Por Alan Fernandes
Toda decisão política, desde março do ano passado, não pôde deixar de passar pelo entendimento de que, tendo em vista a existência de uma doença respiratória transmissível pelo ar em curso, com uma pandemia que virou sindemia, as ações devem ser pensadas sempre de modo que reflitamos sobre a possibilidade de transmissão da doença entre nossos camaradas, muitos deles mais suscetíveis às máximas consequências da doença, vindo a internar-se e até morrerem.
É verdade — no entendimento do coronavírus enquanto uma sindemia — que devemos observar principalmente aqueles mais desfavorecidos socialmente, pois são estes que mais se contaminam e mais morrem. Nem por isso os conflitos deixaram de existir e, por conseguinte, pessoas deixaram de se mobilizar. Um exemplo bem latente foram os protestos Black Lives Matter nos EUA, ocasião em que um homem negro é morto pela polícia e manifestações antirracistas duram meses em Minessotta, Seattle e outros estados. Não demorou para que tivéssemos um BLM à brasileira. O episódio envolvendo o assassinato de um homem negro em Porto Alegre, dentro de um hipermercado da rede Carrefour desencadeou inúmeros protestos, alguns deles envolvendo paralisação das atividades nesses estabelecimentos. Os atos, no Brasil e nos EUA, tiveram uma característica incomum se comparada aos mesmos movimentos antiviolência policial ocorridos em outros anos. O uso de máscaras foi esse diferencial, mas não só esse.
Não há quem nesse meio tempo não tenha se colocado a pensar se valeria a pena ir em protestos, que têm entre suas características principais as aglomerações, a interação, e na maioria das vezes o contato. Houve coletivos/indivíduos que procuraram justificar-se da seguinte maneira:
“O ataque contra o povo não vai parar, então as manifestações também não podem. Os capitalistas, estadistas, etc. matam mais que o vírus.”
Parte desses discursos convergiram em certo momento com um outro discurso bem conhecido mas não menos lamentável:
“O vírus é coisa de Playboy. (…) O vírus veio de avião. Pobres não pegam avião. Por conseguinte, nas periferias não adianta nem fazer isolamento social.”
O argumento fatalista, é preciso ressaltar, não só parece ignorar os estudos sobre os impactos da Covid-19 nos bairros mais carentes como também ignora que em abril de 2020 o vírus já era transmitido de forma comunitária. O fatalismo decorre da constatação de que é impossível deixar de morrer de coronavírus, ou que a cultura de contato extremo não deve ser negociada, parte também de um paternalismo com as frações mais empobrecidas da classe trabalhadora.
No final de março começam as primeiras movimentações a nível nacional (porém, sem muito entusiasmo do Governo Federal) para frear a contaminação no país. O que vemos, com o passar do tempo, é uma descredibilização do combate à pandemia bem abertamente apoiado na ideologia da imunidade de rebanho através da contaminação deliberada. Dessa falta de unidade em frear de forma efetiva a transmissão comunitária do vírus, cresceu a pressão de parte do empresariado brasileiro e (não seria diferente) da extrema-direita e trabalhadores com uma orientação bolsonarista para abrir a economia e colocar em prática o tão esperado isolamento vertical.
É preciso distinguir, porém, os protestos fascistas e as manifestações contra violência policial e por condições de vida para sobreviver à pandemia (por exemplo, por auxílio emergencial, redução do custo de vida, etc.). Este primeiro teve no descrédito às autoridades médicas e cientistas seu principal baluarte. Há em todo o território nacional uma minimização do uso de máscaras, mas nesses protestos as máscaras e o distanciamento físico são uma contradição direta com seus objetivos.
Aqueles protestos ocorridos contra o racismo em Porto Alegre, Rio de Janeiro, e em Minessotta, apesar dos mesmos moldes de protestos de rua, aglomerados, incentivaram e muita vezes procuraram controlar o distanciamento físico entre os participantes. Há um espaço, não uma constatação imediata, mas um espaço para atrelar a esses protestos o mesmo objetivo do isolamento social, a preservação da vida. Por isso que venho insistir neste artigo não que devemos nos descuidar deliberadamente, mas pensar em fazer nossas lutas com redução de danos.
