Por um então militante
Como qualquer movimento de fim de semestre, junho de 2013 coincidiu com o período de provas e atrapalhou a vida acadêmica de muitos estudantes. Foi o meu caso. Na época, era militante do MPL em São Paulo. Apesar da solidariedade de colegas que deram “aquela forcinha” para entregar trabalhos no prazo e dos próprios Centros Acadêmicos que, no auge dos protestos, organizaram paralisações para que toda faculdade fosse nos atos, não consegui me salvar em todas as matérias.
Um professor me liberou da prova final: ia automaticamente para recuperação, desde que escrevesse sobre a história do movimento contemporâneo que estava participando. Achei uma boa ideia. Era um pretexto para sentar e escrever – e parecia importante produzir um relato dia-a-dia daquela jornada, que pudesse inspirar gerações seguintes como os livros da Guerra da Tarifa de Florianópolis nos inspiraram.
O plano ambicioso do relato não saiu (até hoje). Tudo muito ainda fresco, mil versões de cada situação, tudo muito confuso. Só consegui escrever duas partes iniciais: a descrição do planejamento da jornada e os pequenos atos que organizamos antes do dia 6. Talvez fosse o limite de até onde conseguíamos elaborar no MPL naquele contexto. Entreguei para o professor e não mexi mais.
Aproveitando o chamado de textos do Passa Palavra nos 5 anos de junho, torno público esse relato. Na época, ele parecia ainda conter “segredos”, “informações sigilosas” internas ao movimento. Passado o tempo, não há nada sensível aí que já não tenha sido dito e repetido em palestras, entrevistas, artigos… e o próprio texto, que a essa altura já circulou em alguns meios militantes, passa a valer como documento histórico.
Escolho publicar assim, anônimo, porque o que vale saber é que foi escrito por um militante da época. E hoje, pessoalmente, tenho um olhar diferente, crítico, sobre vários termos e análises aí colocadas. Mas são um retrato, mais ou menos, de como discutíamos dentro do MPL-SP. Além disso, o Movimento sempre prezou pelo “consenso” – isto é, um tipo de centralização em que ninguém fala por si mesmo em nome do coletivo. Na nossa ética interna, tudo deveria ser discutido antes; projetar opiniões da própria cabeça é quebrar com o consenso. Ainda me parece certo desrespeito aos companheiros publicar esse texto sem aprovação coletiva, mas aquele coletivo já não existe do mesmo jeito.
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Caro professor, segue abaixo o trabalho de recuperação:
1. Planejamento e preparação da luta
A análise crítica do processo anterior de luta contra o aumento em São Paulo foi fundamental para a elaboração da estratégia da luta deste ano.
Em 2011, quando Kassab aumentou a tarifa de ônibus para R$ 3, o MPL convocou uma jornada de mobilizações, que superou todas as realizadas anteriormente. Foram 3 meses de manifestações que reuniam semanalmente cerca de 2 a 3 mil pessoas no centro da cidade. Hoje (depois de junho) esses números podem parecer pouca coisa, mas na época era bastante gente.
A constância dos atos, o clima irreverente e lúdico produzido pelas músicas da bateria e pela ausência do carro de som, a denúncia da repressão policial, as invasões de terminais de ônibus, os escrachos ao prefeito, a organização a partir das escolas, o Facebook como ferramenta de divulgação… Tudo isso marcou aquele processo, que formou uma geração de militantes, consolidou a referência do MPL de São Paulo enquanto movimento social de transportes e criou um imaginário na cidade em torno das lutas contra o aumento.
Ainda assim, a possibilidade de barrar o aumento em 2011 sempre esteve bastante remota. Por maior e mais forte que tenha sido a luta, ela acabou estagnada e se incorporou à rotina da cidade, mobilizando todas as quintas-feiras um mesmo número de jovens no centro.
O MPL sempre teve claro que, para abaixar a tarifa, seria preciso que a luta ultrapassasse seu controle e assumisse a forma de uma revolta popular. Havia sido assim em todas as cidades onde a população conquistara a revogação das tarifas – Florianópolis, Vitória, Teresina, Natal, etc. Para vencer em São Paulo, deveríamos não só fazer o mesmo, mas, dado as proporções da cidade, fazer maior.
