Por três trabalhadores de férias
A vila de pescadores fica numa praia paradisíaca, no mesmo litoral em que algum dia tamoios e franceses derramaram sangue nas batalhas contra portugueses e tupiniquins. Será que os caiçaras dos bares ao redor descendem daqueles que se estabeleceram por aqui desde aquelas guerras? No horizonte, as duas únicas usinas nucleares que o país orgulhosamente detém parecem pontinhos brancos, cobertos de tempos em tempos pelos enormes cargueiros que seguem para sabe-se lá qual porto.
A cada hora, dezenas de lanchas chegam à praia carregadas. Apesar de avançarem velozmente sobre a areia, não são tropas militares que desembarcam — ou melhor, é outro exército que invade o vilarejo, sobre o qual se abate um verdadeiro estado de emergência. Nós mesmos havíamos embarcado numa dessas lanchinhas mais cedo, munidos de mochilas de viagem e ecobags abarrotadas de mantimentos, que nos permitiriam enfrentar a escassez de produtos e a inflação dos preços típicas destes períodos de exceção.
Os motorzinhos de 25 ou 40 cavalos que propulsionam os botes de um lado para o outro provavelmente são mais um dos resultados da bonança dos anos de crescimento econômico dos governos petistas, bem como a rede elétrica que chegou com o Luz Para Todos. As lanchinhas são o equivalente das motocicletas por aqui: é visível o prazer da aceleração nas manobras, nas arrancadas e na forma como os pilotos dessas motinhos do mar avançam sobre a areia. É bem possível que esses motores tenham sido todos comprados com financiamentos a perder de vista, como as milhões de motos que invadiram as periferias urbanas nos últimos 15 anos. O certo é que vão e vêm incessantemente por entre as pedras e barcos de pesca na rota que liga a sede do município às diversas vilas litorâneas incrustadas nas formações rochosas. Não transportam apenas o exército de turistas, mas tudo o que for preciso levar e trazer das praias e da cidade.
Vetores de ligação expressa da vila com a cidade e as grandes rodovias, as lanchinhas trazem consigo a velocidade do urbano. Revelam o quanto esta paisagem paradisíaca esconde de urbanização: o fluxo acelerado de mercadorias, pessoas e dinheiro, ainda mais intenso neste período do ano. Junto com a eletricidade, o sinal de celular que já cobre boa parte da vila, as maquininhas de cartão que chegaram com ele e tantos outros dispositivos, as lanchinhas estreitam a distância geográfica e produzem uma continuidade temporal entre a metrópole e essa “comunidade tradicional” — que, vista pelas vielas que sobem os morros entre os quintais das casas, não parece muito diferente de uma quebrada das periferias extremas de alguma metrópole brasileira.
Já não se pode sair do urbano: olhando em volta, uma amiga brincou que pareciam haver estendido a Linha Amarela do metrô paulistano até a praia. E, apesar de não ter demandado uma Operação Urbana planejada e gigantesca como a Avenida Faria Lima, a dinâmica imobiliária capitalista não deixa de determinar o uso do solo por aqui. Quase não há pousadas propriamente ditas, mas uma parte das famílias caiçaras construiu casas para alugar, transformou seus quintais em campings ou vendeu terrenos para paulistanos. E, no período de movimentação turística intensa, a ultravalorização temporária dos terrenos leva muitas famílias a evacuarem o próprio lar e amontoarem-se na casa de parentes. Otimizam ao máximo, assim, os ganhos com aluguel, provavelmente para constituir uma poupança que lhes permita sobreviver ao longo do restante do ano.
Não são poucas as casas alugadas via Airbnb e similares, numa combinação familiar entre as últimas tecnologias e a precariedade da viração de quem precisa ser constantemente criativo para sobreviver. A “comunidade tradicional” mostra-se, então, uma comunidade de microempreendedores, conectados à economia global pelas “plataformas” que, como as lanchinhas, disponibilizam esses territórios e populações ainda mais integralmente para a acumulação. Todos postos a trabalhar numa marcha cada vez mais acelerada, que exige conexões e deslocamentos sempre mais velozes.
Nessa proletarização tupiniquim, a “comunidade” inteira “colabora”, dispensando uma estrutura de gestão centralizada, para pôr em funcionamento uma espécie de resort ornitorrinco que, tanto pelo preço como pela “experiência” que oferece, ocupa um nicho específico no mercado de viagens. A intensa mobilização da população local — que precisa aproveitar a todo custo a oportunidade de refazer a poupança — garante um serviço eficiente de transporte, hospedagem e alimentação, capaz de atender a mais de mil turistas sem precisar recorrer aos expedientes mais custosos do setor hoteleiro clássico.
A ausência de estruturas hoteleiras regulares também é compensada por um algum esforço extra dos próprios turistas, que passam certo “perrengue” montando barracas ou subindo as pirambeiras com malas e mantimentos. Nem o lazer dos veranistas escapa da “proletarização” — ou, mais precisamente, da forma do trabalho abstrato.
Para um de nós, que trabalha em uma empresa de turismo, essa indistinção fica especialmente gritante. Ao desejar boas festas à equipe de funcionários na última reunião do ano, sua patroa foi explícita: “e lembrem-se de viajar nas férias, fazer novos roteiros ao ar livre, porque esse é o perfil aventureiro da nossa agência”. No curriculum vitae de um guia ambiental, cada trilha no bioma da Mata Atlântica representa um incremento de lifeskill. Quando até a diversão de ano novo atende ao pedido do seu chefe, fica difícil demarcar as fronteiras entre tempo de trabalho e tempo livre.
