Por Thiago Cazarim e Diego Dal Bosco Almeida
A educação é um direito assegurado em diversos dispositivos jurídicos nacionais e internacionais. Tal como disposta na Constituição Federal de 1988, no caso do Brasil, a educação aparece como um dos direitos sociais. A educação é, assim, um direito que tem especificidades em relação a outros direitos, como o de propriedade, por exemplo. Enquanto o direito de propriedade refere-se àquele de cunho privado e individual, o direito à educação prefigura no rol dos direitos que são inalienáveis e que têm caráter público, muito mais que privado. Enquanto o direito à propriedade se refere aos limites impostos ao Estado para agir sobre a vida privada dos cidadãos; os direitos sociais se referem, de maneira oposta, a um dever positivo de agir do Estado. O direito à educação se afigura, assim, como direito dos cidadãos e, no caso da criança e do adolescente, não se configura como uma propriedade da família.
A agenda do movimento denominado de “Escola Sem Partido” tem contribuído sistematicamente para uma confusão no debate em relação ao direito social à educação, associando-o com os direitos de cunho privado, como o direito de propriedade. É nesse sentido que um dispositivo do documento que ficou conhecido como Pacto de San José da Costa Rica, no trecho que dispõe acerca dos direitos humanos, tem sido mobilizado para afirmar a prevalência que teriam as famílias em educar seus filhos em relação às questões moral e religiosa frente à educação formal. A confusão é, de fato, proposital e despropositada, já que no artigo 12, § 4º, do documento em questão, trata-se apenas de afirmar o direito privado das famílias de educarem os filhos conforme suas convicções, mas não de afirmar que tal direito se sobrepõe integralmente à educação escolar, formal, compreendida enquanto um direito social, nem de dizer que esta última é uma questão de propriedade dos pais sobre os direitos dos filhos.
Embora o movimento “Escola Sem Partido” tenha ganhado corpo e consistência, sobretudo através de estigmas criminalizantes de professores que embasam suas práticas em pedagogias críticas – nos últimos tempos acusados de “doutrinação” ou “sequestro ideológico” – é preciso lembrar que os profissionais que optam por pedagogias críticas estão amparados por lei e seguem sua atuação embasados por princípios pedagógicos contemporâneos que não estão simplesmente situados a partir de uma simples oposição binária entre esquerda/direita, comunismo/capitalismo, ideológicos/não-ideológicos. As pedagogias críticas se fazem presentes tanto nos marcos legais que regem a educação brasileira quanto em processos sociais e políticos mais amplos, dos quais fizeram parte, inclusive, numerosas discussões acerca dos princípios teóricos e práticos que orientam as práticas de ensino nas escolas. A educação é um processo que se comunica com diversas instâncias, formais e informais, institucionais e difusas. No que diz respeito ao ensino das diferentes disciplinas (ou matérias) nas escolas, encontra-se quase sempre no tenso limiar entre teoria e prática, entre reflexão e ação. Nos “tempos” que seguem, para continuar refletindo acerca das práticas de ensino, torna-se necessário discutir tanto os dispositivos legais que regem a educação brasileira — em parte resultado das discussões e debates dos educadores nos anos 1980-1990 — e os próprios princípios pedagógicos que auxiliaram a orientar esses postulados legais e também a criticá-los. Entende-se que é necessário, no contexto de ataque à profissão docente, reafirmar não só os princípios epistemológicos de atuação profissional dos professores como também os dispositivos que servem enquanto anteparo frente à manipulação da ignorância sobre os processos educativos e as discussões pedagógicas sobre o que acontece na sala de aula. Sugere-se, então, uma leitura crítica dessa relação e das realidades que a projetam entendendo a escola como o locus da vida democrática.