Por isso, já no início de 2013 definimos que esta jornada deveria ser radical (1), intensa (2) e descentralizada (3):
(1) Radicalização. Era um mote entre os militantes do MPL afirmar que, diferentemente do que se fez em 2011, este ano “os atos contra o aumento não podem ser meros passeios pelo centro da cidade”. Era preciso radicalizar nos trajetos, ocupando vias importantes para a economia da cidade (Marginal, Radial, etc), e assumir táticas de enfrentamento direto (barricadas, etc).
(2) Intensificação. “A luta contra o aumento precisa ser um tiro curto”. Se as mobilizações se estendessem por meses e entrassem na rotina como acontecera em 2011, seríamos derrotados. Por isso, este ano não poderíamos repetir o esquema de um ato por semana. Nas cidades onde revoltas populares derrubaram aumentos, aconteciam atos quase todos os dias. Esse deveria ser nosso referencial. E assumir uma luta “de tiro curto” significa assumir que ela tem um prazo: após mais de três semanas de atos sem conquistar vitórias, apostamos que o movimento entraria em refluxo e o MPL deveria abandonar a perspectiva real de conquistar a redução da tarifa.
(3) Descentralização. “Se a luta se limitar ao centro, ela será sufocada”. Numa cidade das proporções de São Paulo, uma luta contra o aumento só pode triunfar se conseguir se espalhar pelos bairros. Esse é também um critério decisivo para que a luta supere o âmbito da esquerda e se torne uma mobilização efetivamente popular. “É preciso espalhar a revolta pela cidade”. Essa também é uma das formas mais efetivas da base se empoderar no processo. O MPL deveria, então, convocar atos fora do centro, nos bairros onde mantém trabalho de base, e estimular mais movimentos sociais organizados (sobretudo os de moradia) a convocar atos próprios.
(Em seu planejamento estratégico, o MPL definiu também que, mesmo que não conseguíssemos revogar o aumento, essa jornada deveria ter como um objetivo transversal a criação de uma cultura de luta direta de rua na cidade. Esse objetivo foi atingido com sucesso já no primeiro grande ato, o que deu a todos os militantes a confiança de que a estratégia geral estava acertada.)
Este ano, havia ainda uma diferença significativa em relação a 2011 no que diz respeito à organização interna do MPL. O fracasso da luta contra o aumento da tarifa de R$ 2,70 em 2010, que fora violentamente reprimida e silenciada logo no primeiro ato, fez com que o coletivo entrasse em crise e quase acabasse no decorrer do ano. O movimento iniciou a jornada de 2011 com apenas seis militantes ativos, e foi durante esse processo que ele se reconstituiu, reaproximando velhos militantes e retomando uma base nas escolas.
Entre 2011 e 2013, o movimento pôde aprofundar e difundir seu debate sobre transporte, lançando a Campanha da Tarifa Zero; realizar um trabalho em escolas na região noroeste (Lapa, Pirituba), sul (M’Boi Mirim, Grajaú, Santo Amaro) e centro (D. Pedro); construir alianças com outros movimentos sociais de moradia e saúde; fortalecer os fóruns populares de transporte nos bairros da zona sul; e articular-se com os movimentos de transporte da região metropolitana (ABC, Mauá, Taboão, Osasco, Cotia).
O MPL iniciou 2013 em um patamar de organização muito superior ao dos outros anos. O anúncio, já em janeiro, do adiamento do aumento para maio ou junho, deu ao movimento quatro meses de fôlego para direcionar todos os seus esforços na preparação da luta. Outro elemento importante é que este ano o aumento foi decretado durante o período letivo (diferente dos últimos anos, que a tarifa subiu nas férias), o que permitiu maior organização da mobilização nas escolas e faculdades.
Este ano, porém, a conjuntura municipal era diferente daquela que o movimento enfrentara em 2006, 2010 e 2011. A infame e odiada gestão Kassab fora substituída por uma carismática prefeitura petista, eleita por uma base popular e pela esquerda, tendo propostas para o transporte coletivo no carro-chefe da campanha e o discurso do “diálogo” como marca de sua relação com os movimentos sociais.
