Por Miguel Serras Pereira
No que se segue, proponho-me mostrar a necessidade de reconquistarmos, para o pensamento e a acção de uma internacional capaz de visar sê-lo do género humano, certas palavras e conceitos correntes, que, utilizados na linguagem de todos os dias, se tornaram equívocos, ou cúmplices da racionalização tanto da divisão — sempre política, porque instituída na base de relações de poder — do trabalho na esfera da economia como da economia da divisão hierárquica e classista do trabalho político. Assim, para assentar algumas ideias preliminares, tentarei considerar brevemente como redefinir e reconquistar um termo tão omnipresente, e que se tornou tão equívoco, como o de “democracia”.
Comecemos, pois, por tentar explicitar, à laia de pontos prévios, as condições gerais da democracia. Esta, parafraseando e precisando uma definição célebre, é o governo dos cidadãos comuns pelos cidadãos comuns e para os cidadãos comuns. É o regime em que os cidadãos governados são, ao mesmo tempo, os seus próprios governantes activos e regulares, sendo o poder político exercido pelas suas assembleias e pelos magistrados — sorteados ou, em sendo esse o caso, eleitos — que aqueles instituem na lei fundamental que se tenham fixado. Os cidadãos poderão eleger delegados para determinadas funções e órgãos governantes, mas estes deverão permanecer responsáveis perante os seus eleitores e vinculados pelo mandato que deles receberam. A democracia é cidadania governante.
Tanto deveria bastar para nos darmos conta de que só por abuso de linguagem poderemos falar de “democracia representativa”. Com efeito, a democracia requer que a célebre divisa da Revolução Americana – não à tributação ou imposição sem representação – seja substituída por outra: não ao governo sem participação governante do conjunto dos “iguais” ou governados. É verdade que as instituições representativas e a instauração do sufrágio universal foram meios que permitiram limitar a arbitrariedade do Estado e do poder dos grupos dominantes, e que ainda hoje podem fornecer recursos defensivos frente aos regimes ou projectos de regime que se baseiam na absolutização do poder do Estado. Mas não é menos verdade que são também mecanismos de segurança que garantem a exclusão dos cidadãos comuns do exercício regular e permanente do poder político, da deliberação e decisão das leis e medidas que os governam nos diversos domínios da vida colectiva.
Assim, a representação, consistente na redução da participação dos cidadãos comuns no exercício do poder à eleição periódica, de tantos em tantos anos, de uns quantos deputados e magistrados, é, essencialmente, um princípio oligárquico e classista, contra o qual a democracia só pode afirmar o princípio da igual participação no exercício do poder pelos cidadãos, o primado da sua actividade governante. Porque, se é verdade que a participação pode ser dependente, arregimentada, cúmplice da hierarquia e/ou dos grupos dominantes, não é menos verdade que sem participação não há democracia.
O carácter antidemocrático do “governo representativo” agrava-se quando a regra é não só que os cidadãos sejam forçados a não governar, escolhendo quem o faça acima deles, mas, mais ainda, forçados a limitar a sua escolha a listas de candidatos apresentadas por partidos, passando os representantes a estar vinculados mais ao mandato dos partidos do que àquele de quem os elegeu. Trata-se de uma fórmula que, ao mesmo tempo que reduz ainda mais o alcance da participação simplesmente eleitoral, corrompe também o que, num regime democrático, poderia ser o papel dos partidos — ou seja, de associações de pertença voluntária que animassem o debate e a actividade de proposta entre os cidadãos governantes, sem, todavia, governarem em vez deles ou serem canal obrigatório da acção política.
Por fim, na medida — hoje enorme — em que a economia é uma instância determinante ou um campo de relações de poder decisivo no governo das nossas vidas de homens e mulheres comuns, não há democratização possível, no sentido que tenho vindo a indicar, do exercício do poder, que não tenha desde o início de começar a transformar essa mesma economia. Acrescente-se que a democratização da economia tem vários níveis, sendo importante insistir em que, entre outras coisas, implica, nomeadamente, a democratização dos rendimentos e do mercado; a democratização das relações de poder no interior das empresas ou organizações; a democratização da decisão dos objectivos gerais e planeamento da actividade económica, etc.
Resumindo e concluindo provisoriamente, talvez o melhor seja dizer-se que, embora não saibamos ao certo o que seria a democratização da economia, sabemos que sem ela não há democratização efectiva do poder político, pois boa parte deste é hoje exercido na esfera económica (correspondendo, a traço grosso, àquilo a que João Bernardo chama “Estado amplo”), e, mais ainda, a componente “direcção da economia” tende a primar cada vez mais no governo efectivo da sociedade sobre a parte que cabe aos aparelhos de Estado propriamente ditos (“Estado restrito”, na terminologia de João Bernardo). Assim, seria talvez preferível falarmos, não tanto do poder político e do poder económico da oligarquia governante, como de um poder político oligárquico que se exerce ora sob a forma da organização hierárquica da economia, ora sob a forma de controlo dos aparelhos do Estado, sendo, em ambos os casos, esse poder, ou regime de relações e exercício do poder, que se trata de democratizar.
Ótima reflexão, só não consigo entender o motivo da diluição do debate de classe. Até porque o sujeito social que será capaz de democratizar o poder político e o poder econômico, se é que podemos separar uma coisa da outra, somos nós, os trabalhadores assalariados.
Os territórios zapatistas talvez sejam um exemplo prático, porém limitado, que nós podemos nos inspirar pra construção da “democracia revolucionária ou da real democracia”. Penso que, os revolucionários tem que atuar de forma prática, gestando um novo mundo a partir do velho mundo. É preciso que haja terreno fértil e criativo pra quando um novo período revolucionário surgir. Talvez assim, as novas formas de poder político inspirem o mundo do trabalho, e esse nó entre formas de luta avançadas nas ruas e mundo trabalho apático seja desfeito.
Operário Artificial,
obrigado pelo seu comentário. No entanto, se reler com atenção o que escrevi, dar-se-á conta de que sublinho, logo no início, “a necessidade de reconquistarmos, para o pensamento e a acção de uma internacional capaz de visar sê-lo do género humano, certas palavras e conceitos correntes, que, utilizados na linguagem de todos os dias, se tornaram equívocos, ou cúmplices da racionalização tanto da divisão — sempre política, porque instituída na base de relações de poder — do trabalho na esfera da economia como da economia da divisão hierárquica e classista do trabalho político”. Do mesmo modo, um pouco mais abaixo, sublinho claramente o carácter classista da chamada (por abuso) “democracia representativa”. Por fim, quando concluo que, “embora não saibamos ao certo o que seria a democratização da economia, sabemos que sem ela não há democratização efectiva do poder político”, julgo ter deixado claro que a democratização de que falo implica a ruptura com as relações de poder hierárquicas e classistas do capitalismo (tanto naquilo a que chamei divisão política do trabalho, como naquilo a que chamo divisão do trabalho político).