Marcos jurídicos da educação crítica
O crescimento de movimentos como o “Escola Sem Partido” têm suscitado uma discussão, disseminada via redes sociais e grande imprensa, que se pode entender como um falso debate. Em grande medida, o eixo deste ataque à educação escolar vincula-se à ideia de que os conteúdos ditos “formais” como os de português, matemática e ciências, por exemplo, não estariam sendo trabalhados adequadamente em detrimento de aulas sobre direitos humanos, democracia, etc. Há vários grupos no movimento e ainda mais entre os seus apoiadores informais. Em todos eles a imprecisão das informações impera fortemente. Um grupo, que se pode considerar mais “radical”, entende a possibilidade de se trabalhar com temas relacionados à democracia, direitos humanos e cidadania um dos produtos por excelência do chamado “marxismo cultural”, da “doutrinação” ou do “lulopetismo”. Outro grupo, talvez mais “tímido”, embora não menos mal-informado, entende que ao se trabalhar com esses temas o professor deixaria automaticamente de trabalhar os conteúdos “formais” que seriam mais “importantes”, como interpretação de texto e cálculos matemáticos — passando a ideia de uma espécie de “desvio de função”. O professor de português estaria lecionando cidadania ao invés de ensinar a “regra dos porquês”. Afinal, seriam os professores agentes do “comunismo”, disseminadores do tal “marxismo cultural”? Haveria esse “desvio de função” de professores que não estariam ensinando os conteúdos formais que deveriam ser ensinados nas escolas? Perguntas que poderiam muito bem ser consideradas despropositadas há algum tempo atrás, mas que, atualmente, geradas por um falso debate, têm propósito enquanto moeda eleitoral. Um falso debate que tem servido tanto para disseminar desinformação na população que pouco ou nada conhece acerca dos debates pedagógicos, da atuação profissional docente ou mesmo dos marcos legais da educação brasileira; quanto para dizer, afinal, que os professores não estariam ensinando o que lhes é obrigado a ensinar. Um rápido olhar para a recente história da educação no Brasil, no entanto, pode servir para desfazer esses e outros mal-entendidos surgidos há alguns anos e que ganharam consistência no último pleito eleitoral.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) e a proposta que há poucos anos (2016–2018) vem sendo discutida com a chamada Base Nacional Comum Curricular (BNCC) guardam relação com o contexto de implementação das disposições legais que regem a educação nacional, especificamente da LDBEN (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que é do ano de 1996, mas que, de certa maneira, se configurou como a tradução de um longo percurso de discussões que pode ser percebido já a partir do período de abertura democrática, nos anos 1980. São os PCN’s e a BNCC — em que pese a segunda ter sido nos últimos anos direcionada sem considerar grande parte das discussões até então realizadas — os instrumentos legais que direcionam a educação e o ensino nas escolas públicas e privadas do país e que orientam a prática de ensino dos professores e sua relação com a formação do currículo escolar. Em outras palavras, são os PCN’s e a BNCC os dispositivos legais que devem ser seguidos em relação ao ensino nas escolas brasileiras. São os documentos oficiais que regem a educação nacional e neles é que aparecem as vinculações a temas como direitos humanos, democracia ou cidadania, assim como também constam os conteúdos formais de português, ciências, história ou matemática. Apesar de se tratarem de documentos oficiais, não são criações de um ou outro governo apenas, mas se configuram — é claro que não totalmente salvo de críticas de todo tipo — como uma materialização das discussões que, nos últimos trinta anos, envolveram numerosos profissionais da educação que ajudaram a pensar as políticas públicas educativas.
