Por Victor Hugo Silva e Alan Fernandes
Na cidade de Toritama, no agreste de Pernambuco, máquinas produzem o som monótono de costura, emitido em decorrência da produção massiva de jeans. Para quem não viu o documentário Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, cabe saber que essa produção não se dá por meio de grandes fábricas, mas por pequenas “facções” geridas por famílias. Os trabalhadores dividem-se entre os que produzem e os que vão à feira para vender os jeans produzidos nessa imensa rede de trabalhadores dispersos e sem patrão fixo.
O mais curioso do documentário é o funcionamento da disciplina do trabalho. Como essas facções não são indústrias/empresas propriamente ditas, a produção de jeans é toda engajada pelos próprios trabalhadores, que produzem em suas próprias facções e definem seu tempo de trabalho. Não é preciso dizer que não têm direitos trabalhistas, já que são eles mesmos patrões de si mesmos. O tema já foi enfaticamente debatido no Passa Palavra, e não nos propomos fazer uma releitura do documentário, mas nos encheu de curiosidade uma matéria recente da UOL sobre esses moradores durante o período de pandemia. O prefeito de Toritama decretou o fechamento da feira que fazia circular os jeans produzidos na cidade. Isso dividiu os locais, que ficaram reféns do auxílio emergencial, uma vez que não tinham patrões aos quais exigir licenças remuneradas. A situação torna-se complicada porque o auxílio não é suficiente para prover esses trabalhadores. Se antes o carnaval era a folga merecida pelos trabalhadores engajados na produção de jeans, hoje o carnaval, não só nas ruas mas como símbolo da festividade, que é a fuga do trabalho, parece ser um sonho distante.
Hoje esses sonhadores tiram do que não têm para suas necessidades cotidianas. “Chega uma coisa para pagar, mas você está ali segurando o dinheiro porque vai acabar o bujão [de gás], e tem de comprar. E tudo isso é à vista, não é fiado. Mesmo assim, vai comprar fiado para pagar com o quê?” — com mais tempo de trabalho, claro, tempo emprestado. Essa gente que está acostumada a lidar com um normal, que já não é fácil, se desdobra ainda mais em um normal piorado pela pandemia.
Antes, os momentos de sociabilidade e solidariedade eram inteiramente consumidos pelo lazer, mas agora se manifestam de outra forma. A reportagem nos dá um vislumbre na escolha consciente da trabalhadora de onde investir seu auxílio emergencial: “Eu mesma recebi o dinheiro, e era para eu ter tirado o dízimo para dar à igreja, mas não dei; comprei três cestas básicas e dei aos pobres.”
A classe trabalhadora brasileira — que está concentrada em Toritama em sua substância social, ainda que dispersa geográfica e juridicamente — sempre tirou do que não tinha para sobreviver. Parece que está reaprendendo que a solidariedade é um bem de primeira necessidade para viver além do empreendimento de hoje, para ter um amanhã respirável.
Como estão se virando esses trabalhadores agora? Estariam em grupos de Zap [WhatsApp] para se instruir sobre o auxílio? Já pensaram em se mobilizar para exigir um auxílio municipal? Exemplos de outros municípios não faltam. Se são os trabalhadores de Toritama os aparentes patrões de si mesmos, mas ao mesmo tempo trabalham para manter a economia do município circulando, por que a Prefeitura não dá suporte a eles? Talvez isso desfizesse a visão de alguns deles de que devem sugerir a reabertura da feira para terem seu sustento assegurado.
O artigo está ilustrado com a foto de uma apresentação da murga uruguaia Falta y Resto.
Da enquete operária à imaginação: que movimentos gostaríamos de pensar que poderiam acontecer?
FLAGRANTE DELITO
Quem imagina os imaginadores? Pesquisadores teriam encontrado a enquete operária na natureza? Ou o próprio conceito de imaginação na objetividade de seu sujeito-transcedental? Eu fico com os curiosos! Aqueles cuja sinceridade permite a imaginação.
Como é possível fazer política sem imaginação: com propaganda e repetição do lugar comum. Que tipo de política seria essa? Conseguem imaginar? Eu consigo: é política conservadora no máximo travestida com ares de revolta. Mais do mesmo. Fingindo que não é. Há quem chame isso de populismo quando é de direita. E quando é de esquerda, qual o nome? Nem imagino. Talvez não tenha ainda.
Victor Hugo.
O comentário do H white foi de esquerda? Não sabia.
Victor Hugo e Alan, me parece que quem vai acabar “acudindo” esses trabalhadores é a economia de plataforma, e não a prefeitura. Era o que faltava para que aquelas relações de trabalho se “uberizassem” definitivamente, para além do “salário por peça” ainda ligado ao sistema industrial (muito por conta justamente da feira). O que vocês acham?
Olá Isadora, Tudo certo?
Algumas considerações:
As circunstâncias não são as mesmas que as em que o meu colega Victor Hugo escreveu pela primeira vez sobre o doc Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar. Se antes os trabalhadores julgavam ter a escolha de trabalhar ininterruptamente, quer acreditem que controlam o próprio tempo de trabalho ou não, hoje, com a pandemia, a impossibilidade de escoarem as peças produzidas torna o próprio trabalho impossível. Sendo assim não só é mais tático recorrer à prefeitura, mas é uma possibilidade bem maior comparada a de um aplicativo a curto prazo apresentar uma solução para trabalhadores do agreste pernambucano.
Inclusive, o trabalho nas facções, diferente dos entregadores de aplicativo, não é essencial. Eles não produzem comida ou medicamentos. Existe uma brecha para que eles comecem a recorrer a feiras clandestinas. Isso sim. Mas enquanto eu escrevo este comentário esses trabalhadores estão desassistidos. Me parece que é mais provável uma dessas duas saídas: ou se viram para escoar os seus produtos em feiras/comércios de menor popularidade, coisa que já estão fazendo e relatam estar sendo um sofrimento; ou unem-se para exigir um Auxílio Municipal para acumular com o do governo federal. A segunda opção me parece ser mais segura em um contexto de pandemia, lembrando ser este um fator determinante da luta de classes hoje. Agora, tenho receio em achar que as coisas seriam melhores se as plataformas fossem introduzidas em Toritama. Mas quem sabe assim teriam para onde direcionar suas demandas além da prefeitura? Com a mudança no processo de trabalho mudariam consequentemente também as formas de luta.