Por Jan Cenek
Algumas perguntas e uma definição provisória
Primeiramente, um esclarecimento: pixo vai com x porque lembra lixo, e o ato de pixar não respeita as leis, muito menos as ortográficas.
São Paulo é outra coisa, não é exatamente amor, é identificação absoluta – cantou Itamar Assunção[1]. Mas o que é São Paulo? Identificação absoluta? Será?
Ninguém anda um quarteirão em São Paulo sem avistar muros, portões, pontos de ônibus e outros logradouros logomarcados com símbolos e palavras de difícil compreensão. São os pixos. Já disseram que em São Paulo há edifícios que parecem cadernos de caligrafia gigantes. Dizem até que há quem visite a cidade exclusivamente para ver prédios pixados. Os pixos são uma espécie de anticartão do postal de São Paulo[2], que também expõe frases políticas e até versos em suas fachadas, mas em menor quantidade.
As pixações não são exclusividade paulistana. Muito pelo contrário. Mas, parece-me que, quanto maior a cidade, mais pixos. Não é comum observar símbolos e palavras praticamente indecifráveis nos muros de cidadezinhas do interior. Talvez o fenômeno tenha a ver com a solidão aglomerada[3] das megalópoles. Se for isso, é possível que minha impressão esteja correta e a maior cidade do hemisfério sul – São Paulo – realmente seja a capital do pixo, que é a estética da barbárie.
Se as pixações estão em todos os cantos, talvez tenham algo a dizer sobre a cidade. O que dizem os pixos?
Hipótese 1
Havia centenas de nascentes e cursos de água em São Paulo. Com o crescimento desordenado, nascentes foram fechadas e cursos de água viraram escoadouros de esgoto canalizados debaixo do asfalto. Várzeas e lagoas foram aterradas pela especulação imobiliária. Para esconder vergonhas e aumentar lucros, foram construídos edifícios sobre várzeas e lagoas aterradas.
Nas últimas décadas do século XX, quando a cidade havia escondido suas vergonhas, os cidadãos desenvolveram o estranho hábito de logomarcar os muros com símbolos e palavras de difícil compreensão. Quanto mais punição, pintura e limpeza, mais registros praticamente indecifráveis. São as vergonhas da cidade reexpostas.
Hipótese 2
Gilles Lipovetsky enxerga um movimento de sedução superestetizada na arquitetura contemporânea, que empenha-se em surpreender, encantar e tocar as sensações visuais e táteis do público: a utopia foi suplantada pelo fetichismo da personificação da construção, o culto dos objetos singulares, a sedução das formas fluidas e as curvas livres, em sintonia com a cultura hedonista do consumismo triunfante[4]. O filósofo define o fenômeno como a arquitetura do espetáculo.
O pixo é um rechaço contra a sedução superestetizada da sociedade do espetáculo, incluindo a arquitetura. É um grito dos que não se sentem contemplados pelo capital, porque não têm dinheiro para consumir e/ou porque rechaçam a sociedade de consumo, ainda que não saibam como substituí-la.
Existe amor por SP
Um amigo me contou que, tendo que trabalhar na Amazônia, começou a sentir saudade de São Paulo. Para matar a saudade, sintonizava programas policiais, que odiava, mas que às vezes mostravam as marginais, as ruas e as avenidas paulistanas, de forma que podia rever a cidade.
O exemplo do meu amigo mostra que existe amor por São Paulo. Mas é um amor estranho que se manifesta pelo avesso. São Paulo agride seus habitantes, que agridem a cidade. Como nos pixos?
Seja como for, uma coisa certa, o amor por São Paulo não tem nada a ver com o ufanismo bocó a la nosso céu tem mais estrelas, nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores[5]. É exatamente o contrário. Só não sei se chega a ser identificação absoluta, como cantou Itamar Assunção.
Algumas imagens e uma possibilidade
Gosto de andar por São Paulo. Com alguma atenção, é possível observar os caminhos percorridos pelos cursos de água que correm por baixo de escadões, vielas e canteiros. Todos canalizados e pixados. Como devia ser bonita a cidade antes do concreto e das canalizações, com centenas de cursos de água que corriam para interior…
Como é desagradável a cidade atual, com milhares de edifícios censurando o horizonte[6], muitos logomarcados com símbolos e palavras de difícil compreensão, o que indica, pelo menos, que alguém veio de longe, provavelmente da periferia, e se arriscou para esfregar na cara da sociedade que não concorda com as coisas como são e estão.
