Por Frederico Lyra*
Este texto é uma espécie de síntese expandida de algumas coisas que Paulo Arantes e Marildo Menegat vem desenvolvendo há pelo menos dois anos em torno do novo papel dos militares brasileiros. Os vários textos e vídeos assistidos estão nas notas abaixo. Não é improvável que algumas das formulações que usei sejam transcrições quase que literais de falas e textos, peço desculpas aos dois pensadores, mas integrei-as ao pensamento. No meio do confinamento me vi escrevendo uma primeira versão desse texto para explicar as minhas posições para um coletivo do qual faço parte, essa é uma versão atualizada. Dedico-o a estes dois grandes pensadores do nosso tempo.
O que aconteceu nessas últimas semanas que assusta não foi o fato dos militares tomarem o poder e passarem a governar de forma mais direta, isso já estava previsto para mais cedo ou mais tarde. A tendência já encaminhava para essa situação. O problema maior é que isso aconteceu antes da hora. Devido à crise aguda desencadeada pelo coronavírus (que traz com ela a próxima etapa da crise do capital) essa manobra teve que ser antecipada e de maneira totalmente improvisada e contingente. O que assusta mais é isso. Que os militares eram o complemento necessário ao bolsonarismo, e que Bolsonaro era o complemento necessário à volta triunfal e democrática dos militares já é bola cantada faz tempo (Marildo Menegat publicou um primeiro texto sobre que trata disto já no dia 07 outubro 2018 [1] e poucos dias depois Paulo Arantes deu uma detalhada palestra sobre o que estava tomando forma [2]). A estratégia é de uma manobra em pinça [3], no jargão deles, isto é, uma manobra onde a aparência de contradição é necessária, mas esta é simulada ou conjuntural, e não o fundamento da situação. Por outro lado, não parece ter havido em momento algum um Estado Maior dirigível, nem mesmo um projeto de longo prazo; o mais provável é que tenham sido, desde o início, manobras tomadas na base de decisões de curto prazo – e não poderia ser de outra maneira, dada a situação de crise generalizada do capitalismo global. Com isso queremos dizer que são todos equivalentes ou que é tudo a mesma coisa? Não.
A eleição de 2018 foi tutelada pelos militares e se o resultado não fosse o que eles queriam, poderia ter tido um golpe; eles ameaçaram isso várias vezes [4]. A hipótese de Paulo Arantes para o famoso twitt de Villas-Boas antes da prisão de Lula é que ele expunha o fato de que a partir de agora havia um novo limite intransponível. E aquele não era apenas um recado anti-povo/anti-democrático (isso é a norma deles), mas também para controle interno das tropas. Diziam que ele era um general democrático, seja lá o que isso for. Por outro lado, é difícil entender a confiança de parcela considerável da esquerda no STF dado o seu funcionamento obscuro e anormal. As espetaculares sessões do supremo parecem cada vez mais com ritos formais sem conteúdo determinante. O parlamento é o que é, e a classe política tradicional praticamente se suicidou no pós-golpe 2016, nas sucessivas tentativas de parasitar o governo do Vampiro. Por fim, deve-se lembrar que a constituição já foi alterada de tal maneira que ela significa cada vez menos coisas. Alguns juristas consagrados falam que ela já vem funcionando há algum tempo de maneira excepcionalizada em relação a si própria, como se ela fosse dual [5]. Por fim, o Exército está desembarcando nas diversas instâncias do Estado desde o governo Temer. Este teve muito do seu governo monitorado e organizado pelo General Etchegoyen. Este último, descendente de uma tradicional dinastia militar, reorganizou sobretudo o SNI/GSI. Como o impeachment desestruturou todas as instituições – pois escolheu-se não rearrumar a casa como imaginado – e veio emendado na maior crise econômica da história do Brasil, só sobraram os Militares como última classe dirigente organizada possível de tocar o barco. Embora nunca se possa descartar a necessidade de uma decisão suprema, Golpe militar à moda antiga hoje em dia pega mal (quando ele é explicito de mais). Eles tinham que achar uma outra maneira de assumir o comando para em seguida poder controlar lenta e gradualmente o fechamento do regime. Tudo tem de ser legal, mesmo que tenha cara de ilegal.
