Por Rodrigo
Há alguns dias passo pelo mesmo lugar nas ruas de Boa Vista, capital de Roraima, e algo me intriga: uma camisa de flanela xadrez vermelha e preta está jogada no chão, no mesmo lugar, como se tivesse sido abandonada ali por alguém que saiu correndo ou algo assim. Por trás deste inocente objeto, uma tragédia urbana envolta problemas locais: o súbito desaparecimento de inúmeros venezuelanos, centenas talvez, por alguns dias, das ruas da cidade. Literalmente da noite para o dia. Para quem não é de Boa Vista, farei uma contextualização para que entendam a dimensão da situação.
Um olhar sobre Roraima
Roraima é um estado que normalmente já é muito estranho, mas nos últimos dias tem mostrado algo ainda mais intrigante. A – por vezes sutil e muitas vezes explícita – culpabilização dos venezuelanos por todos os meios e instituições é flagrante e constante. Talvez as exceções estejam em algum setor da igreja católica e outros poucos gatos pingados, mas esses discursos têm subido de tom. Falta segurança? São os venezuelanos quem está tirando a tranquilidade ancestral do lugar. Falta saúde? Culpa dos venezuelanos que invadiram os hospitais. Falta trabalho? Venezuelanos, que miseráveis!, que aceitam receber pouco e assim ocupam todos os postos de trabalho. Faltou água? Venezuelanos fazendo ligações clandestinas. O bico do calibrador de pneu do posto de combustível está quebrado? Malditos venezuelanos que não usam direito o negócio e por aí vai…
Tudo, absolutamente tudo, de forma direta ou indireta, é sempre culpa dos venezuelanos, chamados de “venecos” pelos roraimenses. Essa culpabilização, como é obvio, serve como meio de ganho para dois grupos que se beneficiam com a vinda destes imigrantes. O primeiro grupo, ligado ao poder público, vê, por um lado, o incremento econômico ao Estado e o consequente aumento de arrecadação fiscal — Roraima foi dos poucos estados que registrou crescimento econômico durante os piores momentos da crise econômica brasileira; por outro, desvencilha-se do ônus político decorrente da implementação do programa de austeridade localmente implantado com a ascensão do governador Antônio Denarium (PSL), apoiador de primeira hora do bolsonarismo. O segundo grupo liga-se ao empresariado local, que ganha com o aumento simultâneo da demanda por seus produtos e da disponibilidade de força de trabalho (em um estado que tem escassez histórica de braços); conseguem ainda, em função da xenofobia estimulada, pressionar essa população imigrante a aceitar piores condições de trabalho e remuneração. É verdade que a capital do estado, Boa Vista, vem conhecendo fluxos populacionais que pressionam sobremaneira todos os serviços públicos. A mentira, porém, está no fato de a “culpa” por esta situação ser lançada exclusivamente sobre os venezuelanos, em vez de ser creditada à falta de investimentos em infraestruturas e serviços públicos de modo proporcional ao crescimento populacional, responsabilidade dos poderes públicos que, como já fizemos notar, estão ganhando com isso sem dar nenhuma contrapartida. Os corpos decapitados encontrados todas as semanas e noticiados pela TV não foram encomendados pela Venezuela, mas pelas facções criminosas que operam na região e que têm origem no sistema penitenciário brasileiro.
Um olhar sobre Boa Vista
Também existe algo além disso, que é a vocação “antipovo” da cidade. É local onde quase nunca são vistas aglomerações, e quando elas ocorrem em geral são reprimidas com veemência pela polícia local. Polícia que nunca se vê, a não ser quando há alguma aglomeração. Aliás, nunca se vê pessoas. Boa Vista, nos seus setores leste, norte e central, ainda conserva os traços gerais do planejamento que a caracteriza, por ter avenidas largas e transporte público quase inexistente. A escassez das linhas e da circulação de ônibus não impede, no entanto, a existência de ônibus biarticulados e pontos de parada fechados com ar-condicionado — o que complica a missão de encontrar seres humanos vivos pelas ruas. A exceção são os venezuelanos, que estão em praticamente todos os semáforos vendendo algo ou simplesmente tentando ganhar algumas moedinhas limpando os para-brisas dos carros. Os venezuelanos também são vistos em grupos em locais estratégicos de passagem, abrigados do sol escaldante nas sombras das árvores, com placas oferecendo seus serviços em troca de algo.