Há no pixo um quê de esporte radical, mas com uma diferença importante, a descarga de adrenalina não tem a ver apenas com a superação de limites físicos, é também um tapa na cara do Estado, das leis, da propriedade privada, da polícia, dos “cidadãos de bem”. Não é pouco. Dias Gomes afirmou que quem não veio ao mundo para incomodar não deveria ter vindo. Se é assim, o pixo está ontologicamente justificado.
Vejo o pixo como o vapor que sai pela válvula da panela de pressão. Se o pixo é o vapor, São Paulo é a panela de pressão, que pode explodir a qualquer momento, como em junho de 2013.
Notas
[1] Versos da canção Persigo São Paulo.
[2] Ver os documentários Pixo, Pixadores em ação, Um grito em meio ao silêncio: pixo.
[3] “Aglomerada solidão” é um verso da canção São, São Paulo, de Tom Zé.
[4] Lipovetsky, G., Da leveza. Barueri: Amaralys, 2016.
[5] Versos do poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias.
[6] Prédios: censuradores de horizontes. Sacada da camarada Danimar.
Hipótese 3
O pixo é apenas a reprodução no plano visual da degradação cultural e da concorrência que está imersa a juventude das grandes cidades. Enquanto o autor, com ingenuidade, reconhece rabiscos egoicos nas paredes como forma de contestação, os trabalhadores gostariam de poder viver em bairros e casas sem essa poluição visual. Se o autor conhecesse pixadores de carne e osso, não os da imaginação, veria que a motivação principal dos pixos não é contestar ordem alguma, mas a promoção pessoal ou de identidades de grupo com assinaturas (tags). É a estética da superficialidade, da banalidade, da barbárie (como o próprio artigo reconhece). Uma prática tão nociva ao capitalismo quanto jogar lixo no chão.
Mas claro que a esquerda, sem horizontes emancipatórios, se colocará prontamente a fazer apologia dessas “manifestações artísticas” e engrossar o caldo da barbárie. Se já há quem defenda que o vandalismo e a bagunça nas escolas são um protesto contra o sistema de ensino, não é difícil compreender essa posição. É muito fácil lutar assim, quando não é preciso mudar nada, basta aceitar as coisas tal como estão. Como diz João Bernardo em seu artigo A Barbárie: “A esquerda outrora apresentou a alternativa socialismo ou barbárie, mas aquilo que agora passa por esquerda propõe socialismo e barbárie.”
Interessante.
Uma outra hipótese que penso, é a de que talvez o pixo seja a expressão de talentos impossibilitados. Um grito.
A habilidade para desenhar pode se desenvolver em vários sentidos e formas, sejam elas artísticas ou técnicas, como a caligrafia, o desenho industrial (design), as artes visuais em geral.
Nesse sentido, o indivíduo que descobre essa habilidade, tende a expressar-se por meio dela. Sendo-lhe negada a possibilidade de desenvolver essa expressão, surge, em resistência, seu grito expressivo, nesse caso o pixo.
Creio firmemente nessa hipótese, contudo fico pensando se isso não seria negar o pixo, visto que em última instância, é dizer que: se o pixo pudesse, seria outra coisa.
sempre que volto a São Paulo busco as pixações. Infelizmente, a maior parte daquele ambiente carregado dos anos 90 agora dá lugar a grandes murais horríveis, enormes, com cores e temáticas que são um verdadeiro espanto.
As pixações eram, e ainda são, uma marca urbana muito original. Certamente está muito menos vinculada ao capitalismo do que o primeiro comentarista acredita, pois as práticas agônicas de desafio, competição e luta por prestígio são quase tão antigas como a própria sociedade humana. Capitalista são os horrendos murais feitos por “street artists”, pagos por empresas ou prefeituras.
