Por Miguel Serras Pereira
A homenagem que procurarei prestar aqui a Sophia[1] é a de uma reflexão sobre as condições da poesia — ou seja, uma maneira de retomar a exigência de dar conta e razão do fazer do poeta que atravessa toda a sua obra.
Com efeito, reflectir sobre as condições da poesia é falar daquilo que o facto de haver qualquer coisa como a poesia nos pode dizer sobre a nossa condição e sobre a condição do real de que somos parte, e é explicitar também que, a partir daí, se trata, como nos diz Sophia, de recomeçar “a busca/ De um país liberto/ De uma vida limpa/ E de um tempo justo”.
Assim, direi para começar que, na reflexão sobre as condições da poesia, está sempre também presente a reflexão sobre a poesia como repetição/celebração da criação humana da linguagem, a reflexão sobre a metamorfose ontológica da criação da linguagem que se consuma em cada língua e na multiplicidade indefinida da história de todas e de cada uma delas. Pois bem, tal como a criação da linguagem é a primeira condição da poesia, do mesmo modo é a criação da linguagem que se reitera e retoma na singularidade de cada poema e na da voz de cada poeta, bem como nesse tempo que o poema e a voz fazem ser, no interior do tempo sem exterior, quando “o tempo apaixonadamente / Encontra a própria liberdade”. Tal é o começo do “mar novo” da linguagem em estado nascente, que transforma o que somos e transforma o próprio mar, fazendo ser uma navegação que navega sem o mapa que vai fazendo, uma navegação nunca já sabida ou já sida por nada antes do seu navegar.
Dito isto sobre as condições iniciais da poesia, passarei agora, seguindo “o fio de linho da palavra” de Sophia, a tentar elucidar um pouco algumas outras das condições em que o encontro com o tempo se transforma nesse encontro com a liberdade, que só ele pode prestar justiça à verdade da poesia, quando a libertamos das funções ancilares ou do estatuto das excepções carnavalescas que confirmam a dominação como regra, libertando-a no mesmo lance do regime censório de restrição a priori do sentido a que a sacralização de qualquer lei heterónoma a condena. É, com efeito, o encontro do tempo com a liberdade que torna possível a Sophia fazer do poema “a minha explicação com o universo”, ou essa palavra, que, na minha voz, “reconheço por não ser já minha”. E, do mesmo modo, é neste encontro, assumido como “explicação com o universo”, que começa o “mar novo” da acção cuja busca é a de um “tempo justo”. Ora, uma tal acção só é possível mediante aquilo a que Sophia chama “a atenta invenção do que foi dado”, recriando o tempo e o universo com que nos explicamos, depois, sempre depois, de “o rei (…) morto e o reino dividido” — quer dizer, depois de reconhecermos que “o tempo/ Como um monstro a si próprio se devora”, que as rosas “morreram com o tempo que as abria” e que, finalmente, “Tudo quanto acontece é solitário/ Fora de saber fora das leis/ Dentro de um ritmo cego inumerável/ Onde nunca foi dito nenhum nome” — do mesmo modo que, apesar de o tempo ser também inicial e nascente, “o instante não pára de morrer”. É contra e a partir deste fundo de “um ritmo cego inumerável”, do “caos mais antigo do que os deuses”, da ausência de lei última, da destruição e do vazio incolmatável do tempo, é contra e a partir do abismo deste sem-fundo – caos de um vazio que todo algum absorve e que faz com que não haja ser que seja tudo, e caos da metamorfose ontológica incessante a partir da qual tudo existe e des-existe – é contra e a partir daí que podemos tentar instaurar uma relação justa com as coisas, relação que teremos de criar, reinventando atentamente o que, nós próprios incluídos, foi dado, e assumindo a responsabilidade dessa criação, que nada nos prescreve ou garante, mas que, nunca sendo embora criação de tudo, nos acompanha como consubstancial potência de metamorfose indefinida.
