura corporativa do Estado”, expressão da moda, é assim tão nova? A internacionalização das empresas de construção pesadas brasileiras por meio da captação de licitações das obras estruturais tocadas pelos militares, processo descrito e analisado por Pedro Henrique Pedreira Campos em seu magistral Estranhas Catedrais, é assim tão diferente do que fizeram os irmãos Pereire e sua Société Générale du Crédit Mobilier sob Napoleão III na França? E que dizer da relação entre os Rotschild britânicos e a coroa inglesa durante as guerras napoleônicas?
Por outro lado, vistas as coisas em perspectiva sincrônica, analisar a questão com base na relação “centro vs. periferia” tem outro problema: igualar empresas com distinta inserção nos processos produtivos por meio de critérios geográficos. É possível, por exemplo, comparar o pequeno fazendeiro francês produtor de roquefort com a Brasil Foods?
Ainda noutro ponto de vista, sequer o favor e as políticas que em torno dele orbitam são especificidade brasileira. Entre outros exemplos, prova-o a instituição russa do blat, vigente desde os tempos dos czares, intensificada no regime soviético, ampliada em sua dissolução e totalmente infiltrada no Estado russo, de cima a baixo, até os dias atuais. O blat é correspondente, por exemplo, ao guanxi chinês — e estamos falando da primeira economia do mundo na atual conjuntura, não esqueçamos!
Tudo isto para retomar a mesma problemática: não há nada no “ambiente brasileiro” ou no “capitalismo dependente” que justifique tratá-los como exceções. O capitalismo é global, funciona do mesmo jeito com adaptações regionais e locais, e se não partirmos desta premissa para ampliarmos a perspectiva de análise, estaremos sempre nos perdendo na “singularidade” brasileira.
a singularidade brasileira, manolo, tem de estar relacionada com as diretrizes políticas locais a serem extraídas da correta compreensão a respeito da natureza global do capitalismo — sobre a qual tua contribuição e comentários são excelentes.
Estou certo de que falar sobre corrupção para um público brasileiro e para um público russo será muito diferente, ainda que a estrutura do capitalismo global seja interconectada e universal em sua abstração — a maior diferença estará, certamente, no público mais do que no contexto objetivo. Mas entendo que aqui o teu texto não se propõe tanto a falar sobre os desdobramentos políticos, sou eu que estou tensionando para este lado nos comentários.
Lucas, quando me refiro à “singularidade brasileira”, nunca é demais repetir, refiro-me a certo viés analítico, quase um vício, um mau hábito, pelo qual cada analista pressupõe cada país como uma “ilha” e o seu próprio como “massa de terra cercada de água por todos os lados” — como se tal definição não fosse a própria definição do que é ser uma ilha, como se as ilhas não fossem unidas aos continentes por placas tectônicas e como se tudo isto não compusesse um só planeta.
Bem entendida a metáfora, prefiro fazer sempre o caminho contrário: entender a ilha a partir da Terra, nunca o inverso. Só então se pode entender o regime de marés, as correntes marinhas, os ventos, o regime pluvial, a tectônica e tudo mais quanto faça dela uma ilha diferente das demais. É o que tenho tentado fazer até o momento, e o que seguirei fazendo em outros artigos sobre o tema da corrupção.
Mas descrição de proximidade e interesse de capitalistas e gestores do Estado feita no artigo não se refere à corrupção necessariamente. A menos que considere corrupção isso que está sendo criminalizado pela primeira vez no Brasil (e em nenhum outro lugar do mundo): consultorias políticas e políticas de expansão de mercado para certas empresas. Corrupção, pelo menos no sentido habitual da palavra, e não no sentido que Juizes e mídia golpistas passaram a dar, trata de favorecimento em troca de dinheiro ou outro benefício que o valha. Um gestor estatal que é convencido por lobby ou por outro motivo político e econômico, que não seja pessoal, a construir uma estrada em tal ou qual lugar para escoar determinada produção, não é corrupto. A mídia e o judiciário, para perpetrar o golpe de Estado de 2016, tiveram que criar essa fantasia de que essas políticas que beneficiam grupos empresariais são todas corrupção, mas evidentemente é impossível um governo que não faça políticas que irão beneficiar determinados setores ou empresas. Acho que é disso que o artigo trata, e não de corrupção propriamente dita.
Leo, faltou pouco para acertar. Concordo que é impossível um governo que não faça políticas que irão beneficiar determinados setores ou empresas, mas é igualmente impossível ou quase impossível, salvo nos casos mais gritantes, definir universalmente o que é uma relação corrupta entre Estado e empresas e o que não é.
Veja-se o lobby, por exemplo. Na França, a prática é um quase-crime, dado que lá se considera que os parlamentares já são “representantes do povo” e não se fariam necessários grupos de pressão extraparlamentares (apesar de existirem, mesmo mal-vistos e na informalidade); nos EUA, a prática não apenas é tolerada, como é inclusive regulamentada (como demonstrei num artigo posterior a este). Nas relações entre Estado e empresas, a fronteira entre o “legal” e o “ilegal”, entre o “legítimo” e o “corrupto”, varia de lugar a lugar, nunca é sempre a mesma; sua única característica comum é a opacidade.
Num tal contexto, o “golpe de Estado de 2016” significa apenas que na disputa de poder usou-se a legalidade para uma virada de mesa política, nada mais. A argumentação do impedimento ser parte de um “golpe de Estado” é mais uma manifestação da “singularidade brasileira”, este mau hábito analítico a que me referi noutro comentário. No caso chinês a quem me referi em comentário anterior, por exemplo, além dos 120 oficiais de alto escalão removidos de seus cargos e presos (alguns deles inclusive do Poliburo do PC chinês, pela primeira vez na história pós-revolucionária investigados e condenados) houve outros 100 mil indiciados, e tudo isto veio por iniciativa de Xi Jinping, a quem certamente não se pode acusar de ter feito cursos nos EUA ou de serviçal da CIA. O mesmo vale para Vladimir Putin e sua perseguição contra Mikhail Khodorkovsky no caso Yukos, ou contra Boris Berezovsky, ambos tornados milionários no turbulento período Gorbachev-Yeltsin: virada de mesa política, nada mais.