A maior parte dos muros, pontes, viadutos e prédios de São Paulo são horrendos. Os bairros da periferia em geral também são bastante feios, pensar que a pixação é o que os faz feios é realmente um pensamento excêntrico. Acredito que a maioria dos cidadãos trabalhadores de bem desta cidade tem aversão ao pixo e aos pixadores pois esta prática muitas vezes está associada à invasão de propriedade e à desvalorização da mesma. Mas também, quantos deles ficariam felizes com um quadro de Pollock estampado em seus muros?
Primo Jonas,
As pichações se desenvolveram e popularizaram no final do século passado, período de plena hegemonia do capitalismo, mas segundo você não são um fenômeno intrinsecamente ligado aos seus desdobramentos na formação dos grandes centros urbanos e da força de trabalho dessas cidades. Interessante sua tentativa de naturalizar a prática e desvencilhá-la de algumas consequências perversas da atual sociedade, nem o próprio autor do texto chegou nesse ponto. Pichação não é arte, é lixo visual, e nisto concordo com o presente artigo. Qualquer mané com uma lata de spray na mão pode sair rubricando assinaturas nas paredes, e de brinde ainda irá ganhar aplausos da esquerda. A prática é análoga ao ato dos cachorros demarcarem territórios mijando em postes, não é à toa que foi amplamente difundida entre as inúmeras facções criminosas brasileiras, que carimbam muros e vielas para mostrar quem é que manda nesses lugares.
Outra coisa é que em momento algum disse que os bairros são feios por causa das pichações, falei que as pichações são um elemento de poluição visual das cidades, apesar de você apreciá-las (esse sim um gosto excêntrico). Sobre sua questão, talvez quem goste de Pollock ou de pintura possa ficar feliz, outros podem achar cafona, o que me pergunto é sobre quantos pichadores ficariam felizes com suas próprias obras na fachada de suas casas. Certamente pouquíssimos.
Alguns comentários para contribuir com o debate.
Primo Jonas, concordo contigo. A maioria dos murais de SP são horríveis, puro kitsch. Milan Kundera: “o kitsch é a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal quanto no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.” Se é assim, o pixo é a negação do kitsch. Enquanto a maioria dos murais de SP tenta excluir a merda, o pixo esfrega a merda nos muros da cidade. Ou, como escrevi no texto: “São as vergonhas da cidade reexpostas.” O objetivo dos pixadores é afrontar e incomodar. Despertarão, naturalmente, a raiva de alguns.
Will, concordo contigo. Certamente há um quê de habilidade para desenhar tentando se expressar em cada pixador. Só acho que isso não resolve tudo. Na minha opinião, há também um desejo de afrontar e incomodar, o que, talvez, seja o principal.
Vim para incomodar, concordo contigo. Há um quê de promoção pessoal e de identidades de grupo no pixo, não poderia ser diferente. O ser determina a consciência. Sua imagem sobre jogar lixo no chão me fez lembrar os versos da Legião Urbana, que, creio, ajudam a entender as pixações: “Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês. Somos os filhos da revolução. Somos burgueses sem religião. Somos o futuro da nação.” São os filhos da revolução que não veio cuspindo o lixo de volta. No mais, discordo de você. Pixo é arte. Não é uma grande arte nem está entre as belas artes, mas é arte. Se não, caímos no erro de pensar que só é arte o que é belo, simétrico e sublime. A arte é expressão e representação, por isso o pixo é arte, assim como os murais. O objetivo principal do pixo é afrontar e incomodar, o que ele faz bem. Se vivemos numa época de decadência do modo de produção capitalista, não dá para imaginar que a arte do tempo presente será delicada, refinada, suave, doce, elegante… O ser determina a consciência… A “solidão aglomerada” das periferias de SP não vai produzir um Rafael ou um Michelangelo. O pixo é a estética da barbárie. Só vai acabar quando mudar a realidade que o determina. Interessante lembrar que as primeiras pixações eram frases políticas pintadas pela esquerda, “abaixo a ditadura” e outras. Só depois, nos anos 1980, surgiram “símbolos e palavras de difícil compreensão”, sem a influencia da esquerda. O que explica a mudança? Por que a esquerda não foi capaz de contemplar o incômodo e a vontade de afrontar da juventude? É uma questão a ser pensada. Outra questão a ser pensada. Você diz que os “os trabalhadores gostariam de poder viver em bairros e casas sem essa poluição visual.” Ok. Então os trabalhadores se incomodam com a “poluição visual” provocada pelos pixadores, mas não se incomodam com o desemprego, o trabalho assalariado, a violência policial, o transporte lotado, os hospitais sem médicos, as escolas sem professores… Se for assim, adeus revolução, porque os trabalhadores se conformaram em ser “personificações do capital”: personificações assalariadas, precarizadas, desempregadas, empreendedoras. O pixo é um grito contra “tudo isso que ta aí”, não fosse assim, seria legalizado. Não fiz a defesa estética nem política do pixo, mas acho importante a esquerda pensar em como dialogar e incorporar o inconformismo e a rebeldia que brotam da juventude, e que se manifestam, por exemplo, nos pixos. Se não, faremos apenas dissertações, teses e grupos de estudo nas universidades que sobrarem, com pouca ou nenhuma participação efetiva na luta de classes.