Não dá para esquecer que foi o Governo Lula que ajudou a reorganizar o Exército através da MINUSTATH. Foi lá que estes últimos descobriram que podiam encampar uma nova missão de paz. Foi no Haiti que se formaram os novos generais, o novo corpo dirigente militar, e onde eles ganharam experiência internacional, entendendo na prática qual a nova dimensão do conflito armado contemporâneo. Parece ter ficado evidente qual a função das Forças Armadas em uma situação onde o conjunto dos Estados se encontra em decomposição. Estas missões tomam sobretudo a forma de ocupações humanitárias de Pacificação social e de contrainsurgência. No Haiti o exército se reorganiza através da prática de regulação e controle de populações. Lá o exército mostrou como administrar escombros militarmente. Eles confirmaram o que já haviam visto e aprendido a lidar nas várias intervenções de garantia a lei e a ordem nos escombros do Rio de Janeiro [6]; nas quais iriam se engajar ainda mais nos governos Lula/Dilma/Temer. O outro ponto é que foi no Haiti que o Exército mostrou ao resto do mundo o know how desse conhecimento administrativo e da sua capacidade de gestão. Uma experiência de função de polícia pacificadora; função por excelência de parte crescente dos exércitos do mundo, particularmente o francês, bravo exportador de Paz na África [7]. Como é Militar, tem sempre bala, mas não é apenas bala, tem também programas sociais.
As situações onde a anomia social se revelou incontrolável, como nas diversas greves de PM e na greve dos caminhoneiros, evidenciou para o Exército que este não tem mais capacidade logística nem efetivos para controlar de fato o país. Apenas depois de ter feito esse diagnóstico que o exército se une à extrema-direita. Esta última precisou do aval e da aliança com o Exército para chegar ao poder via eleição. De maneira que as distensões entre eles são, no fundo, apenas aparentes. Ao contrário, parece haver uma simbiose entre extrema-direita e militares. Unha e carne, um precisa do outro. Uma das expressões máximas da extrema-direita brasileira é uma parte considerável das Polícias Militares espalhadas pelo país. Ao mesmo tempo, é uma parcela destas que organiza, entre outras coisas, boa parte das milícias no RJ, um tipo de estrutura que se espalha em velocidade crescente pelo Brasil. No Rio essa articulação dá sinais de já estar sendo feita (como na já esquecida invasão da Rocinha em 2017 [8]). A contínua intervenção militar parece ter ajudado a reorganizar uma parte do espaço de ocupação das milícias por lá (e não há contradição nisso, basta pensar na Colômbia que funciona assim há décadas e lá, ainda por cima, tem um monte de base americana). Isto é, os polos aparentemente contraditórios tendem a fusionar numa simbiose demoníaca.
O outro lado é a maneira de operar a coisa. A loucura saturada do Capitão mata dois coelhos ao mesmo tempo. Por um lado não deixa que a “oposição” consiga pautar o que quer que seja (ela é puramente reativa, não tem nada para propor), além de manter as bases orgânicas da extrema-direita em estado de alerta (o que não é pouca gente). E, por outro lado, o desgoverno aparente faz com que os militares apareçam como civilizados e com que parte considerável da (ex)sociedade civil passe a desejá-los como se fossem uma alternativa (e não um passo para o lado). Os Militares são a Ordem alternativa à Ordem do presidente louco. Assim, se não dá para descartar totalmente a ideia de um golpe como uma alternativa final, não deve ter golpe aberto, pois eles já tutelam Bolsonaro, ao mesmo tempo que precisam dele. Eles devem esticar a corda da ingovernabilidade, e com isso alimentar o seu poder com a acentuação do caos. Eles precisam que haja um clima contínuo de conflito para que não se pare para pensar e que só se possa reagir às diretrizes difusas. Existe estratégia nas loucuras do Bolsonaro. Isso, entre outras coisas, permite acomodar a divisão interna aos militares entre alto escalão (governo tecnocrático de paz social), com o baixo escalão que tende ao “bolsonarismo-raiz” e ao fascismo de novo tipo [9] e que tende assim a entrar em simbiose com o lado sujo das polícias militares (milícias). É questão de tempo, mas a decomposição social em marcha parece garantir espaço para todos eles. O mais assombroso, no entanto, é que eles voltaram à cena ocupando os lugares de luxo de um governo democraticamente eleito (nunca houve tanto militar exercendo funções administrativas) e sendo reconhecido novamente como os salvadores da pátria. O que há, por enquanto, é um governo eleito ocupado militarmente. Se o sistema não deixa eles governarem, eles acabam com o sistema ou o ajustam aos seus próprios interesses. Isso casa perfeitamente com Bolsonaro pelo fato deste ver a política como uma luta entre amigo e inimigo, e não mais como gestão, direitos humanos ou programa social-democrático (que foi no que se transformou a esquerda). A ideia de política como Guerra Social voltou, e esta também é a política dos Militares. Bolsonaro não largaria o osso facilmente, não aceitaria “democraticamente” um impeachment – ele não é Collor ou Dilma.
