Por Rafael Ouriques
“Vamos às atividades do dia:
Lavar os copos, contar os corpos e sorrir
A essa morna rebeldia.“
Lion Man, Criolo
Quarentena nonsense
Não bastasse o duro isolamento social adotado em parte do globo, os brasileiros ainda vivenciam diariamente a política do absurdo, presos a um filme nonsense interminável. Mesmo no país das estatísticas de guerra, a necessidade de estar dentro de casa amplia a percepção de que partilhamos ações rotineiras com a barbárie. Como na letra de Lion Man, do rapper Criolo, o roteiro de acordar, “lavar os copos, contar os corpos e sorrir” pode anestesiar a muitos. Ao deixar o governo e romper com Bolsonaro, Moro inicia mais um capítulo na sofrível quarentena brasileira.
Confronto previsível
Não é novidade constatar que a aliança entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro tinha prazo de validade, e o que existia mesmo era uma relação simbiótica onde um se beneficiava do apoio do outro. Ambos procuraram a aproximação com o interesse de subir alguns degraus no jogo do poder, nutrindo-se de suas popularidades. Análises à direita e à esquerda apontavam que tal associação era momentânea e, especialmente, oportunista. Alguns dos prognósticos que afiançavam uma ruptura no futuro consideravam duas questões centrais: a problemática de ter o ex-juiz da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba um evidente projeto político próprio, além de uma imagem à altura — ou até maior — que a do vaidoso presidente eleito.
Olhando para o horizonte, Moro aceitou a “missão” na expectativa de “mostrar trabalho” assumindo um cargo político de peso, mantendo com isso uma constante e necessária exposição pública. Ele tinha a fama, mas faltava-lhe no currículo a mostra de que saberia gerir o Estado, visto que a inexperiência seria certamente apontada em eventuais debates televisivos. É provável que sempre estivesse em seu cálculo o plano de largar o governo em algum momento, embora não soubesse exatamente quando nem como. No fim, sua atuação como ministro foi pífia, ainda que isso vire detalhe no que depender de certo jornalismo, acostumado a encobrir suas falhas e o endeusar.
Por sua vez, Bolsonaro lucrava ainda mais. Com o ingresso do “Batman” da Operação Lava Jato nas suas fileiras, o presidente unia seus apoiadores mais fiéis — algo entre 10% e 15% da população —, na sua maioria protofascistas, com os também antipetistas do lavajatismo, admiradores de Sérgio Moro. Formava-se, então, um grupo expressivo e consistente de 25% a 30% dos brasileiros.
Nessa relação, a parte mais dependente era Bolsonaro. Afundado em promiscuidades político-morais, sempre precisou da imagem retilínea e anticorrupção que Moro agregava. Além do que, a base bolsonarista era — e é — relativamente pequena e fanática. Ele não a perde de forma alguma, embora tenha imensa dificuldade em fazê-la crescer. Já seu ex-ministro, que sempre alimentou uma aura de moderado e imparcial, consegue ter uma base maior e mais heterogênea — embora menos militante —, com capacidade superior para conquistar novos simpatizantes nos diferentes espectros políticos.
Fogo cruzado
Se antes havia a perigosa chance de uma chapa Bolsonaro-Moro para 2022, o desfecho natural parece ser a inevitável destruição de um pelo outro. Ou Sérgio Moro destrói o presidente, ou Bolsonaro destruirá seu ex-subordinado. É impossível a coexistência política dos dois, porque ambos disputam uma parcela semelhante do eleitorado.
Entretanto, há um impasse para ambos nesse conflito. Para ferir Bolsonaro mortalmente, Moro terá como grande desafio descolar sua atuação do governo, dada a difícil justificativa para a omissão de 15 meses na convivência com ilegalidades expostas em eventuais dossiês. Corre-se o risco de ser acusado de prevaricação e corrupção passiva, o que seria uma grande ironia no destino do juiz que ficou famoso justamente por esse tipo de condenação no caso Lula. Ainda que costume deixar muitas arestas, Sérgio Moro não é tolo, devendo filtrar muito bem o que mostrará em denúncias.
Já o “Messias” precisará calibrar ainda mais seus ataques, justamente pela quantidade de provas que suspeitamos Moro ter em mãos. É provável até que seu ex-ministro da Justiça tenha sido testemunha ocular de crimes praticados pelo presidente e sua família.
Outro motivo para Bolsonaro ser cauteloso em seus ataques é não causar mais desgaste com os lavajatistas, público que ele não pode ter o luxo de perder em definitivo. Isto pôde ser visto no pronunciamento oficial do presidente em resposta às acusações de Sérgio Moro, onde esperávamos algo mais incisivo. O que vimos, contrariando sua usual personalidade irritadiça, foi um presidente acuado e temeroso a cada palavra dita, tergiversando e mantendo pausas demasiadamente longas. Apelou, sobretudo, às emoções e ao típico ressentimento bolsonarista, que se coloca como vítima e inferior aos que têm “diploma”. Sem podermos ir às ruas, no meio desse conflito e contando os mortos da pandemia, esperemos o próximo fogo cruzado em nossos búnqueres de quarentena.
As ilustrações são provenientes das bandas desenhadas de Lucky Luke, o cow-boy que disparava mais depressa do que a sua própria sombra, criadas por Morris (1923-2002).
ERA UM MUNDO
No anedotário das intrigas palacianas, o fait-diversionismo é tão mais alucinógeno quanto mais chafurda na pretensão de analisar a rinha de galos cegos que se tornou a política neste país: mera disputa de (a)versões conspiranoicas.
E dizer que houve um tempo em que ninguém ousaria chamar isso de crítica…