Como apurou Victor Hugo, não há como confirmar ou deduzir que os Black Lives Matter teriam resultado no aumento do número de contágios, portanto, de mortes nos estados em que ocorreram os protestos.
Já há movimentação por parte da página “Qual máscara?” no Twitter para fornecer aos manifestantes máscaras N95 (filtro PFF2) para o ato que ocorrerá hoje e potencialmente nos próximos dias contra a chacina no Jacarezinho. Os atos são puxados por movimentos comunitários do bairro do Jacaré. É possível que, se houver diálogo com os movimentos sociais que protagonizaram os atos contra o Carrefour, que se houver autocuidado estabelecido entre nós, seja possível fazer os protestos sem que resulte em consequências de saúde em nossos amigos, colegas, familiares e camaradas de luta. Se esse exercício de conscientização coletiva for exitoso, poderá ser um complemento às ações de solidariedade que já vigoram nas comunidades afetadas pela pandemia e um recado de que não aceitaremos mais mortes em nossos meios, pelo coronavírus e pela polícia.
A fotografia que ilustra este artigo é de Milo Miloezger.
Concordo que há motivos para protestar, mas protestar não se resume a ir para a rua. O texto foca mais numa “redução de danos”: uso da máscara, etc. Mas e quem quer protestar, mas não quer aglomerar na rua? O que fazer? Concordo também, a princípio, que numa manifestação, a depender da sua organização, é possível manter um certo distanciamento entre os manifestantes, etc. Mas as manifestações, sobretudo em momentos de radicalização ou explosões de revolta, tendem a ser imprevisíveis, seja pela ação de provocadores (proto-milícias fascistas…), seja pela porra-louquice dos militantes, seja pela repressão violenta, que tende a gerar o caos; então as chances de, a certa altura da manifestação, os cuidados serem deixados de lado são grandes. Sem contar que a disciplina não é um atributo característico da população brasileira.
Perfeito, Fagner. O texto realmente foi escrito — e foi esta a minha intenção — para se pensar na possibilidade de protestos que nao decorressem de maiores danos à saúde coletiva. Porque esses protestos já estão acontecendo, e tudo indica que voltem a acontecer. Mas é evidente que não deve haver uma primazia das manifestações de rua sobre os militantes. A característica do nosso campo não deve ser a de conservar as tradições de luta, mas de imaginar e criar caminhos, pegar os opressores e exploradores pela impresivibilidade. No caso dos protestos que ocorrem no Rio há aqueles que se arriscam a ir às ruas. Há também aqueles se movimentando para prover assistência às famílias que perderam seus familiares. Há ainda aqueles, como citei no artigo, que se desdobraram para conseguir distribuir máscaras PFF2 para os manifestantes. Há, inclusive, o esforço dos coletivos de favela em pressionar judicialmente contra os responsáveis pela Chacina, aliás, foram estes esforços que levaram o juíz Edson Fachin a determinar a suspensão de operações policiais.
Não acho que é uma tarefa fácil convencer aqueles que já não usam máscaras há um bom tempo que usem-na agora. É uma impotência política grande. Mas devemos tentar. Devemos a uma nova sociedade a tentativa.
A par da pandemia, e os cuidados inerentes, a discussão não deveria ser: Em meio a pandemia como fortalecer a luta de classes, em suas variadas e possíveis modos?
Não espanta que o medo esteja vencendo a esperança”, para citar a famosa atriz global.
Devemos sim nos debruçar sobre qual imaginação é demandada pro presente, quais formas de luta são possíveis, qual criação é necessária para sairmos da inércia digital que assombra a todos?
Como podemos podemos bloquear a estratégia genocida do Estado Brasileiro, como animar e dar energias aos sujeitos que estão carecendo defesas,qual logística e infraestrutura podemos prover para transforma toda indignação em ações?