A política do governo Lula era interessante para os militares. Ela era de certa forma a continuação do projeto do Brasil Potência que tem sua origem no Governo Geisel. Isto é, o Governo Lula era também um projeto de hegemonia regional de segundo escalão calcado na projeção de poder econômico internacional (cujo símbolo maior eram os global players). Isso precisava, entre outras coisas, de uma contrapartida militar. Não por acaso um dos elementos da era anterior era o re-equipamento das diversas forças armadas – ele passava por parcerias com a França e Suécia, de onde vinham as parcerias com Sarkozy [10], por exemplo. No entanto, observando as movimentações do tabuleiro internacional, os militares viram que depois do baque financeiro de 2008 a geopolítica tinha mudado. Trump, na sequência, mudou a doutrina internacional com a volta de um regime de competição e concorrência generalizada entre estados [11]. Um novo tipo de guerra generalizada, que já vinha de trás e que Robert Kurz chamou de Guerra de Ordenamento Mundial [12], se instalou e veio para ficar. Nesta situação teratológica, como tem insistido Wolfgang Streeck [13], as relações vão estar sempre no limite, como no pré-1914 – mas desta vez sem os impérios da época e num capitalismo se desmanchando e não ascendendo como e o caso há 100 anos. Mesmo os EUA são um Império de tipo diferente, financeiro e não territorial como ainda eram o Reino Unido e a França na época. Além disso, dado o desenvolvimento tecnológico para além da imaginação, qualquer conflito agudo se transforma necessariamente no conflito final [14]. É essa doutrina de concorrência geral que está na origem da rapinagem que domina as relações globais nesta crise atual, onde, por exemplo, assistimos Estados roubando os materiais de logística médica destinados a outros em nome da Guerra ao coronavírus. Como diz o cada vez mais atual ditado popular: farinha pouca meu pirão primeiro. Os Militares chegaram à conclusão que o progressismo brasileiro acabou, não tem mais chance, como diz Paulo Arantes. No fundo, esta é uma análise de realismo extremo, pois a fantasia maior era achar que era possível dar um passo à mais na Era Geisel. Sob essa nova configuração mundial ou você escolhe um lado ou automaticamente vira alvo de ameaças e sanções exteriores.
O que os Militares descobriram é que somos definitivamente um país de agronegócio, petróleo e uma plataforma de valorização financeira, isto é, a industrialização acabou. Qualquer esforço de recuperação será em vão devido ao atraso acumulado. O Brasil ficou para trás desde a 3a revolução industrial e esse atraso só a China conseguiu recuperar. Não se pode esquecer que foram os Militares que tentaram industrializar o país, mas esta colapsou logo na saída da Ditadura. Sem indústria de ponta mal dá para desempenhar um papel hegemônico regional. A organização Militar no capitalismo é, por definição, industrial e o que resta da indústria brasileira não é suficiente para uma projeção maior de força militar. O alinhamento automático com os EUA passa por isso; mesmo que ele seja totalmente assimétrico e sem garantia de reciprocidade [15]. As Forças Armadas precisaram obrigatoriamente escolher um campo. Com a aceleração rumo ao colapso social do Brasil eles preferiram se associar diretamente aos EUA, pois é a chance de acessar a tecnologia de segunda categoria que eles precisam no tempo imediato [16]. Essa nova doutrina da dependência (Marco Aurélio Cabral Pinto) implica um cálculo de que o país não possui meios tecnológicos para enfrentar de maneira autônoma as ameaças de ordem externa e interna. É uma tentativa de se equipar minimamente menos para garantir uma certa hegemonia regional, mas sobretudo para garantir uma mínima ordem e lei interna, à maneira deles. Eles assim abrem mão de uma certa independência para poder exercer plenamente o policiamento interno, que é o que se tornou de fato urgente. Isso passa por um rearmamento e capacitação logística para gerir sobretudo os poucos locais no país ainda aproveitáveis para a valorização do capital. Para isso eles precisam também diminuir o peso do Estado, só sobrando o essencial. O que não é essencial e está fora de qualquer possibilidade de valorização do capital, entrega-se às baratas, isto é, deixa-se nas mãos das milícias. Ou seja, não se funda mais em um nacionalismo, mas em uma manutenção pura da ordem policial. Tem que pôr ordem na casa para a mercadoria circular e ser produzida livremente. Pela primeira vez uma corporação Militar – que por definição é nacionalista e de direita – não é mais nacionalista. Agora eles são apenas de direita; não necessariamente de extrema-direita, mas como se aliaram a estes, a tendência é virarem irmãos-de-sangue. A soberania muda de sentido passa a ser acima de tudo a defesa direta do território contra os inimigos internos.