Nesse sentido, boa parte das táticas que o movimento usara durante as lutas na gestão Kassab não poderiam ser repetidas com Haddad. Desta vez, desgastar politicamente a imagem do prefeito para pressionar a revogação do aumento seria pouco eficiente (dado sua grande aprovação) e arriscado (dado sua suposta habilidade política e sua base de apoio em comum com o movimento). Por isso, decidimos não realizar escrachos, nem perseguir o prefeito em suas aparições públicas. [1]
Até porque, diferentemente do Kassab que não aparecia nunca, avaliamos que Haddad poderia ser um agente bem presente na luta, com uma atuação cooptadora e desmobilizadora. Vale lembrar que um mês antes, durante uma marcha dos movimentos de moradia do centro em frente à Prefeitura, Haddad descera e discursara para os manifestantes, praticamente transformando o ato em um comício. Não podíamos deixar acontecer algo assim na luta contra o aumento. Nesse sentido, definimos que era preciso ter um foco claro na pauta única: não aceitaríamos nada menos do que a revogação do aumento.
Sabíamos que Haddad tinha vários projetos para o transporte na cidade: o Bilhete Mensal, ônibus 24h, criação de um Conselho Municipal de Transporte, passe livre para prounistas, etc.[2] Não poderíamos aceitar nenhuma meia-concessão. Não iríamos sair nas ruas enquanto a tarifa não baixasse. Por isso deveríamos assumir uma postura de extrema cautela com os espaços de “diálogo” que se abrissem ao longo do processo.
Essa posição é também uma questão de coerência política do movimento, que ajuda a compreender a relação entre o MPL e a base dos atos. O movimento não poderia sentar-se numa mesa com o prefeito a portas fechadas e negociar algo diferente daquilo que estava sendo exigido nas ruas. Se convocamos o ato dizendo às pessoas que era “contra o aumento”, era isso que as mobilizara. Negociar algo diferente seria um oportunismo político, seria usar a luta sincera de quem saiu às ruas como massa de manobra.
Há também nessa posição um aprendizado histórico, que remonta ao surgimento do próprio Movimento Passe Livre no Brasil. A Revolta do Buzú de 2003 em Salvador levou dezenas de milhares de jovens às ruas, de forma mais ou menos espontânea e explosiva. Sem uma estrutura capaz de deliberar e agir, sem uma instância de representação do movimento em relação ao Poder Público, aquela luta popular acabou desmobilizada depois que o prefeito convocou os dirigentes das entidades estudantis (UNE, UBES, UMES, etc) – que até então não haviam aparecido na luta de rua – para negociar um acordo em nome do movimento. Nessa negociação, as entidades apresentaram uma pauta de 10 reivindicações, das quais foram atendidas 9. Aprovou-se migalhas como a meia-passagem para estudantes de pós-graduação, meia-passagem no final de semana, extensão de linhas, mas não se aprovou justamente aquele único ponto que a população estava exigindo nas ruas: a redução da tarifa. Em seguida, os dirigentes estudantis foram a público e anunciaram, nas TVs e rádios, que a luta estava ganha, o que constituiu um fator decisivo de desmobilização. Quem tentou sair às ruas nas semanas seguintes foi violentamente reprimido pela polícia e se viu sem apoio da população. O golpe funcionou. [3]
É notável que a estratégia de desmobilização usada em Salvador seja constantemente reutilizada e reciclada, e usada até hoje. Às vésperas das Jornadas de Junho, quem lutava contra o aumento em Porto Alegre viveu o mesmo desafio. O prefeito, do PDT, arranjou uma União Estadual dos Estudantes (que, mais uma vez, ninguém conhecia) para sentar-se à mesa de negociação. Felizmente, o movimento local (não há MPL na cidade) teve a habilidade de reconhecer que se tratava de um golpe e a negociação com a entidade não teve legitimidade em relação ao movimento da rua.
