Por Ricardo Mezavila

O caso do menino Miguel, de cinco anos, filho da trabalhadora doméstica Mirtes Renata, negligenciado pela patroa de sua mãe, que o deixou sozinho dentro do elevador de seu prédio de luxo no Recife, causando sua queda do nono andar, sintetiza o racismo brasileiro.

A sociedade brasileira é estruturada com base na discriminação e na falsa democracia racial. Comumente ouvimos de pessoas e grupos, com alcance e influência, proselitismos sustentando que aos negros sempre cabem os papéis menores nas narrativas televisivas, como se isso fosse o marco do racismo no Brasil.

Argumentam que as personagens negras são empregadas domésticas, motoristas, criminosos, moradores das periferias; nunca são o patrão, a médica, o engenheiro, a governadora, o banqueiro, a estilista, o latifundiário, a bióloga, âncoras de telejornais. Nas propagandas veiculadas nas TVs, consideradas espelhos para os telespectadores, nos outdoors e nas embalagens dos produtos, a presença do negro não é notada. Não aparecem vendendo creme dental, sabonete ou margarina.

Numa visão simplista, bastaria colocar uma próspera família negra como protagonista de novela que isso colaboraria para a constituição de uma identidade representativa; um desenho animado onde princesas e príncipes fossem negros e os brancos escravos, para mudar a forma como são vistos pela sociedade. Cabe reflexão: E se isso fosse estrutural?

É claro que a TV, o principal veículo de comunicação de massa do Brasil, contribui negativamente na construção identitária de grupos sociais, políticos, religiosos e étnicos. A massificação, por si só, é prejudicial para a compreensão e o comportamento do indivíduo dentro do “espectro social”, já que existe um conceito que o identifica, carimba e rotula.

O contraditório é uma ferramenta de reflexão. Sendo assim, não acredito que uma criança negra, filha de uma empregada doméstica, será respeitada pela patroa branca de sua mãe só porque nos desenhos infantis a que seus filhos assistem os ursinhos, os coelhinhos e os pôneis são negros. Como não acredito em direitos sem luta, luta sem causa, causa sem compromisso, compromisso sem participação, participação sem respeito e respeito sem retorno.

Nossas cidades e campos contam histórias de gente real e com antecedentes, que se encontram além das teses da sociologia, pulsam muito mais do que um texto pretensioso. Gente que nasce, vive e morre com o peso do preconceito e presa à tornozeleira do estereótipo.

São homens e mulheres historicamente abandonados pelas pautas das políticas públicas, não representados devidamente nos livros escolares, fontes de exclusão, e que vez ou outra surgem como personalidades maquiadas pela eugenia, ou como mártires pontuais, vítimas de violência racial.

As personagens de ficção espelham o que somos, denunciam o que pensamos, captam a essência do imaginário até o conjunto da obra, mas não são raízes, são fábulas que dão voz a sapos, grilos e percevejos, adormecendo donzelas despertadas por príncipes.

Sinto o gosto da cerveja velha do mundo real das páginas acadêmicas e dos discursos sensacionalistas, quando a fantasia condena o silêncio diante da autenticidade da presença concreta e física, com currículo, de personagens meramente ilustrativas de suas teorias.

Penso que tem de haver mais ação quando tratamos do racismo estrutural e menos flexibilização com os meios-termos. Não prego derrubar estátuas de heróis homens, brancos e ricos, porque são símbolos, mas me refiro, isento de questões políticas, só por inquietação social, ao fato de que parcela de quem detém a narrativa ignora, ou minimiza o fato contemporâneo e representativo de uma faxineira negra, nascida dos Movimentos Populares, ter chegado ao Senado da República.

As fotografias que ilustram este artigo são de Igor Stevanovic (1975-      ).

9 COMENTÁRIOS

  1. Pensando aqui: Se a pessoa de cor negra não é representada nas telenovelas ela não existe? Acho que dão muita importância a isso, claro que no Brasil a cultura televisiva é mais divulgada e tem mais importância do que a literatura e as artes em geral, a questão da importância histórica da pessoa negra tem que encontrar voz nos palanques oficiais, na vida real, no cotidiano , aí os quadros mudam de paredes.