Os eventos culturais são raríssimos, os contato interpessoais são sempre mediados por lugares onde a ostentação e a exposição de si são as características mais evidentes. O som altíssimo, com músicas de gosto duvidoso, exime por completo o trabalho das pessoas de conversar sobre algo; estão ali só para verem e serem vistas. Como é comum em outros lugares, o poder público usualmente investe algo em eventos cultuais e cultura local, mas em Roraima isso aparentemente não ocorre. Existe um teatro municipal em Boa Vista onde, de vez em quando, acontece algo a preços verdadeiramente excludentes. Mas o problema não diz respeito apenas ao que poderia ser chamado de “alta cultura”. O estádio de futebol local ficou incríveis 13 anos fechado para reforma, um estádio que comporta pouco menos que 5 mil torcedores. O Maracanã neste período foi praticamente reconstruído duas vezes. Aproveitando a deixa, cabe ainda a título de comparação dizer que o estádio local, o Canarinho, foi reinaugurado recentemente, e os preços praticados foram os mesmos de estádios como o Maracanã ao receberem jogos de times da primeira divisão do futebol nacional. A diferença é que o futebol roraimense é semiprofissional, já que que nem todos os jogadores vivem exclusivamente dos salários que recebem dos clubes onde trabalham. Definitivamente, o futebol daqui não é algo popular.
Trabalho-casa-trabalho é o circuito corriqueiro, e praticamente tudo o que acontece aqui está circunscrito ao âmbito doméstico. A consequência mais imediata é o fortalecimento do corporativismo familiar, acrescido de um embrutecimento geral, sobretudo em relação a algum rudimento de vida pública e no tratamento das questões de interesse coletivo.
Pacaraima: o nome de uma crise
Pacaraima é o nome do município porta de entrada dos imigrantes venezuelanos, onde a tensão atinge os maiores níveis. Na região de fronteira é muito comum a circulação de pessoas: famílias têm composição binacional, muitos estudam e trabalham de um lado da fronteira e moram no outro, muitos pertencem a etnias que se dividem entre os dois lados da fronteira — a circulação é, enfim, constante. Foi lá onde, recentemente, aconteceu algo verdadeiramente bizarro, que mostra o nível de bestialização alcançado por boa parte da população.
Uma jovem indígena foi estuprada no caminho da escola por um outro jovem, venezuelano, o que desencadeou uma onda de protestos que chegou a fechar a fronteira com a Venezuela. Por conta da forte repressão que o movimento sofreu, a princípio os vereadores locais enviaram notas de apoio e posteriormente somaram-se fisicamente ao movimento, seguidos pelos vereadores da capital na mesma atitude — até o prefeito foi para a rua com megafone. Os revoltosos pediam o fim da imigração venezuelana, seguindo um tom xenófobo que contou até mesmo com cenas de venezuelanos sendo perseguidos e espancados pelas ruas. O sentimento antivenezuelanos atingiu o clímax, e os brasileiros revoltados colocavam-se como vítimas indefesas. A mídia local hesitou muito em noticiar, mas por fim acabou soltando a informação que a jovem indígena também era venezuelana. E isso é a cereja no bolo do absurdo: um venezuelano que violentou uma venezuelana levou os brasileiros a se revoltarem contra os venezuelanos, chegando a impedir a circulação e fazer ameaças físicas até mesmo contra venezuelanos residentes há bastante tempo na cidade, impedindo-os de chegar até suas casas. É a estupidez fascistizante em seu ápice, apoiada e referenciada por políticos de todas as esferas do poder público e de todas as matizes ideológicas.
Esta situação de tensão precipitou uma visita do vice-presidente Hamilton Mourão e do ministro da justiça Sérgio Moro a Roraima. Fizeram muitas reuniões, deram muitas entrevistas, foram e voltaram de Boa Vista a Pacaraima — e no caminho conseguiram a proeza de um dos carros da comitiva das autoridades colidir de frente com um caminhão de carga numa estrada que é praticamente vazia! Afora todo o fuzuê da visita, toda pompa e circunstância que envolve a vinda de apoiadores políticos, parece que alguém por aqui quis mostrar serviço e se sair bem com os chefes. Virou até motivo de piada — embora xenófoba — o fato de os venezuelanos simplesmente terem sumido da cidade durante a semana.
Não sei qual o objetivo, se era para mostrar que estava tudo bem com o sistema de abrigos e acolhimento da cidade, ou se para evitar algum constrangimento às autoridades, não sei. Mas desapareceram os aglomerados nos semáforos e nas sombras das árvores pedindo por trabalho ou vendendo alguma mercadoria. E o pior e mais angustiante é não saber exatamente como isso se deu. Se na madrugada, de assalto, com violência, como costuma ser a atuação policial contra populações de rua por todo o país. Não há nenhum registro, ninguém sabe, ninguém viu. Talvez a única testemunha seja aquela camisa xadrez que insiste em permanecer próxima ao local onde ficava uma aglomeração de venezuelanos que pedia emprego.
É sintomático que este artigo tenha um número tão reduzido de visualizações. Mostra que a esquerda — aquilo a que, por uma perversão da terminologia, continua a chamar-se «esquerda» — está ainda pior do que imaginávamos.