As Forças Armadas chegaram à conclusão que nos encontramos num fim de linha e que chegamos no limite social absoluto. Além disso, a classe dominante já delegou a tarefa de organização do capital para o pior, ela já deu carta branca para uma outra governança. É como se a classe dominante tivesse desistido do país que ela domina. A incrível ascensão espetacular do Governo-Militar-Democrático-Autoritário que estamos assistindo é a continuação da prática de governo militar de populações excedentes que vem se instalando no Brasil há algumas décadas. Uma gestão da barbárie (Marildo Menegat) na qual se juntam polícias, milícias, igrejas pentecostais, editais culturais, ong’s e todos os programas sociais de contenção. O peso crescente da Fé é a circulação do dinheiro e a organização material, travestida de espírito oco, da vida daqueles que vivem nas ruínas acumuladas. Eles são o braço espiritual da gestão da barbárie (e agora também a base mais orgânica e fiel da extrema-direita). Um dos problemas do nosso tempo é o de como separar as Ovelhas da dominação dos Pastores.
Como o capitalismo entrou em colapso não há mais valor suficiente sendo criado, o capitalismo é para poucos. Ao mesmo tempo, o emprego continua necessário, sendo que agora funciona como um dispositivo de controle social. O trabalho ganha uma centralidade negativa (Paulo Arantes) não por necessidade de produção do valor, mas como puro controle social. Desde então o controle social de um mundo em acelerada dissolução se faz assim. Isso se torna especialmente visível num país onde a mediação social se dá cada vez mais na violência direta. A estrutura social do antigo mundo do trabalho, hoje flexível e uberizado, é de concorrência máxima mimética a uma situação difusa de guerra de todos contra todos [17]. O bolsonarismo é sinal da generalização da violência terrorista diária, a face Militar que vem com ele é a organização dessa violência, sem que o terror seja, no entanto, descartado. O lado da Milícia aparece assim como uma aliança necessária com o lado Militar na tentativa de segurar o que está fora do círculo possível de ser valorizado pelo valor. Como, mais ou menos, metade da população brasileira é excedente, isto é, inútil do ponto de vista do capital, a tendência é a generalização miliciana, tutelada pelo exército. A política anti-sanitarista e criminosa concernindo a pandemia do coronavírus talvez possa ser entendida como parte da nova configuração da gestão destas populações excedentes. Não se deve esquecer que neoliberalismo é sobretudo um dispositivo de governo que instaura mecanismos de seleção e eliminação em praticamente todas as instâncias da vida. Mesmo que isso custe muitas vidas, não seria diferente em relação à pandemia.
Nesta nova configuração de crise acentuada, os Militares estão se preparando para uma gestão armada total da ordem e vida social brasileira no meio de escombros. Como tudo isso está sendo pensado de maneira militar estamos assistindo a um rápido encaminhamento para um governo de contra-insurgência sem que haja insurgência à vista – pois não existe mais subversão à moda antiga, foram todos pacificados, o que pode haver está além das categorias antigas. E contra-insurgência significa achar e focar nos alvos: ora com bala, ora com programas sociais. Sempre há um público alvo a disposição para um programa ou para um caixão – como o dinheiro é cada vez mais raro a tendência maior é a vala comum. Nessa modalidade de gestão armada o fundamental é a preparação para o conflito, que é contínua, e não o conflito em si. E a preparação contínua é contra o inimigo interno. Isso rima com guerra, uma ideia modificada desta. Por um lado, ela não poderia mais ser guerra campal, mas, ao mesmo tempo, é difícil falar de guerra civil no Brasil, pois não parece haver dois campos constituídos. É uma Guerra que não é mais Civil, é uma Guerra contra os civis (Paul Virilio).
