Por Primo Jonas
2018 começou na Argentina com três questões relevantes. A primeira é a ressaca das jornadas de insurreição dos setores organizados da classe trabalhadora contra a reforma da previdência (14 e 18 de Dezembro), que, se não conseguiu seu objetivo direto, deixou mais do que provada a energia e o ânimo para confrontar o governo Macri, especialmente com a legitimidade de pautas antipopulares como o ajuste aplicado aos aposentados. A segunda metade do atual mandato começou com dez pontos a menos de popularidade para o presidente, algo quase inesperado após a vitória nas eleições legislativas apenas poucos meses antes.
A segunda questão são as dificuldades fiscais e cambiárias que vão ficando cada vez mais expostas. Um país que vem intercalando recessão e crescimentos anuais baixos, de até 3%, com a inflação acima dos 20% há quase uma década, é um cenário complicado para qualquer receituário econômico. Existe um confronto direto entre os elementos deflacionários (reajustes salariais abaixo da inflação, ajuste fiscal gradual, emissão de títulos do banco central com taxas artificiais) e inflacionários (fim de subsídios aos principais serviços – água, luz, gás, transporte público; desvalorização da moeda), que está tocando limites perigosos quando o rolamento da dívida pública vai chegando a níveis não planejados. Existem críticas pela esquerda e pela direita ao plano econômico do governo, com direito a pequenas brigas entre governo e empresários – notícia também inédita até então neste mandato.
Por fim, em parte resultado das jornadas de Dezembro, em parte devido à dificuldade de sua missão, está havendo uma grande reorganização das entidades sindicais, com um provável novo grupo na condução da CGT. No dia 21 de Fevereiro, Hugo Moyano, o líder histórico do sindicato dos Caminhoneiros, convoca um ato nacional contra o governo. Também instigado pela perseguição que o governo tem feito contra as dirigências sindicais mais mafiosas (e não tão submissas quanto outras), Moyano ao mesmo tempo em que mostra sua força frente ao governo também serve como disciplinador da classe. A grande mensagem do ato, que mobilizou praticamente todos os setores relevantes da esquerda e dos movimentos sociais, além dos sindicatos sem rabo preso com o macrismo, foi: “derrotaremos este governo com o voto ano que vem!”. Uma piscadela de olho ao peronismo, que ainda se encontra fragmentado e tentando inventar uma fórmula de unidade – onde agora Moyano terá um papel não menor –, outra piscadela para os setores mais combativos: rapazes, acabou a bagunça nas ruas, pensemos nas eleições.
Cenário complexo, confuso. Perfeito para um golpe inteligente. Uma semana após o manifestação sindical do “21F”, poucas semanas antes de 8 de Março, Maurício Macri anuncia que permitirá que o Congresso debata a despenalização do aborto.
A manobra tem sentidos diversos. Em primeiro lugar, tirar a atenção da luta pelo reajuste salarial dos professores, que afetará as datas-base de várias outras categorias. Sucesso. Nas semanas seguintes quase só se falou sobre aborto no país. Em segundo lugar, divide a oposição: Cristina Kirchner já se posicionou contra o aborto publicamente e nunca permitiu em suas gestões que o Congresso tratasse o tema; também se posicionaram contra a despenalização as referências re do Movimento Evita, setor da esquerda populista que recentemente se afastou do kirchnerismo mas é bastante vinculada ao Papa. Em terceiro lugar, embora alguns se surpreendam com o fato, as pesquisas apontam que o eleitorado de Macri está dividido ao meio quanto ao tema. Ou seja, ganhando a despenalização ou perdendo, Macri sai quase ileso do episódio – pode inclusive chegar a ser visto como um progressista, como Cristina ao aprovar a lei do Casamento Igualitário. O contrário ocorre com a oposição, especialmente os setores relacionados com o Papa e Cristina, quem perde de todas formas já de partida e se distancia de suas bases militantes, em maioria favoráveis à lei. De fato, da forma como a manifestação deste ano foi coberta pelos canais de televisão, é visível que o PRO e as forças sociais que bancam politicamente o governo atual têm uma forte composição de mulheres dispostas a demonstrar seu apoio pela conquista de direitos das mulheres. O canal TN, ligado ao jornal Clarín (que seria o mais próximo à Folha de São Paulo no Brasil), fez uma cobertura que chegou a ter ares de Globo em Junho de 2013, mas sem o primeiro momento recriminante: se tratou de uma grande festa de pessoas nas ruas, lutando por diversas coisas lindas, uma grande novidade bonita, etc, além de ressaltar sempre que possível o fato da cor predominante da marcha ser o verde, em referência à cor da histórica campanha pelo aborto legal, seguro e gratuito. Enquanto isso, canais de televisão como o A24, com posições mais próximas ao peronismo conservador, evitavam qualquer referência ao aborto e destacavam as consignas contra a violência de gênero e pela igualdade.
