Por Leonardo M.

Há alguns dias, o noticiário brasileiro esqueceu a pandemia para cobrir a prisão do deputado federal Daniel Silveira. Em um vídeo publicado em redes sociais no dia 16 de fevereiro, Silveira profere uma série de ofensas chulas ao Supremo Tribunal Federal (STF) e seus ministros, usando uma linguagem completamente incompatível com o decoro do cargo. Na noite da publicação do vídeo, o ministro do STF Alexandre de Moraes decretou a prisão em flagrante do parlamentar por entender que suas declarações se enquadrariam em diversos crimes inafiançáveis, todos eles previstos na polêmica Lei de Segurança Nacional, promulgada em 1983. Trinta e oito anos depois da sua aprovação, a lei ainda vigora e foi usada para decretar a prisão de alguém que defende justamente o autoritarismo daquele período.

Há todo um debate jurídico sobre a legalidade da prisão. Por exemplo, os especialistas divergem sobre o estado de flagrância da conduta de Daniel Silveira. Postar um vídeo na rede mundial de computadores o colocaria em flagrante para os crimes dos quais foi acusado pelo ministro Alexandre de Morares? Qual o limite temporal para que esse flagrante ainda pudesse se configurar? Qualquer vídeo ou material presente na Internet, independentemente da data de sua postagem, poderia configurar um flagrante? Essas questões são relevantes, pois a Constituição autoriza, no caso de parlamentares, a prisão antes da condenação definitiva apenas no caso de flagrante de crime inafiançável.

Todavia, o aspecto mais importante desse imbróglio passou despercebido. Na verdade, foi ignorado por conveniências do momento. A prisão de Daniel Silveira não foi solicitada por qualquer autoridade policial ou pelo Ministério Público, mas sim decretada de ofício no âmbito do Inquérito 4781, o qual foi instaurado em 2019 para averiguação de fake news, ofensas e ameaças aos ministros da Corte. O STF, acuado pela inércia das outras instituições e pelo radicalismo crescente, rendeu-se ao corporativismo mais barato e simplesmente se arrogou as funções de acusador e julgador para apurar fatos nos quais seus membros possuem interesse pessoal. Não é necessário ter um diploma em Direito para perceber o absurdo dessa situação; apenas um senso de justiça minimamente apurado. O direito de ser julgado por um juiz imparcial é uma conquista civilizatória tão elementar que chega a ser um truísmo qualquer tentativa mais elaborada de explicá-la. Ela simplesmente se impõe à razão de forma natural e intuitiva. Mas no Brasil de 2021, a Suprema Corte, a mais alta instância do poder judiciário, age como um distrito policial e, pior, sem que haja qualquer possibilidade de se recorrer a uma instância superior para questionar seus atos.

O Judiciário acusador e a quebra do pacto civilizatório no Brasil

A postura do STF foi recebida com aclamação pública. Foi difícil achar na mídia posicionamentos contrários à sua prisão. Todos os textos e editoriais concordavam sobre a necessidade de impor freios a extremismos, quase todos protagonizados pela extrema-direita. Lamentavelmente, a esquerda se deixou levar pela euforia e bateu palmas. Esse evento é um caso clássico de como emoções e um estado de anomalia política criam tanta confusão e ruído que, em determinado momento, as pessoas não sabem mais sobre o que está de fato em jogo. Que deva haver limites a discursos de ódio e de afronta ao Estado Democrático de Direito ninguém deve discordar. No entanto, as democracias modernas são alicerçadas sobre uma série de pilares que foram construídos ao longo dos séculos e que garantem que elas sejam funcionais e justas. Uma dessas garantias é a de que todos os cidadãos, incluindo as próprias autoridades eleitas pelo povo, estão sujeitas ao império da lei, o que implica a observância de ritos por todos conhecidos e aprovados. E esse pacto social também estabelece que as leis serão aplicadas de forma indistinta e imparcial a todos os cidadãos, sem favorecimentos ou perseguições por força de posicionamentos políticos.

No Brasil, perdemos de vista esse mínimo civilizatório. Não temos confiança de que seremos julgados por autoridades imparciais, de que ritos serão respeitados para aplicar as leis, e que o interesse público prevalecerá. O que realmente preocupa é que esse estado de exceção vem se tornando a regra do funcionamento das instituições brasileiras, principalmente daquela que deveria ser a mais insuspeita de todas, o Judiciário. E, pior, essa degradação institucional, que acontece a olhos vistos, vem sendo aplaudida por expressiva parcela de atores políticos, que enxergam nos casuísmos do Judiciário a chance de prejudicar adversários. O campo progressista aprovou a prisão do deputado Daniel Silveira, ignorando a ameaça em potencial que essa decisão representa para a democracia brasileira e o fato de ter sido, ele mesmo, tantas vezes vítima de decisões judiciais autoritárias. Falta-lhe memória, mas uma breve viagem ao passado pode reavivá-la.