Aventuras na História: http://portoribeiro.com/pichacoes-de-pompeia-cidade-romana-abandonada/
A pixo é arte, sim. E é como o Jan colocou: uma expressão estética da barbárie. O problema é que existem os bons artistas e os maus. Os bons conseguem pôr a merda à vista habilmente, até com genialidade. Já os maus… Tomemos, por exemplo, um Anselm Kiefer, que ilustrou recentemente um editorial do Passa Palavra (ver suas obras aqui: https://www.wikiart.org/en/anselm-kiefer). Eu, particularmente, gosto da perspectiva de pôr a merda à vista, mas não custa tentar fazê-lo com algum requinte, como fez Andres Serrano na série Shit, que ilustrou outro artigo publicado no Passa Palavra (ver aqui: http://www.andresserrano.org/series/shit). Por outro lado, e aqui não se trata mais da qualidade estética do pixo, mas da sua dimensão propriamente política, o pixo não é apenas expressão da barbárie, mas também reprodução da barbárie e promoção da barbárie como projeto de sociedade. Eu prefiro a perspectiva do socialismo (sem barbárie), por isso o pixo não me atrai.
11 anos atrás os comentários nesse site foram palco de um amplo debate sobre pixação e arte.
Acho que o meu favorito é esse do João Bernardo:
“Aproveito este debate para lançar um brado de indignação contra o atletismo. Porquê os que treinam todas as manhãs hão-de correr mais depressa do que os que passam a vida sentados? Porquê os que correm mais depressa hão-de chegar em primeiro lugar? Não será isto o estabelecimento de uma hierarquia? Porquê seleccionar os participantes num jogo de futebol ou de volley ou de basket? Porquê impedir que entre em campo quem quiser e impor aquela norma arrogante de que haja uma única bola em vez de cada jogador ter uma bola para si? Não será isto uma selecção? O desporto é inimigo do povo. Inimicíssimo.”
https://passapalavra.info/2010/11/32287/
Este debate sobre a pichagem relaciona-se intimamente com outros debates, ocorridos há anos no Passa Palavra, em que se discutia se os presos comuns podiam ser classificados como presos políticos. Os argumentos defendendo que os presos comuns seriam presos políticos coincidem com os argumentos em defesa da pichagem. Eu defendia — e continuo a defender — que os presos comuns são o oposto dos presos políticos, o que suscitou a indignação de vários comentadores. Lembro-me de que argumentei que nesses debates eu era a única pessoa que tinha sido preso político (duas vezes) e preso comum (duas vezes) e que, por isso, sabia do que falava. Mas, como é habitual, o argumento prático nunca convence aqueles que preferem argumentos morais.
é interessante o paralelo com o esporte.
No seu aspecto aristocrático, o esporte é o melhor exemplo de desafio agônico, uma luta por prestígio e fama. Agora, não deixa de ser esporte se quem está jogando o faz mais por diversão do que pela busca da imortalidade.