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Após este breve panorama mais genérico, algumas questões mais vinculadas ao chamado “campo popular” e as discussões que mais rondavam as bases sociais mobilizadas.
Em primeiro lugar, este foi o segundo ano em que o 8M foi reivindicado como uma “paralisação de mulheres”, sob influência da greve de mulheres na Polônia em 2016 contra a alteração na lei de abortos. Os debates a respeito ainda são novos, e este ano ocorreram com maior volume que ano passado já que a marcha neste ano ganhou uma nova dimensão com o contexto criado por Macri quanto ao aborto. Os partidos da Frente de Izquierda e dos Trabalhadores (FIT) defenderam a linha de paralisação total para a data, com mulheres e homens deixando de trabalhar. Seu principal interesse é, na realidade, que seus militantes homens estejam disponíveis para aumentar o tamanho de suas colunas, mas sua retórica dizia que se tratava de “combater o governo Macri, a classe trabalhadora nas ruas, etc”. O único argumento mais relevante era o contraponto à proposta da burocracia sindical populista que, atrelada profundamente às “trincheiras da sociedade civil”, como universidades, empresas públicas etc, propunha a paralisação exclusiva de mulheres, pelo qual os homens deveriam “cobrir” os postos das mulheres neste dia, possibilitando assim que suas companheiras participem da paralisação, em uma verdadeira manifestação transviada do espírito feminista. Vejam bem, não é em qualquer lugar de trabalho que uma paralisação de mulheres pode ser posta em prática de maneira tranquila – é possível que esta tática “sexista” tenha sentido em alguns destes lugares com menor organização, sempre e quando parta das próprias trabalhadoras e trabalhadores. Mas aqui estamos falando de sindicatos controlados não apenas pela esquerda (populista), mas por quadros feministas – como é o caso mais próximo do qual tenho notícia: uma faculdade com uma decana que é grande referência feminista, que não contabilizou falta das trabalhadoras e alunas, mas que, contra a proposta das estudantes, manteve a faculdade aberta e funcionando quase normalmente durante o dia.
Outra grande discussão que ocorreu este ano, nas rodas de conversa e na internet, foi relativa à participação de homens na marcha. O tema não é totalmente novo. Casos de agressores vistos nas marchas feministas, com cartazes e bandeiras, não são novos – que forma melhor para lavar a cara diante da militância feminista e propagar o machismo nas modalidades mais sutis e legitimadas? Mas a insistência dos grandes aparelhos partidários da esquerda em levar um grande contingente de homens para suas colunas, até para segurar as bandeiras, misturado com a presença de homens particularmente não bem vindos acaba dando combustível ao debate. Os piores argumentos apresentados falavam da necessidade de respeitar grupos contrários à participação de homens (por aqui nomeados recentemente de “separatistas”) e da presença de companheiras que haviam sido violentadas, e que a presença de homens as afetariam. Os melhores argumentos diziam respeito ao óbvio: ir à marcha não é nem nunca será a única forma de mobilizar-se ou de realizar alguma ação contra o patriarcado. Formação, grupos de debate, ou mesmo um simples não ir, fazer as compras e cozinhar – tudo isso é bastante simples, quantas marchas por ano se realizam no “manifestódromo” porteño?, tão difícil ficar em casa em uma? Mas para alguns setores, principalmente aqueles que orbitam ao redor do FIT, marchar é sinônimo de luta revolucionária, e não ir parasitar esta marcha, como o fazem com quantas outras lutas, para eles é um sinal de que você não milita de verdade.
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Em tempos de longa depressão mundial[1] e ascenso do nacionalismo nos países centrais do capitalismo, uma onda global de feminismo renovado não pode passar desapercebida. E de fato não passa desapercebida pois se trata de um movimento altamente disputado – se trata apenas de algo que afeta mais da metade da população mundial e é transversal às classes sociais. Um dos poucos fenômenos de massas que está se concretizando como expressão do cosmopolitanismo global, será o feminismo uma possível chave para destravar os obstáculos da presente etapa do ciclo econômico global? O entusiasmo com o qual certos setores capitalistas abraçam esta onda militante e a disputam não pode ser entendido apenas como uma questão ideológica, nem deve inspirar consequências sectárias apressadas. Deve nos ajudar a pensar e analisar melhor os próximos passos e evitar os erros, pois as “frente únicas” cosmopolitas, entre gestores e proletários, devem ser tomadas com cuidado. Não há dúvida, no entanto, que o inimigo desta frente atualmente tem se mostrado bastante aterrador.
Nota
[1] Expressão usada pelo economista marxista Michael Roberts