O General Heleno disse mais ou menos o seguinte: “se esse troço (Brasil, intervenção) der errado, a única coisa que vou ter visto foi Pelé jogar”. Ele sabe que eles são a Última Cartada, essa seria a missão histórica (o Fim da História?) da Última Classe Dirigente do país. Eles realmente acreditam poder fazer isso, confiam nas suas formações, nas suas doutrinas e teorias. No entanto, o que se passa é bem diferente de 1964, que era uma reorganização provisória do capitalismo nacional onde ainda havia um horizonte à frente. Agora é a reorganização de um colapso de fim de linha. Eles se vêem como a última possibilidade para um país que está em vias aceleradas de se tornar inviável. O que pode acontecer no máximo é retirar Bolsonaro, e assim sacrificar a face caótica e macabra protofascista – mas um governo Mourão, militar puro-sangue e frotista, não vai dar em civilização, pois se um era fatality, o outro é brutality, como na época do Mortal Kombat. Se hoje a política institucional é débil, com a mediação única dos militares não vai sobrar mais nada. No imediato pós-1964 achou-se que eleições seriam logo reorganizadas, mas aquilo durou 20 anos. Na situação atual, mesmo que os militares apresentem projetos para o longo prazo [18], o que interessa mais é o recado dado de que eles não vão mais sair do governo (Quem tiraria?). Como a situação não deve melhorar, pois, a tendência, ao contrário, é piorar muito, os militares devem ficar no governo até o fim dos tempos. Salvo se ocorrer uma ruptura muito radical que deve ser imaginada.
É por isso que as análises não podem ser puramente formais, nem meramente empíricas, ou se basearem em configurações históricas que já ficaram para trás. O acento deve estar no que aparece como contradição entre o que acontece e as tendências extremas que estão postas na mesa. Muitas vezes o que no imediato, parece não ter sentido, revela, no entanto, tendências que estão em marcha desde alguns anos. O pressuposto é entender que a regressão social é geral e que isso se deve ao fato do capitalismo estar a pleno vapor em uma dinâmica auto-destrutiva (pulsão de morte). Como o sistema mundo (Immanuel Wallenstein) se estrutura como centro e periferia, o colapso é simultâneo, mas necessariamente assimétrico. Isto posto, não podemos esquecer que o Estado moderno era, na origem, um bando armado que foi pouco a pouco estruturado e legalizado para organizar a produção e circulação do capital [19]. Os teóricos apologéticos do Estado, Hobbes em primeiro lugar, não deixaram de insistir no fato de que o fundamento destes é o monopólio da violência. O soberano decide da exceção por deter o poder último de violência. Em Estados como o brasileiro esse monopólio há muito foi quebrado. Na era da decomposição do sistema capitalista, os Estados se decompõem junto e as Forças Armadas, incapazes de deter o monopólio da violência, voltam às suas funções originais – e isso no mundo todo, embora sob diferentes temporalidades e configurações territoriais, pois o capital é global.
Notas
[*] Doutorando em filosofia na Universidade de Lille.
[1] Cf. “Volver”. Algumas das outras referências do Marildo Menegat usadas nesse artigo: “Noites Brancas – O Exécrito como regulador imediato da gestão da barbárie”, “O fim da Gestão da Barbárie”, “Convergência do Terror”, além do livro A Crítica do capitalismo em tempos de catástrofe. O giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto, Rio de Janeiro, Consequência, 2019. Todos os acessos de todos os links deste presente artigo datam do dia 1º de junho de 2020.
[2] Cf. “De 1964 a 2018: a que ponto chegamos?”. Algumas das demais referências do Paulo Arantes usadas nesse artigo: “Ciclo de debates 1 de Abril de 1964 e 1 de Abril de 2019 – Paulo Arantes”, “Entrevista concedida pelo professor Paulo Arantes aos jornalistas Emílio Azevedo e Flávia Regina, na Rádio Tambor”, “Paulo Arantes: para militares brasileiros, Venezuela é uma Síria em potencial”, “Abriu-se a porteira da absoluta ingovernabilidade no Brasil diz Paulo Arantes”, “L’autre sens. Une Théorie critique à la périphérie du capitalisme. Paulo Arantes en entretien avec Frederico Lyra”, além dos livros O Novo Tempo do Mundo (São Paulo, Boitempo, 2014) e Extinção (São Paulo, Boitempo, 2007). Sempre lembrando que as duas primeiras partes deste último são dedicados a pensar a nova configuração da guerra.