Por isso, prudentemente, este ano em São Paulo o MPL identificou previamente quem seriam os possíveis atores que poderiam tentar cumprir o papel que a UNE cumprira em Salvador. Como aqui as entidades estudantis definitivamente não dispõem da mesma legitimidade que em outras regiões do Brasil, a prefeitura deveria buscar outro agente para entrar na luta e rachá-la por dentro. Identificamos que o mais possível seria o Fora do Eixo, empresa de gestores da cultura que tem crescido e ganhado penetração em certo setor da juventude, sob um discurso nebuloso de “organização em redes” e “trabalho colaborativo”. Cada vez mais próximos do governo (pois seu interesse é em obter editais), o Fora do Eixo já organizara, durante a campanha, dois showmícios para Haddad, sob o nome de #ExisteAmorEmSP.
(Felizmente, o ritmo e a força da luta este ano foi tamanho, que superou a capacidade de reação e raciocínio de qualquer possível inimigo interno. O golpe de pauta apareceu, mas veio de outro lugar e de outra forma.)
Volto mais uma vez à questão das diferenças de postura que a prefeitura Haddad exigiria do movimento. Se em outros anos apostamos em abrir espaços na via institucional, buscando pautar o aumento na Câmara dos Vereadores, pressionando por Audiências Públicas e reuniões, este ano a identificamos como uma ratoeira. Ele sempre fora assumido de forma tática: o aumento só pode ser barrado de fato nas ruas. Este ano, levar a luta para o interior dos espaços institucionais seria uma estratégia interessante antes para a própria prefeitura do que para o movimento. Se há uma forma histórica de cooptação dos movimentos populares, é pela burocracia, e esta sabemos que o PT domina bem. Além disso, o PT tinha maioria absoluta na Câmara, e o único vereador de oposição e de esquerda era o Toninho do PSOL, mas sua capacidade de articulação na casa era quase nula. (Dos vereadores da oposição de direita, preferimos nos manter o mais longe possível.) Portanto, identificamos que seria preciso disputar onde se situaria a luta: não nos gabinetes, mas na rua. [4]
Como barrar o aumento? Causando um impacto econômico, paralisando a circulação na cidade? Causando um impacto político, ao mobilizar as periferias que elegeram Haddad? Em todas as cidades que barraram o aumento, isso aconteceu em função de uma revolta popular. A forma como a revogação foi efetuada (votação na Câmara, decreto do prefeito, ação do Ministério Público, decisão de algum tribunal), isso jamais foi o decisivo. Os aumentos caíram porque as revoltas tornaram inviáveis a continuidade da vida normal na cidade. Na segunda revolta da catraca em Florianópolis, o aumento foi suspenso por uma decisão da justiça que tinha como pretexto nenhuma explicação técnica, mas “retomar a ordem pública”.
No limite, o que decidiria se o aumento é justo ou não seria a revolta popular, e não esta ou aquela explicação técnica. Por isso, pouco nos preocupou a “novidade” deste ano que foi o aumento abaixo da inflação. A luta do Movimento Passe Livre é contra a própria tarifa. Todo aumento é injusto porque é injusto cobrar tarifa. A tarifa é injusta porque exclui, porque o serviço deveria ser público. É isso que diz o MPL em suas atividades de base, suas ações de rua e sua propaganda desde 2004 na cidade. Essa é uma batalha no território da consciência, pela desconstrução das justificativas “técnicas”, pelo desenraizamento da ideia de que é natural pagar pelo transporte, de que as tarifas devem sempre aumentar. Era aí que se daria, em termos de discurso, nosso embate com Haddad. Por fim, havia um último elemento que tornava a conjuntura de junho diferente: a Copa das Confederações. Para muitas organizações, o início da Copa, no dia 15, era o prazo máximo que o movimento teria para barrar o aumento. A avaliação geral era que dali em diante teria início um período de criminalização e perseguição muito brutal, que impediria o avanço da luta. Algumas articulações de movimentos sociais, como o Comitê Popular da Copa e a Frente da Resistência Urbana estavam planejando mobilizações para o dia da abertura do campeonato. No MPL, defendíamos que a resistência aos megaeventos não poderia se dar de forma abstrata, fazendo atos “contra a Copa”, cujo efeito é no máximo político ou de propaganda. É a partir de lutas concretas – como a luta contra o aumento –, não permitindo o retrocesso de direitos e avançando nas conquistas sob o regime de exceção dos megaeventos, que se daria a luta contra estes.
