Por Fagner Enrique
O coletivo do Passa Palavra, entendendo ser necessário promover um debate o mais amplo e plural possível sobre o restabelecimento dos direitos políticos de Lula e a possibilidade de que volte a disputar a Presidência da República, decidiu pedir a alguns de seus colaboradores frequentes que escrevessem textos sobre o assunto. Esperamos que esses textos e o debate por eles suscitado possam estimular a reflexão em torno dos desafios com que depara a esquerda no momento.
Quando meu artigo Lula… mas de novo? já estava pronto e aguardando publicação, outro artigo publicado neste site provocou uma intensa discussão: trata-se do artigo Lula: um estadista, de Cristiano Fretta. Entrarei nesse debate retomando a conclusão do meu artigo. Nessa conclusão eu afirmava que
a questão é, e sempre será, a de encontrar saídas, explorar as brechas existentes, desarticular o poder, desafiar a exploração, dividir os exploradores, não a nós mesmos, e nesse processo, descobrindo soluções enquanto defrontamos os problemas, ir construindo alternativas, um poder que não é poder, um socialismo que não é miséria, uma cultura que não nega a cultura. […] Ela, a esquerda, tem sido verdadeiramente incapaz de evitar caminhar por uma estrada cheia de armadilhas já conhecidas. Não será a hora de começar a voltar a tentar?
Tentarei definir melhor agora qual é o rumo que acho que nós, anticapitalistas, devemos rumar e quais são as linhas, os limites que devemos traçar. Porém já deixo aqui expressa, e explicitamente, a minha defesa, não das ideias expressas no artigo de Cristiano Fretta — não poderia discordar mais de um artigo — mas da sua publicação pelo Passa Palavra. Vamos lá.
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Lutar daquele jeito a que me referi na conclusão do meu artigo é como andar na corda bamba. Os revolucionários precisam atuar em três frentes: 1) promoção de relações de solidariedade, 2) resistência no âmbito das relações de trabalho e 3) luta, no contexto de amplas e plurais mobilizações de esquerda, contra a burocratização e a apassivação dessas mobilizações, pressionando por sua radicalização.
São lutas sempre muito difíceis, pois é preciso contornar muitos obstáculos para tentar direcioná-las à esquerda, radicalizá-las, desburocratizá-las, impedi-las de burocratizar-se, desvencilhá-las dos tentáculos do Estado e dos mecanismos empresariais de renovação da burguesia e dos gestores, e geralmente somos derrotados. Além disso, os capitalistas tentam sempre explorar divisões internas, colocando ainda mais dificuldades. Enfim, são lutas que requerem muita habilidade.
Ora, para mim, lutar contra a burocratização, a apassivação e pela radicalização das lutas, é precisamente esse o significado do anticapitalismo: não se trata de considerar-se a si mesmo o revolucionário mais revolucionário que os outros e, se os outros não são revolucionários como eu, não me relaciono com eles. Lula não é anticapitalista, os burocratas e gestores petistas não o são, mas não significa que não exerçam influência sobre pessoas que são ou podem vir a ser, isto é, podem romper com o modelo petista de gestão das lutas e do capitalismo.
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O sectarismo é sempre um grande erro, pois a esquerda costuma ser diminuta e a extrema-esquerda ainda mais: lutar na corda bamba significa enfrentar ao mesmo tempo a cooptação das lutas e a conversão voluntária dos militantes mais combativos numa comunidade utópica de revolucionários inúteis. Na corda bamba, estamos sempre sujeitos a ser isolados pelos outros, os dirigentes, os gestores de esquerda, os burocratas, mas isolar-se voluntariamente, e ver no autoisolamento voluntário uma prova de radicalidade, é uma grande burrice.
É um erro tentar criar uma espécie de separatismo entre os autodeclarados anticapitalistas e os outros, que também podem autodeclarar-se como quiserem. Precisamos, pelo contrário, de uma esquerda anticapitalista que saiba equilibrar-se na corda bamba, e que acima de tudo nunca deixe de promover duas coisas: debate e crítica. Não adianta agir, pôr-se em movimento, se o pensamento é estático e monolítico, se ele não é posto em movimento e não é plural, e o pensamento só é posto em movimento e se pluraliza com o debate e a crítica — e não podemos nos esquecer do papel desempenhado aí pela arte.
Interditar, pois, o debate com quem quer debater é equivocado: se a tentativa de debater é sincera e verdadeira, honesta, se não se parte para a desqualificação do outro, mobilizando falsidades e pressuposições, difamando, e se não há uma tentativa de ditar quem tem ou não direito, quem tem ou não legitimidade para falar sobre isto ou aquilo, o debate pode e deve acontecer.
