Por Juan Miranda González* e Lucinda Torres Avendaño**

No último dia 24 de janeiro foi aprovada no Chile uma lei de financiamento da educação superior que foi amplamente difundida pela mídia no Brasil, principalmente por jornais online. Muitos desses jornais anunciaram a aprovação do ensino superior universal e gratuito no Chile ou, ainda, falaram da estatização do ensino superior privado. Além disso, todos eles tinham como respaldo em comum algumas das palavras da presidenta do Chile, Michelle Bachelet, da Ministra da Educação e a quantidade de votos com que foi aprovada no parlamento chileno, evidenciando a possibilidade de que todos os meios de comunicação tradicionais tenham se baseado na mesma fonte de informação para comunicar a notícia no Brasil.

No entanto, é fundamental informar que todos esses jornais, ou a fonte de onde eles obtiveram a informação, distorceram a notícia criando uma visão política errada do Chile, particularmente da educação, na população brasileira. Devido a isso, expomos abaixo, em termos gerais, o contexto do ensino superior chileno e a mudança que vai significar a aprovação dessa lei a partir de documentos do parlamento chileno e de um site informativo do governo.

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Atualmente no Chile o ensino superior se estrutura em universidades públicas e privadas, institutos de educação superior e centros de formação técnica. Estes dois últimos, são privados, sem a existência de instituições públicas, porém existem projetos de lei para a criação de alguns. E todos eles são pagos, ou seja, o aluno matriculado em qualquer uma dessas instituições, seja pública ou particular, deve pagar uma matrícula e uma mensalidade. Este sistema foi configurado dessa forma a partir de 1981 por imposição da ditadura de Augusto Pinochet e durante a transição democrática se criaram alguns sistemas de financiamento como empréstimos bancários ou do Estado e bolsas de estudo que podem chegar a contemplar até quase 100% do valor mensal, no melhor dos casos. Nos últimos anos, especialmente depois das grandes manifestações do ano de 2011, várias dessas medidas se ampliaram conseguindo pagar até 100% do valor do curso de graduação para os estudantes mais pobres que conseguiam entrar nas faculdades, sejam públicas ou particulares.

Também é importante mencionar que no Chile não existem bolsas de manutenção de estudantes, com exceção de algumas equivalentes a menos de R$150 mensais, obrigando muitos a trabalharem de dia para conseguirem estudar durante a noite. É verdade que essa realidade não é muito diferente do Brasil, embora a informação comunicada gerasse, numa parte importante da população brasileira, a percepção de que Chile tenha mudado.

Por outro lado, assim como no Chile e no Brasil, em quase toda América Latina o neoliberalismo configurou sistemas educativos similares em relação a seu financiamento, que desde finais da década de 90 muitos deles estão sendo reformados, porém mantendo a acentuação nas lógicas do mercado educativo. No caso do Chile isso não aconteceu devido a pactos políticos entre os governos da transição democrática e os setores que faziam parte do governo ditatorial. Dessa forma, o sistema educativo chileno está estruturado constitucionalmente desde 1980 e a educação não é reconhecida como um direito, senão como que um dever dos pais, sendo o Estado responsável por garantir a “oferta educativa”. Devido a isso, para fazer uma mudança de caraterísticas estruturais como as comunicadas na mídia brasileira é preciso mudar a constituição, questão que é, praticamente, impossível no Chile devido à alta quantidade de votos a favor necessários no parlamento para isso.

Nesse cenário educativo, o pano de fundo do neoliberalismo tem influenciado não só as formas de financiamento do ensino, mas também as lógicas desenvolvidas na gestão educativa, os sistemas de avaliação, as condições de trabalho dos professores, até as formas de se relacionar das pessoas nas escolas tendo por consequência uma educação sem sentido humano (para não usar a linguagem de mercado que se refere a uma educação de qualidade) e uma profunda segregação escolar. A lei aprovada recentemente no Chile não é o anunciado pela mídia. Essa reforma consiste em garantir o custo da matrícula e da mensalidade somente aos 60% da população mais pobre que consiga entrar nas instituições de ensino superior públicos ou particular, medida que já se vem desenvolvendo desde 2015 no governo de Bachelet, mas agora virou lei, evitando dessa forma que um possível futuro governo contrário à medida possa retirá-lo.

Em consequência, o Chile mantem sua lógica neoliberal de mercado na educação já que a lei não muda os princípios estruturais impostos desde a ditadura por meio da Constituição. Inclusive, esta lei não significa uma mudança no reconhecimento da educação como um direito garantido pelo Estado. Contrariamente, ela pode significar uma forma de aperfeiçoar o sistema neoliberal e a apropriação de demandas e conceitos impulsionados pelos movimentos sociais para deter suas mobilizações.

Por último, não é nosso objetivo analisar a lei como um avanço ou um retrocesso político, ainda que possa se perceber nossa opinião implicitamente, mas chamar a atenção para a mídia e o que ela comunica à população, deixando claro que ela pode manipular o cenário político para distorcer as realidades. Além disso, queremos convidar para que as pessoas procurem fontes diversas de informação para construir uma opinião crítica, sendo fundamental também que sejam conscientes como de o sistema — particularmente os governos — vai se apropriando discursivamente das demandas da população, esvaziando seu conteúdo e as utilizam para perfeiçoar o sistema e manter suas injustiças.

Fontes:

Congresso do Chile aprova lei de gratuidade do ensino superior

— Chile aprova ensino superior gratuito para toda a população

— Chile aprova universidade gratuita e universal. “não deveria estar nas mãos do mercado”

— Lo que debes saber

Decreto chileno de regulamentação do acesso gratuito ao ensino superior 

Diário oficial chileno de julho de 2017

Lei 20.890 promulgada em 2016 pela presidente Michelle Bachelet

*Juan Miranda González é professor de ensino fundamental no Chile, graduado da Universidad de Santiago de Chile e atualmente cursa estudos de mestrado em Educação na Unicamp.

**Lucinda Torres Avendaño é administradora pública do Ministério da Mulher do Chile, graduada da Universidad de Santiago de Chile e atualmente cursa estudos de mestrado em Desenvolvimento Econômico na Unicamp.

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