2. A luta antes do primeiro grande ato
O MPL iniciou a convocação do primeiro grande ato contra o aumento para um mês antes da tarifa subir. A data do dia 6 de junho foi escolhida porque, de acordo com as declarações do prefeito, prevíamos que a tarifa deveria subir naquela semana. Alguns dias depois, Haddad e Alckmin confirmaram que o aumento aconteceria no dia 2 de junho. Daí em diante, o MPL foi intensamente pressionado para antecipar o ato. “Vai esperar subir para reclamar?”, “Depois que aumentou não dá pra abaixar”, etc.
Alguns grupos políticos tentaram usar a oportunidade para desgastar a imagem do MPL antes mesmo da luta começar. No entanto, tínhamos claro que, caso o ato fosse marcado para antes do aumento, ele seria esvaziado. Historicamente em São Paulo, as lutas contra o aumento só crescem de fato após a efetivação do aumento, pois é aí que ele ganha concretude na vida da população. E em todas as cidades que derrubaram o aumento, esta vitória foi sempre depois do aumento ter entrado em vigor. Por isso, mantivemos o ato para o dia 6. [5]
A postura do MPL de manter a primeira convocatória para o dia 6 não significava que não sairíamos na rua antes. Se queríamos uma luta “radical, intensa e descentralizada”, deveríamos fazê-la acontecer na prática – e essa seria, aliás, a única forma eficiente dos demais grupos políticos que somariam na luta compreenderem nossa estratégia.
Realizamos assim, na semana em que o aumento foi anunciado, uma rodada de atos regionais a partir das escolas onde mantínhamos trabalho de base. (Auto)organizados pelos estudantes em conjunto com o MPL, esses atos começavam na porta das escolas de manhã cedinho. Embalados pelos batuques rebeldes da Fanfarra do MAL [6], seguíamos em cerca de 100 ou 200, bloqueando as ruas do bairro e invadindo algum terminal de ônibus próximo, onde queimávamos uma catraca. A coesão do ato (sem disputas internas entre grupos políticos) permitia que os trajetos e ações fossem decididos de forma coletiva, e a pouca atenção e preparo da polícia dos bairros para acompanhar os protestos nos dava grande liberdade de ação. Essas ações foram fundamentais para dar uma formação prática da luta de rua para esses secundaristas: se durante a primeira meia-hora de ato, eram os militantes do MPL conduzindo a marcha, a partir de um certo ponto nossa atuação deixava de ser necessária [7].
Além da consolidação do trabalho de base, esses atos tinham o intuito de difundir a revolta pela cidade: alertar a população de que a tarifa ia subir, e que a única forma de abaixá-la seria se organizando e lutando. Nos atos, também eram distribuindo panfletos divulgando a mobilização do dia 6 no Centro.
Foram quatro atos regionais em escolas antes do aumento, um no dia seguinte ao outro, que bloquearam o Terminal Pirituba, Terminal Jd. Ângela, Terminal Parque D. Pedro e Ponte do Jaguaré, sempre terminando com a destruição da catraca, símbolo da opressão contra a qual o movimento luta. Apareciam, já nessa primeira rodada de ações, os eixos da luta: descentralização, intensificação e radicalização (lembrando que até 2011 as invasões de terminais eram consideradas por todos nós como ações muito ousadas).
Entre esses atos que fizemos antes da luta começar, havia ainda uma ação que encarávamos como fundamental para nossa estratégia. Ela aconteceu, mas de forma desastrada. Entendíamos que seria crucial que, no primeiro dia útil após o aumento entrar em vigor, dia 3 de junho, acontecesse um ato na Estrada do M’Boi Mirim. Sem convocatória pública, para causar surpresa. Por três motivos. Primeiro, porque a M’Boi tem um peso simbólico muito grande na luta por transporte em São Paulo: de 2010 para cá, a população realizou pelo menos 12 manifestações ali. Segundo, porque bloquear a M’Boi pela manhã tem um impacto econômico muito grande: mais de 1 milhão de trabalhadores tem aquela estrada como principal via de saída do bairro para o trabalho. Terceiro, porque aquela havia sido uma das regiões onde o PT havia conseguido mais votos, portanto um ato ali logo no primeiro dia representaria uma agitação em uma base eleitoral estratégica.