O que vimos neste site há alguns dias, da parte de muitos leitores, foi algo muito diferente.
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Mas aí deparamos com uma questão muito complexa. Qualquer colaboração com o fascismo, à esquerda ou à direita, deve ser prontamente rejeitada, e o fascismo à esquerda manifesta-se em várias frentes, sobretudo no campo do identitarismo mais radical e irracionalista. Há muita gente na esquerda sob influência do identitarismo — e como há! —, mas há também uma porção de pessoas com quem podemos colaborar e debater. Aqui também é preciso buscar um certo equilíbrio, pois as pessoas sofrem influências diversas e, se têm a mente aberta e estão dispostas a novas experiências, vão mudando. Enfim, não sendo este o caso, qualquer colaboração deve ser prontamente rejeitada, pois os fascistas são, entre outras coisas, a negação da crítica, a negação do debate.
O mesmo vale para colaborações com a direita e a extrema-direita, pois surge aí um dos terrenos férteis para o fascismo. E deve-se lutar também contra manifestações internas de fascismo, originais, independentes, surgidas a partir de iniciativas no âmbito da própria esquerda. Ou seja, é preciso combater o desenvolvimento de discursos e práticas estranhos ao nosso campo, no interior desse mesmo campo.
Essa é a linha que devemos traçar, e nesse sentido não há de se falar em interdição ao debate ou à crítica, em censura ou qualquer coisa do tipo, quando recusamos prontamente qualquer relação com essas pessoas, e sim em enfrentamento. Há limites para tudo. Em suma, não podemos criar (nem permitir que se criem) fascismos em nossos espaços de militância, nem dar as mãos e dançar uma valsa com os já fascistas, ou com a direita e a extrema-direita, pois o compasso nesse caso é sempre ditado pelo inimigo.
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Por fim, uma última colocação: o inimigo imediato nem sempre é o mesmo, varia no tempo e no espaço. Hoje não restam dúvidas, o inimigo imediato é Bolsonaro e o fascismo bolsonarista. Isso é mais que evidente. Toda a esquerda — sim, toda ela, observados os limites e ressalvas mencionados acima — deve unir-se contra esse inimigo, e nós (a extrema-esquerda, os anticapitalistas) precisamos, também aí, aprender a andar na corda bamba, sabendo que amanhã o principal inimigo pode ser outro… Mas também pode não ser…
Ilustram este artigo fotografias do equilibrista Philippe Petit e, em destaque, uma cena do filme The Walk (2015), nele inspirado.
Excelente colocação Fagner Enrique. O horizonte anticapitalista é a superação da sociedade de classes, e não deve ser outra coisa menos do que isso. Todavia, eximir-se dos embates políticos onde quer que eles ocorram é abrir mão de disputar as armas com nossos inimigos de classe. A disputa pelo Estado, bastião dos interesses da burguesia, através das eleições burguesas não significa que deixaremos de ser anticapitalistas, mas demonstra sobretudo que combatemos em todas as frentes e não aceitaremos regressos em nossa luta. Hoje, a face da acumulação capitalista no Brasil personifica-se no governo genocida do Bolsonaro, eleito na esteira do golpe de 2016, que, apesar de todas atrocidades, ainda não enfrentou unidade combativa das oposições. Em síntese, na política não existem imaculados, existem sujeitos reais, lutas reais e cheias de contradição, cabe a nós enxergarmos com clareza as determinações objetivas do nosso tempo.
Não creio que a luta passe por uma “disputa pelo Estado […] através das eleições burguesas”, mesmo porque num texto que publiquei neste site, recentemente, afirmei que “a extrema-esquerda não pode ficar voluntariamente presa ao calendário eleitoral, nem à lógica e ao tempo da democracia representativa (aquela que corre o risco de desaparecer), da burocracia, nem muito menos a promessas de eventuais programas de desenvolvimento das esquerdas capitalistas”. E nesse artigo concluí que “ela, a esquerda, tem sido verdadeiramente incapaz de evitar caminhar por uma estrada cheia de armadilhas já conhecidas. Não será a hora de começar a voltar a tentar?” (https://passapalavra.info/2021/04/137227/). Portanto, o que precisamos fazer é buscar novos caminhos, sempre evitando o sectarismo, mas nunca deixando de ser quem somos. Disputas eleitorais, para as lutas dos trabalhadores, não são o começo, nem o fim, nem um meio: são retas paralelas, se não concorrentes.