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Na tarde do dia 16 de fevereiro de 2016, o então juiz Sérgio Moro divulgou diálogos entre a então Presidente Dilma e o ex-Presidente Lula em que os dois discutiam os termos da posse desse último como ministro-chefe da Casa Civil. Os áudios, que eram apenas trechos selecionados dentre outras conversas que não foram divulgadas, supostamente davam a entender que Dilma empossaria Lula para protegê-lo das investigações de que era alvo no âmbito da Lava Jato. O Brasil estava mergulhado na época em uma profunda crise econômica e política, e o processo de impedimento da Presidente estava em análise na Câmara dos Deputados. Na palha seca daquela crise, a divulgação dos áudios foi uma faísca que deu causa a uma série de acontecimentos que acabaram por enfraquecer ainda mais a já combalida presidência de Dilma Roussef. Apenas dois dias depois da divulgação dos áudios, Gilmar Mendes suspendeu a nomeação de Lula e, dois meses depois, o processo de impeachment foi votado na Câmara e a Presidente, afastada das funções para esperar o julgamento pelo Senado.

O Judiciário acusador e a quebra do pacto civilizatório no Brasil

Apesar da extrema leniência da mídia e de grande parte da sociedade para os atos questionáveis que Moro vinha praticando já há algum tempo como juiz da Lava Jato, o vazamento dos áudios causou certo incômodo. Já no dia 17 de fevereiro, Moro teve de se explicar sobre a legalidade da interceptação de conversas além do horário que constava da decisão que a autorizava. Além dessa questão, havia o debate sobre a necessidade de divulgar conversas envolvendo uma Chefe de Estado, a qual não era objeto das investigações sob a competência do juiz. Ficava cada vez mais claro que Moro era apenas um político protegido pela toga e, mesmo assim, a grande imprensa chancelou todos os seus atos sem quaisquer questionamentos, fazendo avançar mais rapidamente o golpe que culminou na destituição da Presidente em agosto daquele ano.

Naquele momento, o pacto social já começava a dar sinais de rompimento, uma vez que a regra básica da democracia, de que ritos e leis devem ser respeitados em qualquer situação, davam lugar a uma mentalidade do vale-tudo para prejudicar oponentes. Na época era comum ouvir por toda a parte que era imperativo que Dilma saísse de cena a qualquer custo, mesmo que isso significasse montar um teatro judicial para edulcorar o golpe. Mais ou menos a lógica dos fins justificando os meios que a esquerda assumiu no caso Daniel Silveira, sem se dar conta de que a arbitrariedade que a beneficia hoje pode significar sua própria ruína amanhã.

* * *

Voltamos a 2021. Como relatado, o STF, assumindo o papel de acusador e julgador, manda prender um deputado bolsonarista. A distopia que o Brasil se tornou nos mostra mais uma de suas dimensões, aquela em que é normal que a mais alta Corte do País mande prender, quando lhe aprouver, qualquer cidadão cujas opiniões lhe pareçam ofensivas à sua reputação. E todos aplaudem, inclusive a mesma esquerda que tem sido vítima por anos de uma covarde investida judicial para enfraquecê-la politicamente. No Brasil de hoje, quem tem opinião deve ter medo. O STF está à espreita.

A charge que compõe o texto é de autoria do ilustrador Daniel Kondo. As demais imagens são de autoria do artista plástico Enrico Baj.

6 COMENTÁRIOS

  1. O “pacto civilizatório” sempre esteve quebrado, no lombo do andar de baixo da pirâmide.

  2. Não é mais adequado pensarmos a crise atual enquanto um momento Destituinte, com o Esgotamento do poder constituinte e da “sociedade civil” ?

    *** *** ***

    Acho que o Idris Robinson, a partir desses tópicos,vem fazendo uma reflexão bastante aguda sobre, mais em https://illwill.com/how-it-might-should-be-done

  3. BRUTALIDADE&JARDIM
    Ontem, hoje e amanhã (se houver), sempre & desde sempre, todo ‘pacto civilizatório’ é feito por e entre os ‘mais iguais’.
    Aos sem-reservas, condenados da terra, só tem restado pagar o pa(c)to – desde sempre…

    Humanaesfera, já: https://we.riseup.net/assets/716728/gci-icg.zip.

  4. O Judiciário não é um poder asséptico. Tem interesses próprios e pauta política. O grande problema é que aprendemos a vê-lo como um ente imparcial, acima do bem e do mal. Não é assim. São homens destacados para julgar, não deuses. E devemos pensar em mecanismos de accountability que não retirem deles a independência necessária ao ato de julgar. Eis aí uma equação difícil de resolver.

  5. O Brasil é um país casuístico. Não há regras gerais e uniformes. Há regras para a situação e conveniência política do momento. Sempre foi assim. o STF usa sua autoridade de forma arbitrária para marcar terreno em uma guerra que ele sabe – ou deveria saber – que não pode ganhar. Sábias palavras dos pais fundadores da república norte-americana:

    “The Executive not only dispenses the honors, but holds the sword of the community. The legislature not only commands the purse, but prescribes the rules by which the duties and rights of every citizen are to be regulated. The judiciary, on the contrary, has no influence over either the sword or the purse; no direction either of the strength or of the wealth of the society; and can take no active resolution whatever. It may truly be said to have neither FORCE nor WILL, but merely judgment; and must ultimately depend upon the aid of the executive arm even for the efficacy of its judgments” (Federalista n. 78)

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