No entanto, às vésperas de junho, o cenário se mostrava desfavorável para a realização desse ato. O movimento organizado de transportes da região, o SOS Transportes M’Boi Mirim, do qual o MPL participava até o início do ano, se encontrava cada vez menos ativo. Desde a eleição ele sofrera rachas e, com a chegada do PT à prefeitura, entrara em uma agenda de reuniões com secretários e técnicos, abandonando a luta de rua. Os militantes, em geral lideranças comunitárias, viam sua capacidade de mobilização em seus bairros também cada vez mais reduzida.
O MTST, que desde 2011 apoiava alguns atos do SOS mobilizando sua base acampada, agora havia decidido por lhe retirar o apoio. O MPL tentou construir esse ato do dia 2 junto ao MTST. A proposta foi muitíssimo bem recebida pelos militantes, mas desprezada pela direção política do movimento. A deliberação da reunião do MTST foi, então, de mobilizar alguns coordenadores, mas não “o povo” (os acampados). Na prática, um apoio meramente formal.
A partir de um trabalho com secundaristas, o MPL já tinha feito um ato de panfletagem no terminal na semana anterior. Mas boa parte dos estudantes temiam participar do ato do dia 3 porque se acreditava que a repressão seria muito violenta caso bloqueássemos a M’Boi inteira.
O ato do dia 3 foi construído, então, apostando em um fator muito arriscado: de que conseguiríamos produzir uma revolta “espontânea” dos passageiros. Essas revoltas ocorrem de tempos em tempos na região, mas nunca são completamente espontâneas. São sempre produto da sabedoria política de lutadores experientes da região que, identificando os momentos precisos no trânsito de manhã, conseguem dar forma à raiva das pessoas e puxar atos. Foi numa dessas que surgiu, dois anos antes, o SOS Transportes.
Por uma questão de sobrecarga de atividades do próprio MPL, o ato foi organizado às pressas, em cima da hora. Na madrugada, uma barricada de pneus bloqueou o Fundão da M’Boi, na altura do Jd. São Pedro, e a população teve que ir a pé até o terminal. Helicópteros da imprensa vieram filmar e encontraram, conforme o dia clareou, um protesto com cerca de 30 pessoas – fizemos sem apoio formal de nenhuma organização, apenas com a colaboração entre militantes camaradas de lá e de fora – na altura do Terminal Guarapiranga. Queimamos uma catraca em frente à Subprefeitura, mas rapidamente um Guarda Civil que trabalhava no órgão apagou o fogo com um pequeno extintor. Marchamos até o Socorro, onde dispersamos, e ao longo de todo caminho fomos hostilizados pela população, que nos xingava nas filas dos ônibus por atrapalhar o trânsito.
A sensação final foi muito ruim. Dava a impressão de que o argumento do “aumento abaixo da inflação” tinha sido bem aceito, a Prefeitura era popular, e corríamos o risco de nos isolar como um grupelho fazendo ações radicais. Talvez, por causa da carga acumulada do Bilhete Único, o peso dos R$3,20 ainda não tivesse sido sentido pela população… Do ponto de vista de uma construção política na região, a ação do dia 3 foi péssima. Mas do ponto de vista midiático, da pressão sobre o Haddad, o ato foi um sucesso: a M’Boi fechada estava na capa de todos os jornais que noticiavam o aumento. Do helicóptero, a imprensa não viu os usuários nos xingando.
Mas agora já não era possível voltar atrás. O ato do dia 6 e suas barricadas na 23 já estavam sendo preparados. Nessa manhã, o que nos reconfortou foram as palavras de um camarada: “pode ser pouco, pode ser louco… só não pode ser pouco louco”.
São Paulo, férias de julho de 2013, inacabado.