O que até aqui assim tentei resumir deixa-nos já entrever duas dificuldades maiores da arte de navegar, forçosamente sem o mapa que fazemos, daquilo a que Castoriadis chama o “projecto de autonomia” e a cuja abertura indefinida, na “solenidade e risco” que “em cada gesto ponho”, as navegações da arte poética de Sophia nos introduzem. A primeira está na tentação por assim dizer natural, ou naquilo a que Bruno Bettelheim chamaria a “sedução psicológica”, do recalcamento e denegação do caos e do vazio ou do nada, que é a presença real do tempo no sem-fundo de todo o todo e de todo o tudo. Mas a condição da “explicação com o universo” em termos de uma verdade que liberte, a condição da busca do “tempo justo”, a condição de fazermos qualquer coisa como isso a que Sophia se refere quando diz, num poema chamado “25 de Abril” que somos livres quando “habitamos a substância do tempo”, passa pelo reconhecimento da nossa própria mortalidade, bem como pela de tudo aquilo de que somos feitos e podemos fazer ser. Parafraseando Eduardo Lourenço, poderíamos dizer que, entre Deus e o tempo, teremos de decidir qual é a sombra de qual, e que, reduzindo a presença real de um dos termos a aparência ou ilusão a presença do outro, teremos de concluir também que ou a ideia de criação divina é, como lhe chama Lourenço “a sombra do tempo”, ou é “a antiga linha clara e criadora/ do nosso rosto voltado para o dia” que não passa de um efeito óptico ilusório derivado da “sombra de Deus”. Bem sei que Sophia não põe esta alternativa e que, se a sua obra afirma como nenhuma outra a exigência de reconhecermos que somos nós que, justamente para habitarmos a substância do tempo, teremos de assumir a responsabilidade por aquilo que criamos, tornando-o criação de liberdade, o nome de Deus como “Senhor” não deixa, num certo número de poemas suficientemente importantes, de ser explicitamente invocado, do mesmo modo que a crença na imortalidade ou ressurreição pessoais. Não posso demorar-me aqui neste aspecto, mas digamos que, uma vez que nada nos poemas em causa parece desmentir ou corrigir o que os outros nos dizem nos termos que vimos, estamos perante um “salto da fé” (Kierkegaard) que não desautoriza nem invalida o que Sophia diz ser “o tempo onde não moras” (…), “Porque tu és de todos os ausentes o ausente” – “salto da fé” que não torna menos impossível aquilo a que, uma vez mais Eduardo Lourenço, chama “o lugar impossível de Deus”. Porque, embora possa ser invocado – “Escuto mas não sei/ Se o que oiço é silêncio/ ou deus” -, ou possa ser até destinatário das preces da nossa impotência – “Dai-nos, Senhor, a paz que vos pedimos /A paz sem vencedores e sem vencidos” -, a verdade é que Deus não fala nos poemas de Sophia: não há palavra ou acção sua que intervenha ou responda no diálogo da voz do poema consigo próprio nem na proposta de diálogo que endereça a quem o lê. É caso para dizermos, pois, que, no poema, o “salto da fé” jamais quebra o “silêncio de Deus”. Com efeito, é só na condição de esse lugar impossível permanecer vazio, deixar subsistir o “caos incorruptível” e “mais antigo do que os deuses”, que a criação de liberdade e a liberdade de criação podem acontecer – como tudo o que acontece “solitário”, “fora de saber fora das leis”. Deus não pode ser — nem garantir — a lei que teremos de ser nós próprios a darmo-nos, sabendo que o fazemos, para que a livre navegação do poema possa presidir à construção, que será quotidiana ou não será, de uma “cidade da realidade encontrada e amada”, como essa cuja porta “é feita de dois barcos” e sob cujo signo aprendemos a ser “atentos a todas as formas que a luz do sol conhece/ E também à treva interior por que somos habitados/ E dentro da qual navega indicível o brilho”.
Mas uma outra dificuldade se põe ao encontro do tempo com a liberdade, e é a que consiste num mecanismo de defesa perante a hubris ou desmesura das paixões que nos habitam e instauram como horizonte nas relações da humanidade consigo própria a ameaça permanente da guerra mortal de todos contra todos, como da luta de morte cada um consigo. Também aqui, a sacralização tanto religiosa como a que se queira científica da lei e da heteronomia traduzem o medo e a insegurança perante o sem-fundo ou abismo que, além de marcar o nosso corpo-a-corpo com o mundo, nos assombra internamente. E, uma vez que ceder ao caos pulsional seria a morte, tanto ao nível do indivíduo como da espécie, domar a “treva interior por que somos habitados” e cegarmo-nos ao mesmo tempo ao seu brilho indicível, torna-se aparentemente mais seguro do que explicarmo-nos com a sua efervescência magmática sem abrirmos mão do “fio de linho da palavra”, que é condição desse “primeiro tema da reflexão grega” que Sophia nos diz ser a justiça.