A década de 1980 foi fortemente marcada por um intenso debate em torno das questões educacionais. Tratou-se, como colocam alguns especialistas, de um período que se chamou de “era do repensando”. A despeito dos anos anteriores, como entre as décadas de 1930–1950, quando a própria prática pedagógica não detinha ainda uma terminologia mais precisa nos cursos de formação de professores e o acesso ao ensino primário não era ainda universalizado; ou nos anos 1960–1970, quando, embora tenha se começado a refletir, de maneira mais efetiva, as práticas de ensino dos professores, dentre outros motivos a partir da própria criação do INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos Anísio Teixeira), a política educacional logo passou a ser orientada pelo que ficou conhecido na bibliografia pedagógica como “tecnicismo”, vindo do ideário norte-americano. Os 1980 representaram, ao contrário dos decênios anteriores, uma espécie de momento de rearticulação, considerando o papel desempenhado tanto pelas associações profissionais quanto pelas entidades representativas de professores, com a realização de seminários, congressos e reformas curriculares, além da publicação de livros sobre as reflexões que eram, nas diversas ocasiões, propostas. A prática de ensino, articulada à prática social, tornou-se gradualmente o principal tema de debate naqueles anos e contou com a crítica à estrutura dicotômica dos currículos dos cursos de formação docente, frequentemente opondo teoria e prática, conteúdos formais e modos de ensino. A atuação profissional dos professores passou a ser entendida como um processo de interpretação, investigação e de criação, o que viria a sugerir um redesenho da atuação docente. Passava-se, então, às tentativas de rompimento com o “ideário tecnicista”, onde a apreensão das práticas sociais se conectava às práticas de ensino. A partir das práticas, das subjetividades, enfim, da consideração das inúmeras “realidades” do espaço escolar, convertidas em um dos instrumentos da ação pedagógica, é que se poderia obter o redimensionamento da ação educativa que passou, gradualmente, a levar em conta a observação, a interpretação, a problematização e a teorização, por parte do professor, das suas práticas de ensino. Os conteúdos formais deixaram de ser apenas abstração e passaram a estar relacionados com o cotidiano escolar, com as diferentes “realidades” dos alunos, das escolas e da comunidade, o que veio a deslocar a atuação do professor para uma dimensão criativa, investigativa e interpretativa sobressaindo, dali em diante, a valorização de sua autonomia profissional.
Iniciou-se, nos anos 1980, um debate acerca da relação de conteúdos formais no cotidiano escolar com as muitas “realidades” que cercam os alunos. A prática educativa, de ensino, pelo menos em termos de sua proposta, deveria ser vista indissociável da teoria e da prática social: uma fonte permanente de reflexões, como colocado na obra Filosofia da Práxis, de Adolfo Sanches Vásquez (1968), referência de grande parte da produção acadêmica brasileira acerca da educação nos anos 1980. Foi um momento em que, influenciados pelo cenário de abertura democrática, muitos educadores buscaram refletir sobre autonomia profissional docente. Com alguma continuidade nos anos 1990, estimulada pelo então novo período de intensas transformações, as reflexões propostas nos 1980 ganharam novos ingredientes.
Nos 1990, um conjunto de reformas nas políticas públicas educacionais refletiu, não sem muitas objeções e críticas de inúmeros especialistas, mudanças nas dimensões legais relacionadas à educação no país que se materializaram em documentos diversos: antecedendo à LDBEN de 1996, o PDE (Plano Decenal de Educação) de 1993. Depois, as DCES (Diretrizes Curriculares para o Ensino Superior), programas de investimentos e financiamentos e valorização da carreira do magistério como o FUNDEF, o programa que financia os estudantes no ensino superior (FIES), o SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) que incluía, na ocasião, o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e os PCN´S (Parâmetros Curriculares Nacionais) além de alguns outros documentos legais. Em parte, esses documentos consubstanciaram um projeto amplo de educação para o país até então em uma situação que, embora estivesse passando por um processo de revisão, não detinha direção e encaminhamento. Por outro lado, numerosos educadores criticaram a ausência de um debate que considerasse os diversos pontos de vista, dos cursos de licenciatura, das entidades acadêmicas e estudantis e da própria produção acadêmica acerca das experiências inovadoras que vinham se desenvolvendo no país. A chamada Carta de Recife e, depois, a Carta do Rio, respectivamente de 1999 e de 2000, são exemplos das críticas que foram realizadas. O debate é longo e se estende pelas primeiras décadas do século XXI, mas é possível perceber, pelo menos, dois eixos de discussão: o das entidades representantes de professores e o dos que, oficialmente, implementaram a gestão das reformas da década de 1990.
As entidades representativas de professores entendem que a política educacional não deve prescindir, primeiramente, da valorização do magistério e das melhorias na qualidade da escola e da educação pública para jovens e adultos, além da busca pela emancipação humana e pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária; as críticas dessas entidades às reformas relacionam-se aos trechos em que a educação seria vista apenas como um investimento no capital humano e em uma educação resumida tão somente em competências e habilidades como flexibilidade, polivalência, liderança, cooperação, dentre outras. A pesquisadora Isabel Alarcão (2001) é muitas vezes citada nesses documentos. Vem de seu trabalho a inspiração que orientou a gestão da reforma em relação às competências relacionadas às ocupações de postos de trabalho no novo contexto marcado pelo avanço tecnológico e pela globalização, eixos principais de suas considerações em relação à educação.