Existe este lugar comum tosco, que “ousa” questionar o fato da pixação não ter lugar nos museus. Bem, quem fez isso foram os capitalistas que criaram a “street art” e assim renovaram o mercado das artes. Mas a pixação não é isso, ao menos não é o que eu vejo quando passeio pela cidade de São Paulo (embora, como eu disse acima, existem já vários sinais desta lenta cooptação). A questão do rap não é tão distante. O duelo de improvisadores, o relato ritmado, são tradições humanas. As altas artes bebem incessantemente das práticas e da cultura popular. A estética da barbárie é a transformação destas práticas em produtos e a reprodução de seus recursos pobres como linguagem oficial. Se não, logo dirão que uma roda de samba mal tocada é a estética da barbárie.
E no fundo, o argumento prático estético nunca deixará de ser “gosto” ou “não gosto”, como também para a degustação de vinho. Também não haverá dúvidas de que existem os bons pixadores e os maus, mas aparentemente todos participam em uma prática degenerada.
Ai, a cultura!
A maioria dos murais que vemos hoje em dia em São Paulo parece ter sido feita por discípulos de Romero Britto. Acho que estão trocando seis por meia dúzia; uma escrita que quase ninguém entendia por mandalas coloridas que dizem ser convites a uma vida politicamente correta. Talvez seja pior, seja seis por cinco…
Sobre graffiti e hipóteses, acho indispensável a leitura do capítulo Kool Killer ou a Insurreição pelos Signos, do livro A Troca Simbólica e a Morte, de Jean Baudrillard, originalmente publicado em 1976.
Um pequeno trecho:
“Uma coisa é certa: uns e outros nasceram depois da repressão as grandes manifestações urbanas de 1966/1970. Ofensiva selvagem como as manifestações, mas de um outro tipo e que mudou de conteúdo e de terreno. Tipo novo de intervenção na cidade, não mais como lugar de poder econômico e politico mas como espaço/tempo do poder terrorista da midia, dos signos e da cultura dominante”.
“Não, não: pixo é outra coisa, não é exatamente arte”, retomando o poeta que perseguia São Paulo. E se rabiscar besteira nos muros é uma prática tão antiga quanto a civilização (não eram afinal os bárbaros iletrados que gastavam o latim nas paredes de Pompeia), o pixo distingue-se como uma forma específica surgida numa certa época e lugar. O x de lixo pode causar uma impressão precipitada: se “qualquer mané com uma lata de spray na mão pode sair rubricando assinaturas nas paredes”, obtemos não uma pixação, mas o «deboche» de fazê-la sem a técnica correcta. A comparação com o esporte é absolutamente válida, pois encontra no pixo uma ligação literal — haja rapel, parkour, escalada, para chegar ao topo da Ponte Estaiada ou às fachadas dos prédios do Centro. E basta uma volta pelo Rio de Janeiro para perceber que as assinaturas dispersas, cursivas, acidentais, quase toscas, que sujam aleatoriamente as paredes ignoram completamente as regras de espaçamento, proporcionalidade, linearidade, obediência aos traços da superfície arquitetônica e caligrafia retilínea quase gótica da técnica praticada na Capital do Pixo.
Para empregar os velhos conceitos marxistas, a pichagem faz parte da superestrutura do socialismo da miséria. No plano económico, o socialismo da miséria representa a rendição da extrema-esquerda ao capitalismo, a confissão de que não conseguirá superá-lo economicamente. É a ecologia de esquerda. No plano social, representa a rendição da extrema-esquerda ao analfabetismo funcional. É o triunfo da tuitada sobre o textão. No plano artístico, representa a rendição da extrema-esquerda à indústria cultural de massas, que tem o seu ornamento na pichagem, a cereja no pudim.
Deve distinguir-se a pobreza, que se resolve com dinheiro, e a miséria, que o dinheiro não resolve. A pobreza nem sequer diz respeito à distribuição dos rendimentos, e mesmo que uma percentagem cada vez menor de pessoas detenha uma percentagem cada vez maior de rendimentos, a pobreza pode ser eliminada se aumentarem as disponibilidades das camadas sociais inferiores. Dito por outras palavras, não há nenhuma incompatibilidade entre a diminuição em percentagem e o aumento em volume, e as reformas capitalistas assentam precisamente neste facto estatístico. Assim, para uma parte crescente da população mundial a pobreza está a ser resolvida com dinheiro, enquanto a miséria não só fica por resolver, mas agrava-se. Defino a miséria como a incapacidade de beneficiar do fim da pobreza. O actual socialismo da miséria, que se opõe ao socialismo da abundância defendido pela esquerda de outros tempos, enaltece idealmente a pobreza como uma espécie de ascetismo, o que significa na realidade mais-valia absoluta, mas defende além disso a miséria, ou seja, a miséria cultural. Um dos seus aspectos é a negação da arte e o elogio da pichagem. Enaltecem a pichagem não porque a carreguem de algum valor artístico, mas precisamente porque lhe apreciam o carácter poluidor e destrutivo.