Se estas duas dificuldades – a de assumirmos a mortalidade e o tempo como ser e não-ser de tudo e a de assumirmos que a nossa condição é trágica não só porque as nossas melhores criações são mortais, mas também porque podemos criar o monstruoso e o horror –, se estas duas dificuldades, dizia eu, não têm propriamente solução, pois nunca poderão ser dissipadas de uma vez por todas, elas não invalidam essa “busca de um tempo justo” que nos poemas de Sophia encontramos em acto: tornam-na, pelo contrário, mais premente e decisiva. A sobrevivência não é tudo, e a vida bem pouca coisa seria se não fôssemos capazes nela de uma condição livre e criadora cuja salvaguarda sejamos capazes de investir ainda que à custa da sobrevivência. A este propósito convém lembrar que não há, de resto, até mais ver, instituição da sociedade que não afirme bens maiores do que a sobrevivência, e, ao mesmo tempo, que, tanto quanto sabemos, foram os gregos os que souberam afirmar primeiro que esses bens maiores devem ser tais que continuem a primar e a ter na acção que os afirma justificação suficiente, até mesmo quando, ou sobretudo quando, não há depois. Comentando o estásimo da Antígona de Sófocles que afirma o humano como o mais terrível do terrível (deinos), aquele de entre os mortais e os imortais que mais é ocasião de terror e maravilha, Castoriadis sustenta que este terrível é o da autocriação humana, e adianta os exemplos da linguagem e do pensamento, nos seguintes termos: “A linguagem e o pensamento não são atributos ‘naturais’, dados ao homem: o homem (…) ensinou-os a si próprio. (…) O homem não ‘tem’ a linguagem e o pensamento: deu-os a si próprio, criou-os para si próprio, ensinou-os a si próprio”. Castoriadis observa a seguir que, enquanto Platão considera que só podemos aprender o que é já conhecido, ou saber o já sabido, ou, em última instância, ser o já sido, e que só há conhecimento verdadeiro, saber verdadeiro, ser verdadeiro fora do tempo, pelo que só obedecendo a esse saber e a esse ser que reduzem o acontecimento e o tempo a ilusões podemos validar uma lei que nos salve de nós próprios, “Sófocles afirma [em contrapartida] claramente […] o círculo da criação, em que a actividade pressupõe os resultados que faz ser: o homem ensina-se a si próprio uma coisa que não sabia e, desse modo, aprende aquilo que tem de ensinar”.[2] Retomando a questão dos bens maiores que podem dar sentido a uma vida mortal – apesar de todo o “Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo” -, poderíamos dizer que também eles nos confrontam com um círculo da criação semelhante, enquanto, entre esses bens maiores se conta, como condição decisiva da acção que os cria e reitera, a actividade por meio da qual, segundo Sófocles, o homem ensinou a si próprio ou aprendeu consigo próprio, recriando o caos pulsional da “treva interior por que somos habitados” e o seu “indicível (…) brilho”, as “paixões que criam as cidades”, e, dentro delas instituem, o tema da justiça como reflexão primeira nessa “atenta invenção do que foi dado”, que é condição comum da cidadania democrática em acto e da reflexão em que a poesia toma consciência de si própria como “explicação com o universo”. É, sem dúvida, assim que, mobilizando ao mesmo tempo a absoluta singularidade de um timbre capaz de solicitar por ressonância a singularidade mais íntima e mais única de cada um, a voz do poeta se consuma nessa “palavra alada, impessoal”, que, renovando por dentro dos seus usos e costumes a invenção anónima e comum da linguagem presente em cada língua, mantém vivo o exercício de uma liberdade que informe esses outros usos e costumes que, só eles, poderão ser o húmus ou caldo de cultura da plena cidadania pela qual saibamos governar-nos e ser governados por leis que sejam explicitamente obra e responsabilidade nossas. Tal é essa outra condição da plena afirmação da poesia que consiste na construção quotidiana da “cidade da realidade encontrada e amada”, cujo projecto se confunde com o dessa criação de uma “relação justa” com o real, inseparável da “…busca / De uma vida limpa/ E de um tempo justo”.
Notas
[1] Texto que serviu de base a uma minha intervenção numa sessão de homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), organizada PEN CLUBE Português em Novembro de 2019, comemorando o centésimo aniversário do seu nascimento.
[2] Cf. C. Castoriadis, “Anthropogonie chez Eschyle et autocréation de l’homme chez Sophocle”, Figures du pensable. Les carrefours du labyrinthe, VI, Paris, Seuil, 1999, pp. 29-33.