Mas tal indistinção está longe de ser privilégio de quem trabalha no setor turístico: basta olhar em volta na praia e constatar o uso constante do celular pelos veranistas — nós inclusive —, garantindo uma linha direta entre os trabalhadores de folga e eventuais “demandas urgentes” dos chefes, clientes ou colegas. E, mesmo se decidirmos nos “desconectar” e largar o aparelho no quarto, cada encontro na praia ainda representa uma oportunidade de networking, de ampliar a rede de contatos e fazer propaganda de si mesmo. Até a conversa mais banal toma a forma do trabalho: não é raro que diálogos prosaicos ganhem ares de entrevista de emprego (“cada um tem 30 segundos para se apresentar!”, dizia uma garota versada em Comunicação Não-Violenta numa rodinha no Bar do Caiçara).
A centenas de quilômetros de casa, reencontramos o tempo vazio e homogeneizante do trabalho abstrato no consumo ativo do turista que organiza e produz sua própria “experiência”, encerrando-a em milhares de fotos no celular. À medida que confere à viagem a forma hegemônica do trabalho contemporâneo, o turismo não deixa de ser uma espécie de proletarização do viajante. E assim se vai mais uma bela tarde na praia.
Passeio de lancha até o navio petroleiro Lena Knutsen
Um roteiro único para suas fériasDe noite, suas luzes amarelas incandescentes fazem parecer que o mar está pegando fogo. De dia, sua silhueta majestosa confunde-se com a paisagem natural como uma grande rocha vermelha. A imensidão das águas da baía faz parecer que estamos em dois mundos separados.
O que será que esse navio está fazendo ali, sem sair do lugar? O que será que ele está transportando? Para onde vai? O que está esperando? Quantas pessoas tem lá dentro? Suas dúvidas acabaram: chegou a oportunidade única de romper o véu que separa sua curtição de ano novo na praia dos grandes fluxos da cadeia logística da economia capitalista global!!
“Mas por que vou gastar dinheiro indo até um cargueiro se posso, pagando menos, ir de lancha até uma praia oceânica deserta e paradisíaca?” Pergunta errada! Se fosse de graça, não valeria a pena. Como qualquer obra de arte que se preze, o diferencial deste roteiro é pagar para ver uma coisa sem sentido.
A imensa parede de aço de 284 por 48 metros do navio Lena Knutsen: a grande obra de arte do capitalismo contemporâneo. Gigantesco mural vermelho e preto, consumido pelas cracas e musgos dos sete mares, invejado e imitado pelos maiores artistas internacionais.
Rompa com os estreitos marcos do metrô de sua cidade e visite com exclusividade, por algumas horas, as Filipinas ou a Noruega! Faça novos amigos entre o operariado da logística naval transnacional, as velhas toupeiras da global supply chain, ávidas para realizar seu papel histórico como vanguarda da libertação da humanidade na revolução mundial vindoura.
E o melhor: nesse incrível passeio, ninguém vai vir com o papinho de “vamo voltar de trilha?”. Desfrute um roteiro completamente inacessível a pé, a nado ou a remo!
Negocie já os melhores preços por cabeça ou pacotes com os barqueiros do canto esquerdo da praia. Pagamentos no cartão: passar na maquininha do Bar do Caiçara, com taxa de 5% cobrada pela Cielo.
* * *
– Olá, como vai?
– Bem! E você?
– Não falo português!
– Where are you from?
– Phillippines!
– What do you think about Duterte?
– He’s a nice guy!
* * *
– Hey, are you also Phillippin?
– Thanks God no, I’m Norwegian!
* * *
Quando até na praia faz-se tudo isso, fica difícil demarcar as fronteiras entre curtição de férias e crítica.
ê, garotos!!
ótima surpresa e texto!
Diferença entre curtição de férias e crítica… para alguns de nós é realmente difícil demarcar bem algumas coisas; como talvez para alguns cirurgiões seja difícil separar o socorro a um moribundo do prazer de um trabalho artesanal, ou para os colecionadores, que não diferenciam muito o estudo da história do hábito incontrolável de ter e classificar coisas. Só nos resta transformar essas neuroses em algo útil para nossas finalidades. (e entre uma coisa e outra, um mergulho no mar, que só pode ser entendido como uma verdadeira praxis contra o adestramento dos corpos, naquele que é o corpo mais incontrolável).
Ali o capitalismo determinou o uso do solo, do mar e do fundo do mar também. Assim como cerceia o acesso dos moradores do município em certas áreas. Que alguns turistas, donos de casa ou de ilhas, fazem questão de não manter relação com os munícipes.
No fordismo o pacote de viagens com guias e o espelho da organização do trabalho nas férias.
Esses artigo descreve o espelho da organização do trabalho nas férias no pós-fordismo, uberismo…
No clássico A Sociedade de Consumo, de 1970, Jean Baudrillard tratava do tema, em um capítulo específico de sugestivo nome: O Drama do Lazer ou A Impossibilidade de se Perder Tempo.
O sentido que ele aponta para a impossibilidade de se perder tempo no capitalismo contemporâneo é ainda mais profundo. O lazer não é tempo livre. O lazer é investimento do tempo como valor de uso. Já não é mais tempo livre portanto, cronometrado em dias, horas, semanas, medida de tempo do sistema de produção. “quando você ‘tem’ tempo, ele já não é mais livre”.
O texto é um espelho da distinção entre falsa consciência e experiência de classe. O que vale mais: a vanguarda esclarecida que nega as contradições da global supply chain e vê problemas em caiçaras usarem Cielo e na transformação do idílico espaço costeiro ou os trabalhadores que, encontrando-se em certas relações de produção em determinada formação socio-econômica, suportam a exploração e buscam sobreviver a ela?