Outra questão é o elogio da pichagem por pessoas que não são pichadores e que, pelo contrário, apreciam muita coisa que os pichadores são incapazes sequer de saber que existe. Essa é a linhagem do dandismo blasé do século XIX e que ao longo do século XX navegou por águas muito impuras. A sedução da lama, num travesti de pretextos sociais.
Caro João Bernardo,
Lendo o seu comentário me lembrou tristemente duas coisas: 1) Sempre soube que o velho Lenin disse uma vez que “duas coisas a burguesia nos legou e não podemos dispensá-las: bom gosto e boas maneiras” (cito de memória e nunca li se Lenin realmente escreveu isso), 2) uma velha premissa que os velhos revolucionários defendiam – e tão sintetizado por Che Guevara – que deve-se desenvolver o Homem Novo.
Seu comentário percebe-se que o quão a esquerda e extrema-esquerda está impotente diante do mundo.
Tristes tempos
Abraços fraternos…
Jan Cenek,
É evidente que os trabalhadores não se incomodam apenas com as pichações, qualquer um que não vive numa ilha entende isso. Você acha que por causa disso eles desejam enfear mais seus bairros e casas?
Aos que preferem as pichações ao invés de murais, proponho um desafio prático. Visitem a comunidade do Parque do Gato no centro de São Paulo, que recebeu um projeto de muralismo das fachadas de seus prédios há alguns anos, e tentem achar alguém que prefira que os murais sejam substituídos por uma obra de pichadores. Talvez nessa experiência até sintam um pouco do “carinho” popular que os praticantes recebem quando são pegos em flagrante, além de poderem perceber que há sim bons murais na cidade ao contrário do que pensa o senso comum da “malandragem” que louva rabiscos e acha que grafite e muralismo são formas de gentrificação. Ainda sobre isso, é realmente cômico o comentário de Primo Jonas, pois para ele as obras de Jean-Michel Basquiat são parte da barbárie por terem sido absorvidas pelo mercado, enquanto os rabiscos impostos nos portões de trabalhadores precarizados são arte.
Outro comentarista diz que a pichação não pode ser reproduzida por qualquer mané pois exige “técnica”. Peço desculpas por esquecer que as pichações passam pela fiscalização e controle de qualidade dos pichadores, posicionados em cada esquina para averiguar se os indivíduos estão reproduzindo fielmente o estilo do município. Além disso, de fato a técnica de boa parte das pichações é muito elaborada, deve levar anos de treinamento para reproduzir uma obra dessas: https://i.ytimg.com/vi/CjlihmlYpsM/maxresdefault.jpg
No fim das contas a posição de defesa da pichação está ligada ao conceito de “punk democracia” que João Bernardo comenta na quarta parte de A esquerda e as esquerdas. O que propõe os defensores da prática não é nem que as pessoas comuns possam gerir seus próprios bairros e casas, mas que os pichadores e suas gangues sejam encarregados disso. Sem dúvida é um belo projeto de sociedade, espelhado nessas pessoas tão bem-intencionadas.
Como disse, a pichação não é arte, mas uma imposição de poluição visual, e como tal é uma relação de força e dominação. Por isso para superá-la e defender os bairros das pichações jamais bastariam argumentos, somente funcionam soluções de força. Este fato coloca em desvantagem especialmente as trabalhadoras e donas de casa no confronto com marmanjos acostumados a pular muros e brigar nas ruas. É essa covardia que a esquerda está a defender.
Isso já está parecendo um típico debate trosko universitário: se você não está de acordo com a minha linha, você é pequeno-burguês, reformista, faz o jogo da direita, etc, etc, etc. Como se o problema fosse apreciar alguns rabiscos coloridos em prédios abandonados… o problema é essa forma de “debate” agressivo. Será ressentimento por algo?