Entre os 1980-1990 ocorreram delineamentos e encaminhamentos gerais que não estiveram livres de debates críticos por parte das entidades de professores, por exemplo. Os dispositivos legais pensados pelas autoridades competentes nos diferentes governos nem sempre levaram em consideração ou abarcaram o teor das discussões realizadas nos seminários, encontros e reuniões. Ainda assim, tanto no que se delineava a partir dos anos 1980 quanto nas mudanças em relação às dimensões legais da educação, em parte resultado dessas primeiras discussões a partir da abertura democrática, não se prescindiu da ideia de que os conteúdos, para fazerem sentido, devem buscar elementos nas realidades dos alunos como modo de construir significados e ter relevância na vida dos que estão envolvidos no processo educativo. A despeito das discordâncias em relação ao que deveriam ser, afinal, os sentidos da educação escolar e os conteúdos formais, tanto as entidades de representação docente quanto os documentos e dispositivos legais não concebem mais o professor como um mero transmissor de conhecimentos-verdade, mas como um profissional orientado por uma formação reflexiva, investigando as questões que permeiam o cotidiano e as “realidades” do espaço escolar no intuito de mobilizar conhecimentos e poder redimensiona-los. A prática, neste caso, aparece como princípio epistemológico em todo o percurso de formação e ação docente, pois se configura como elemento de investigação da própria prática de ensino e como elemento de articulação dos conteúdos formais em relação à prática social, cultural, política, etc. Esse princípio epistemológico — da prática e da reflexão sobre a prática — é considerado, portanto, em numerosos trabalhos acadêmicos e, embora as discussões político-pedagógicas existam, bem como as críticas que dela surgem, são esses mesmos princípios que orientam, em boa parte, a dimensão legal dos dispositivos implementados a partir das reformas em relação ao ensino no país desde os anos 1990, a exemplo de outras reformas realizadas em países como Portugal, Espanha, Canadá e mesmo nos Estados Unidos.
Quem está na sala de aula, atuando na educação básica em instituições de ensino público ou privado, sabe que os professores nem sempre participaram efetivamente das discussões acerca da implementação das políticas públicas educacionais. Às vezes por desinteresse, ligado, de certa maneira, a décadas de desvalorização profissional por parte dos diversos governos; outras porque o próprio processo de implementação dessas reformas veio sem a devida discussão em relação às partes envolvidas. Ainda assim, é necessário, mais do que nunca em um contexto de ataque à profissão docente, reafirmar os princípios epistemológicos de nossa atuação profissional e os dispositivos legais que, embora nunca tenhamos deixado de criticar, servem-nos agora como um anteparo frente à manipulação da ignorância sobre os processos educativos e as discussões pedagógicas sobre o que acontece na sala de aula.
Os PCN’s e, mais recentemente, a BNCC são, em parte, elementos materiais das discussões realizadas ao longo das últimas décadas em relação às políticas públicas para a educação no país e, ao mesmo tempo, muitos de seus postulados tem sido criticados pela produção acadêmica da área. Agora, no entanto, em um cenário onde a ignorância e o desconhecimento dos princípios pedagógicos passaram a reger a retórica que venceu o último pleito realizado no país, torna-se mais do que necessário reafirmar os princípios de nossa atuação profissional e as leis que regem o ensino no país, mesmo considerando todas as críticas que possamos fazer a esses documentos. Talvez seja a hora de examinar minuciosamente esses documentos e, fazendo uso de nossa liberdade profissional, tirar desses dispositivos legais o que eles têm de melhor.