Notas
[1] Vale observar que, às vésperas do primeiro ato, um grupo de punks realizou um escracho ao Haddad durante uma palestra deste para o MNPR (Movimento Nacional de População de Rua). A ação foi um fracasso total, e os punks foram vaiados pela plateia. No mesmo dia, em uma reunião em uma ocupação, um dirigente do MNPR encontrou um militante do MPL e criticou duramente a luta contra o aumento. Esse é um exemplo muito forte de como a tática de escrachos este ano seria desastrada. Nossa estratégia passava por aproximar para luta os movimentos sociais e os setores de esquerda que elegeram o PT, pois isso por si só constituiria uma pressão para a revogação do aumento.
[2] Estudamos todos eles a fundo durante o semestre: tentando compreender qual era o projeto de cidade que ali se esboçava, realizamos debates junto aos movimentos de moradia e terminamos por elaborar uma crítica ao Bilhete Mensal e ao Arco do Futuro: http://passapalavra.info/2013/04/75693. Acesso em 20/07/2013.
[3] A experiência de Salvador foi registrada num documentário que foi amplamente exibido em escolas do Brasil inteiro, particularmente em Florianópolis, onde os estudantes discutiam o golpe operado pelas entidades estudantis. O aprendizado de 2003 foi fundamental para o triunfo da Revolta da Catraca em Floripa no ano seguinte, que conseguiu a redução da tarifa. É nesse contexto que surge o MPL: a existência de um movimento social organizado à frente da mobilização foi uma ferramenta que garantiu a autonomia daquela luta. Sobre a Revolta da Catraca, ver ORTELLADO, Pablo. “Um movimento heterodoxo”. CMI, 2004. Disponível em: <http://www.laquestionsociale.org/LQS/LQS_3/por_QS3_MovimentoHeterodoxo.pdf>. Acesso em 20/07/2013.
[4] Fugindo da ratoeira dos canais burocráticos, outro exemplo inspirador foi a luta do Assentamento Milton Santos, no começo do ano. Cerca de 70 famílias que em 2005 haviam conquistado com muita luta suas terras em Americana, no interior de São Paulo, se viram sob ameaça de uma “reforma agrária ao contrário”, correndo o risco de ser despejadas do assentamento onde já viviam e produziam há anos por causa de uma ação do antigo proprietário na justiça. As várias tentativas de “diálogo” institucional se mostraram em vão: eram enrolados e o prazo do despejo ficava mais próximo. Até que, em janeiro, os assentados decidiram ocupar o Instituto Lula. A ação direta de enfrentamento, e não os labirintos do diálogo, forçou uma reação. O Milton Santos venceu. (Nesse processo, também foi marcante a reação da direção do MST: em nota no site, tirou o corpo fora da ação. Ao invés de defender sua própria base social – os sem-terra –, preservou seu apoio ao governo. Ao mesmo tempo que esse caso mostrou o ponto em que chegara a incorporação dos movimentos tradicionais à institucionalidade, também foi um sinal claro da disposição de seus militantes de base para uma luta de enfrentamento.)
[5] Alguns grupos tentaram convocar atos antes pelo Facebook. Apoiamos, mas mantivemos o peso na nossa convocação para o dia 6. (Foi o caso de um “ato massivo” convocado pela corrente Esquerda Marxista, que juntou uma dúzia de militantes e um carro de som em frente à Prefeitura. Vale pensar sobre por quais outros motivos esse chamado foi esvaziado: a falta de confiança e identificação das pessoas com o grupo que convoca?, o formato de comício imposto pelo carro de som?, a ausência de uma construção prévia?…)
[6] Até 2012, o MPL-SP tinha uma bateria própria, que tocava nas manifestações. Durante um período de refluxo, sem atos, a banda se autonomizou e se transformou na Fanfarra do M.A.L. (Movimento Autônomo Libertário), que apesar de externa ao MPL, continua bem próximo deste, mas agora participando também de outras lutas. Há todo um debate em torno da proposta estética e do significado da bateria, em contraposição ao carro de som, como forma de empoderamento da base nas manifestações. Mas isso merece outro texto…
“Do helicóptero, a imprensa não viu os usuários nos xingando.”
a imprensa via uma oportunidade de bater no Haddad, era notícia mais relevante para eles, certamente.
faltou a nota [7] do texto!