Vim para incomodar, o pixo de São Paulo, como o conhecemos, tem quase 40 anos, a história do movimento ensina com fartura que quanto mais repressão, mais pixações. Jânio Quadros aprendeu a lição na marra. Ninguém vai “superar” o pixo com “soluções de força”. É a estética da barbárie. Para ser sincero, me espanta que se fale com tanta tranqüilidade “soluções de força” em ambientes progressistas, porque sabemos, ou devíamos saber, que as tais “soluções” começam reprimindo um setor da classe trabalhadora e depois se ampliam para toda a classe. Quer acabar com o pixo, transforme a realidade que o determina. No mais, pixo é arte. Pode ser invasivo, violento, feio… Mas é arte, porque arte é representação. Se muitos não gostam, ponto para o pixo, porque o objetivo é incomodar.
Caio, boa sacada: “Não, não: pixo é outra coisa, não é exatamente arte”. Sim. Porque também é esporte radical (“rapel, parkour, escalada”) e é contestação, se não seria legalizado. Mas o pixo também é arte, porque arte é representação. Além disso, como você bem pontuou, é possível pensar numa arte do pixo: “regras de espaçamento, proporcionalidade, linearidade, obediência aos traços da superfície arquitetônica e caligrafia retilínea quase gótica da técnica praticada na Capital do Pixo.”
João Bernardo, espero que não tenha parecido que fiz defesa estética e/ou política do pixo. Seria elogiar a “miséria cultural”, como você pontuou. Quero ver a juventude discutindo Dom Quixote, Madame Bovary, Dom Casmurro… Luto por isso. O dia que acontecer, o pixo como o conhecemos só existirá nos museus, dentro deles e não no lado de fora dos muros. Importante a sua intervenção para reforçar e lembrar que uma revolução só merece esse nome se a classe trabalhadora herdar e desenvolver as grandes conquistas humanas, como o romance, a música, o cinema e por aí vai. Se a esquerda desistir da grande arte, melhor confessar a derrota e tirar o time de campo. Acredito que divergimos quando digo que o pixo é arte, mas creio que é. É feio, violento, invasivo, expressa a decadência do tempo presente, mas é arte, é a estética da barbárie. O que não significa que a esquerda deva fazer a defesa cega do fenômeno, quis apenas lembrar que ele existe e tem muito a ver com a São Paulo atual. Por fim, escrevi o texto porque sairia no aniversário da cidade, a discussão caminhou para o pixo, mas seria interessante debater também a relação entre o fenômeno e a cidade, esta panela de pressão que pode explodir.
Jan Cenek,
Quando digo soluções de força me refiro ao direito dos trabalhadores recusarem as pichações nas suas casas e confrontarem os pichadores. Não faz nenhum sentido pensar que o direito à recusa seja espantoso, mas a pichação que mesmo reconhecida como “violenta e invasiva”, muitas vezes com confrontos mortais entre pichadores rivais, não. É como disse, por essa lógica deveríamos todos nos submeter à estética dos pichadores nos bairros. Eu me posiciono contra isso e sei que muitos outros também. A esquerda não reconhecendo que determinadas “manifestações estéticas e culturais” são nocivas à classe trabalhadora abre caminho para que a insatisfação popular seja totalmente canalizada para a direita com um viés conservador, e isso sim dá brechas para aumento da repressão sobre todos os trabalhadores. Deixo aqui um exemplo drástico, mas bem real, da covardia e barbárie que certa esquerda defende: https://outline.com/pEukDq
Curto e grosso: quem faz, de onde vem, e quanto custa, a tinta, matéria prima dos pichadores? Como diria João Bernardo… “A arqueologia do saber faz-se olhando para a parte de baixo das páginas, para as notas de rodapé, e também entre as linhas, destacando o que é afirmado no corpo do texto e esquecido nas conclusões”…
Visão equivocada deste texto. O PIXO é expressão artística – muitas vezes sem qualidade – mas que refletem a força criativa da periferia em contraposição ao poder aquisitivo da cidade central. Muito melhor que muitas fachadas de prédios pintadas com uma arte precária, de mau gosto e agressiva ao bom olhar.