Educação como prática transversal da crítica e da liberdade
O discurso que vem sendo amplamente disseminado sobre a prevalência ou não do ensino que considera os direitos humanos, a formação cidadã e a democracia, em detrimento de aulas de matemática, português ou história, como já colocado, é um falso debate. Primeiro porque para quem conhece um pouco da realidade escolar, sobretudo nas escolas públicas, sabe que esses temas, não raras vezes, são pouco explorados no cotidiano escolar. Segundo porque, para quem tem um pouco mais de intimidade com o pensamento didático-pedagógico de cunho crítico, sabe que a professora de matemática que se apoia numa pedagogia crítica não necessariamente abandona os conteúdos de matemática para tratar, por exemplo, de índices estatísticos de acesso à escola, sobre a porcentagem de analfabetos no país ou, ainda, sobre a porção que cabe ao Brasil em relação à economia mundial. Também o professor de português não precisa interromper sua aula sobre sintaxe para que seus alunos leiam um texto sobre direitos humanos. O texto, a sintaxe e os direitos humanos se entrecruzam na aula de português; da mesma forma, dados estatísticos sobre a realidade social do Brasil podem ser cruzados, por exemplo, com conteúdos de aulas de geografia, ciências, sociologia e biologia que focalizem a organização do espaço mundial ou os tipos de epidemias e doenças que assolam determinadas regiões do planeta.
Essa imagem anedótica do professor que abandona os conteúdos de sua disciplina para ministrar outros que não seriam de sua competência, na verdade, estimula certo “folclore” criado em torno das pedagogias críticas. Ademais, é importante afirmar que a prática de cruzamento de informações e dados não é, como alguns setores políticos argumentam, uma questão de “doutrinação esquerdista”, mas sim uma prática tradicional das mais diversas ciências. Por essa razão, não faz sentido condenar a pedagogia crítica — que trabalha abertamente de forma interdisciplinar, transversal e integrada — como responsável pelo descaso com os conteúdos e parâmetros curriculares previstos pelos diversos dispositivos educacionais nas três esferas da União.
O que é preciso compreender e, mais que isso, fazer compreender publicamente é que os saberes formais das diversas disciplinas escolares não são entidades maciças incomunicáveis — assim como não são os saberes informais a que os estudantes são expostos em suas vidas diárias. Os conteúdos de estatística, desse modo, integram tanto os saberes disciplinares das áreas de biologia, geografia, história e matemática, quanto os discursos familiares, midiáticos, da cultura pop e forjados em espaços variados de sociabilidade são integrados em discussões sobre relacionamentos, violência, a transição da adolescência para a vida adulta, e quantos outros se puder enumerar. Além de as ciências normalmente já se servirem da prática de integração de informações para produção de seus saberes, a transversalidade vai muito além da comunidade científica e das escolas onde alguma pedagogia crítica está presente: ela é um fato da vida de todos nós.
Direito à educação e escola como locus da vida democrática
Embora a retórica eleitoral de destruição, amplificada pela mídia e redes sociais (propositalmente ou não), tenha se transformado na principal pauta da política de um governo que necessitará permanentemente da criação e recriação do caos para se manter no poder, os instrumentos legais talvez não sejam tão fáceis de destruir. A qualidade da educação básica, principalmente no caso das escolas públicas, passa pelo debate da valorização salarial dos professores, da melhoria dos recursos e estrutura e do incentivo à formação continuada. Então depende também de nós, professores, reafirmarmos nossa autonomia profissional e não deixar que um falso debate nos domine pelo medo.
Há, no entanto, a tentação de reduzir o direito à educação à esfera jurídica. O direito à educação, como enunciado na introdução deste texto, é um complexo conjunto de direitos e deveres que colocam em relação o Estado, por meio de suas políticas educacionais, e os agentes que trabalham para garantir a efetivação da educação como direito de caráter público; a família ou o responsável legal, que tem o dever de assegurar a frequência à escola e zelar pelo bem-estar da criança e do adolescente; e a criança e o adolescente, que são os sujeitos aos quais o direito à educação diz respeito diretamente. É, então, pela concertação de esforços entre Estado, sociedade e família, prevista na Constituição Federal, que o direito à educação deve ser garantido e efetivado. Esse conjunto de esforços não se limita a afirmar, como algumas vezes temos feito, que o professor tem autonomia intelectual e liberdade de cátedra. Mesmo que afirmar tais liberdades, a nosso ver, integre as condições elementares do exercício da docência, ela afirma apenas um direito de cunho individual que, embora seja basilar, ainda assim é insuficiente para dar conta da complexidade de um direito social, de cunho público e cuja efetivação depende de um compartilhamento de responsabilidades entre Estado, sociedade e famílias.