[3] Esse termo tem sido muito empregado também por Piero Leirner. As análises contínuas publicadas pelo Leirner no facebook e os debates que ele participa são bastante importantes e instigantes, embora o ponto de vista da guerra hibrida, que é o dele, seja, no mínimo bastante problemático. Estas duas entrevistas são particularmente interessantes: “Piero Leirner: militares acabarão por criar ‘anomia’ da qual tanto falam”. E “Caminho de Bolsonaro ao poder seguiu ‘lógica da guerra’, diz antropólogo”. Leirner também disponibilizou recentemente um “Mini-Manual da Hierarquia Militar: uma perspectiva antropológica” que logo se tornou uma leitura fundamental para compreensão das Forças Armadas. Outras contribuições que gostaríamos de destacar são as de Demian Melo, “A tutela militar ao governo Bolsonaro”, e Mauro Iasi, “O 31 de março de Jair Bolsonaro”. Não custa nada lembrar que embora considere estas diversas contribuições, este ensaio parte de uma perspectiva bastante distinta de todos eles.
[4] Cf. Marco Aurélio Cabral Pinto “A Doutrina da dependência militar”. Recentemente esta ideia foi atualizada por Pedro Marin no artigo “A marcha de Bolsonaro e o altar dos tutelados”.
[5] Cf. Enzo Bello, Gilberto Bercovici, Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, “O Fim das Ilusões Constitucionais de 1988? / The end of 1988 constitutional illusions?”. Para um resumo deste mesmo artigo feito pelos mesmos autores, vale a pena ler: “Balanço crítico dos 30 anos da Constituição de 1988: o fim das ilusões? Está aberta a temporada de celebração. Mas não há tantos motivos para festejos”.
[6] Cf. Felipe Brito & Pedro Rocha de Oliveira, Até o Último Homem, São Paulo, Boitempo, 2013.
[7] Para um mapa histórico das intervenções francesas na África, ver: “Interventions militaires françaises en Afrique“. Para uma perspectiva de dentro do exército francês, ver: “Défense: que fait l’armée française en Afrique?”. Para uma pespectiva mais utilitarista, ver: “Militaires français en Afrique: un bon investissement? Analyse. La question mérite d’être posée quand on sait que les zones à fort investissement ne correspondent pas forcément à celles des interventions”.
[8] Cf. “Cerco militar sai da Rocinha e expõe mais rixa política que sucesso tático. Espetacularização, troca de farpas, fuga de criminosos e incertezas marcaram as duas semanas de operções na maior favela do Rio”.
[9] Pierre Dardot e Christian Laval falam, por exemplo, de um Neoliberalismo Autoritário. Paulo Arantes tem dito que se trata de um agravamento ainda maior da Razão Neoliberal e não de fascismo. A justificativa de Arantes é que o fascismo pressupunha um movimento ascendente, ele era um regime de modernização e aceleração capitalista. Na situação atual, onde o movimento sistémico aponta para a direção inversa, pois há uma aceleração da desintegração, não caberia falar de fascismo. Ao mesmo tempo, insistir no uso do termo neoliberalismo talvez não leve plenamente em conta a singularidade deste momento onde a Extrema Direita mundial se insurge contra o establishment neoliberal tradicional na tentativa de instaurar uma nova maneira de governar. No fundo, talvez nos falte um conceito preciso para descrever o inimigo atual.
[10] Cf. “Caças Rafale serão temas do encontro entre Lula e Sarkozy”.
[11] Cf. José Luís Fiori e William Nozaki, “Escalada Militar na pandêmia”.
[12] Cf. Robert, Kurz, Guerra de Ordenamento Mundial.
[13] Cf. Wolfgang Streeck, How Capitalism Will die?, London/New York, Verso, 2016.
[14] Cf. Gunther Anders, ”Teses para a Era Atômica”.
[15] Cf. “Le ministère des colonies américaines”, Le Monde Diplomatique, n° 794, Mai, 2020.
[16] Cf. José Luís Fiori e William Nozaki, “Rumo ao Colapso”.
[17] Cf. Robert Kurz, “A Pulsão de morte da concorrência”, e Silvia Viana, “A acumulação do horror e o horror da acumulação: uma entrevista com Silvia Viana”.
[18] Cf. “Elite militar brasileira vê França como ameaça nos próximos 20 anos. Minuta secreta vê guerra pela amazônia, base americana, ação chinesa e até terror no Rock in Rio”.
[19] Cf. Robert, Kurz, “A Origem destrutiva do capitalismo”, Últimos Combates, São Paulo, 1998, p. 239-245.
Este artigo está ilustrado com obras de Antonio Benetazzo (1941-1972).