  2. retirando-se a parte romântica, esse texto levanta uma questão importante – pelo menos de forma inversa… Gostaria de saber como o autor entende/concebe a superação do rascismo? será pela via da REPRESENTATIVIDADE?

  3. O autor disse claramente que é pela representatividade do negro em cargos políticos e de comando… Apoio o texto, é por aí mesmo que vamos fazer justiça social….

  4. É pela representatividade no mundo real que podemos fazer uma reparação para que a identidade de todos os povos possam ser reconhecidas. É romântico, mas também é revolucionário.

  5. Não consigo compreender o que existe de revolucionário em ter representatividade na ocupação de espaço de poder. Essa representatividade inclusive usa os trabalhadores negros para legitimar a opressão sobre eles.

  6. A sociedade brasileira está contaminada por quatrocentos anos de escravidão negra. Para supremacistas, não há nada de revolucionário na ocupação de espaço de poder pelo negro, porque o espaço que pertence a ele, na cabeça do escravocrata, é a senzala. a cozinha. O autor desse texto foi claro quanto à narrativa sobre a não-democracia racial. Só acho que a TV mostra o que é a realidade, não tem negro na Casa Grande porque não tem negro na Casa Grande. Simples!

  7. Há vários anos, comecei a apresentar os identitarismos como componentes de um fascismo pós-fascista, interessados apenas em mobilizar massas de uma identidade, ou suposta identidade, para que alguns poucos se promovessem a elite. Nessa época era ainda necessário proceder a demonstrações. Agora tudo ficou mais simples, porque os próprios identitários reconhecem candidamente que não querem senão alojar-se entre a elite.

  8. O comentário do Ricardo Mezavlla é a melhor e síntese que encontrei do que Asad Haider critica no seu livro Armadilha da Identidade. A ideia de uma identidade lesada e o que isso implica é o próprio cerne do livro.

  9. Há quase dez anos atrás, João Bernardo escrevia “Socialismo da abundância, socialismo da miséria” (https://passapalavra.info/2011/03/37649/).

    “O socialismo surgiu da constatação de que, perante as colossais potencialidades produtivas contidas nas novas manufacturas e perante a remodelação operada nas tecnologias rurais, que multiplicara a produtividade do solo, a abundância se tornara possível. Não se tratava só de matar a fome e obter um certo conforto na vida, mas também de atingir um grau de libertação do trabalho que permitisse aos humildes apreciar e praticar uma cultura que até então fora privilégio das elites. Tecnicamente possível, a abundância dependia de uma condição social única, a eliminação do patronato ganancioso. A iminência de um paraíso na terra deixou caduca a esperança do paraíso nos Céus.”

    Metamorfoseando o texto de João Bernardo, os ditos socialistas de 2011, muitos deles hoje identitários, poderíamos ter um texto com um título, talvez, de “Capitalismo da abundância, capitalismo da miséria”. Muito embora, logo nas primeiras linhas do primeiro parágrafo deste texto, afirma-se: “O caso do menino Miguel, de cinco anos, filho da trabalhadora doméstica Mirtes Renata, negligenciado pela patroa de sua mãe (…)”. Portanto, deveria-se evidenciar, o fundamento classista dos conflitos sociais, já que o mesmo se apresenta cristalino em tal afirmação. Mas o caminho, comumente adotado pelos identitários e multiculturalista, é outro. Nada de libertação do trabalho, muito de eliminação do patronato…

    Pior ainda é ver que, se uma parcela dos identitários e multiculturalistas quer se alojar nas elites, uma outra parcela, talvez muito maior que aquela, quer se alojar, de livre e espontânea vontade, na miséria, dentre elas, a ecológica… Tem muito rei que pode perder a coroa mas não perde a majestade, porque quando um rei é rei, é sempre rei…

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