A defesa dos docentes deve se situar no quadro geral da defesa de uma educação pública que tenha efetivamente um caráter público. Há um exemplo que pode elucidar a questão. Ao acompanhar o movimento de ocupação de escolas na cidade de Goiânia, se teve a oportunidade de conversar com um pai de estudante que resolveu conhecer a ocupação e manifestar seu desejo de retomar as aulas. Como é sabido, em Goiás tentou-se implementar, sem sucesso, um projeto amplo de repasse de gestão de escolas a organizações sociais, o que foi o estopim para as ocupações em questão. Conversando com o pai que visitava a escola ocupada, e que manifestava simpatia pela gestão escolar por organizações sociais, foi apresentada a possibilidade de optar por um modelo de gestão escolar compartilhada com a comunidade escolar. Ao tomar conhecimento da ideia de um conselho escolar, aquele pai imediatamente concordou que havia outras possibilidades além da privatização daquela escola e passou a entender alguns dos motivos do movimento de ocupação.
O exemplo serve para mostrar que a educação precisa ser defendida como um direito compartilhado, e que certas defesas da liberdade de expressão e da autonomia docente muitas vezes reforçam a ideia de que o professor é um oponente, um indivíduo que não partilha do mesmo campo de responsabilidades que a família. A lógica do “Escola Sem Partido” é amplamente calcada na ideia de uma educação como direito privado, cujos sujeitos não são as crianças e adolescentes, mas as famílias. Não é em vão que há uma semelhança entre a maneira pela qual o “Escola Sem Partido” entende a educação e os discursos que tornam as crianças propriedades das famílias.
Para reverter esse quadro, é preciso investir muito para além da defesa da liberdade dos professores. É necessário reconstruir um consenso sobre o caráter público de um direito cuja concretização deve ser compartilhada entre Estado (incluindo a escola), família e sociedade. Para isso, a escola deve ser um lugar de encontro e exercício da democracia, o que implica uma maior aproximação com as famílias, mas também a luta por modelos de gestão escolar e de elaboração de currículos que levem em conta, efetivamente, as realidades locais, singulares de cada comunidade escolar. Debater e construir currículos de forma compartilhada entre gestores, estudantes, educadores e famílias, por exemplo, pode ser uma forma de tornar a escola um lugar de negociação de conflitos, em vez de uma agudização estéril, tal como a propalada por aqueles que substituem o diálogo pela tática da filmagem, da ameaça e da exposição descontextualizada do trabalho docente.
Se devemos nos munir de todo o conhecimento jurídico disponível para fazer valer o direito à educação, resta também considerar que há uma dimensão não-jurídica, embora eminentemente política, que está envolvida na defesa da educação de qualidade. Resistir ao “Escola Sem Partido”, é claro, invariavelmente implica a mobilização do aparato legal para respaldar educadores e instituições, mas ela só será efetiva de modo duradouro quando a lógica do compartilhamento e negociação do direito à educação prevalecer sobre a da judicialização. Trata-se de um ponto que ainda exige profundo amadurecimento por parte de gestores, educadores, estudantes, pais e militantes, mas apostamos que é este o caminho mais concreto para enfrentar e vencer o cenário adverso atual. Sugerimos, para concluir, que resistir às diversas formas de privatização — stricto sensu, como o das organizações sociais, ou lato sensu, como a da prevalência do direito de propriedade sobre os direitos sociais da criança e do adolescente — é fundamental para o sucesso de nossos enfrentamentos. Não somente pela garantia dos recursos públicos para a educação, mas porque tornam a escola um locus de encontro, debate, negociação e trabalho compartilhado — torná-la um espaço de exercício direto da democracia, pois — é a forma mais consistente e concreta de apresentar uma alternativa à sanha persecutória e demonizadora do trabalho dos educadores. Enquanto a escola não se mostrar um lugar de real exercício democrático, enquanto os direitos individuais dos educadores não forem entendidos como partes integrantes de uma dinâmica complexa de compartilhamento de responsabilidades, o conhecimento jurídico servirá, quando muito (embora, ultimamente, não seja pouca coisa), para apagar focos recorrentes de incêndio.
Autores:
Thiago Cazarim é Doutorando em Performances Culturais – UFG.
Diego Dal Bosco Almeida é Doutor em História – PUCRS.
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O artigo foi ilustrado com fotos de uma instalação ao ar livre em Sydney, Austrália.