Calímaco

Por Prosista em Buenos Aires

 

É notório, Aristeu, como te derramas
enquanto tão viva segue tua chama

 

Lixo. Lixo!

Por que perco meu tempo com estas coisas? Estes versos horríveis, como se fossem psicografados durante um ataque de nervos úmidos. De repente me torno lascivo, e é má ideia tomar o pincel e praticar a escritura neste estado de ânimo. Vejamos, a imagem será melhor experimentada nos pensamentos: “uma gota de cera que transborda da grande vela, como da ponta da cabeça do grosso pênis de Aristeu, depois que eu lhe masturbara por longos minutos. Vai descendo a gota de cera pela sua parte inferior, o membro ereto ainda, em seu longo e gostoso caminho até os testículos”. Pronto. Se reduz a isto, não é necessário que eu tente transcendê-lo em versos, não me acalmará as entranhas e não me levará de volta à revisão de todas as obras sobre a Alma que guarda a biblioteca. A Alma… quão fácil ela escapa por meus olhos! Quão fácil meu humor se transtorna quando deveria dedicar-me ao trabalho mais importante de minha vida. Chafurdo nesta languidez indolente, onde até uma simples vela me leva para outros lugares, com outros alguéns, fazendo outro tipo de coisas.

Mas ao menos tenho critérios. Foram famosos os bacanais de Zenódoto nos escritórios centrais, para santificar o templo do conhecimento, dizia ele. Vinte e quatro dias de libações, rituais expiatórios, todas as vestimentas sacramentais, alguns hinos secretos… Eu imagino ali naquele canto as cabras sendo assediadas; aqui, sobre uma grande cama feita de almofadas e tecidos finos, o jogo com as chibatas, que durante o dia açoitavam os escravos e que de noite trocavam de mãos. Os escribas perdidos nas salas de copiado, cada um com uma prostituta que os embebedava mais e mais. Certamente contavam também com músicos e incensos especiais. O culto às formas, o culto aos personagens. Uma orgia épica, sem dúvidas.

Calímaco

Que horror. Nada me desagrada mais do que toda essa pompa, essa mobilização carnavalesca, o excesso de seriedade para o sórdido. O que tenho diante de mim é certamente mais simples e ao mesmo tempo mais intenso: as roupas humildes no chão, seu corpo que começa nos pés delicados e se prolonga por fortes pernas, as coxas volumosas, a cor de sua pele como a casca de uma noz. Seu sexo em repouso perdido entre pelos, o peito liso que se move em uma respiração de descanso, sua cara angelical, a cabeça raspada e uma expressão de leveza. Tenho que aprender seu nome, sua companhia nesta noite me agradou muito. Talvez numa próxima oportunidade eu possa apresentar-lhe a obra de Platão, ou a tragédia ateniense. Mas, que digo? Dessa forma o catálogo vai demorar cem anos em vez de dez. Seus braços são tão belos.

Quantas vezes terei-me perdido por covas recônditas alexandrinas, para deparar-me com todo tipo de seres! Estelionatários, sedutores, sátiros, transviados. Serei um pouco de cada um destes que busquei e com os quais saciei momentaneamente esta sede terrível. Quando cobro consciência, já não me entendo e então retorno ao meu eixo, aos meus manuscritos. Afasto-me destas casas e me concentro na arte e sua altíssima eternidade. Gloriosa, o único caminho para que o homem possa ascender e tocar a substância do mundo! E no entanto, uma simples vela…

ἦ ῥά τιν ̓ ἐς παίδων πάλιν ᾤιχετο;

Calímaco

“Outra vez mais saíste, alma, em busca dos garotos?” Parece que já não faz falta sair: o garoto está acordando. Não, dá a volta sobre as almofadas, nada mais. Deixarei-o aqui até que se desperte. Eu deveria ir aos meus aposentos para descansar e me concentrar, em vez de conjurar imagens em minha cabeça a partir de uma vela e sua gota de cera derretida. Cera de Mantipo, de Eranes, de Demetrio, de Aristeu. Rapazes belos com seus corpos jovens e cheios de fluídos quentes. Ai, sentir seus abraços, tocar seus torsos e misturar nossas pernas, tudo isso me provoca um tal estupor e cega minha visão para o justo e o adequado! Uns olhos que me encaram de longe e que se desviam e tentam me resistir. Tantos deles são meus poemas curtos. Viagens de pouco fôlego: escapam de minhas mãos, como passarinhos delicados. Ou então me aborreço de seus cantos. Os que estão longe sempre mais desejados, difíceis e orgulhosos, e os que não se resistem, logo perco interesse. Poderei algum dia catalogar todas estas estranhas formas de meus impulsos? Não seria tudo mais fácil se apenas um bastara? Um apenas e o mesmo, que conhecesse bem a escritura grega e me ajudasse todas as noites, me agradando com suas mãos e sua boca quando correspondesse, e dedicando-me sua atenção e auxílio para as tarefas na biblioteca. Mas há algo… que me leva aos bairros baixos tantas vezes, com tantos desejos… é como se eu mesmo fosse uma destas grandes velas, que não findam nunca e estão sempre queimando. Quem sabe um dia eu queime tão forte, numa madrugada como esta, que a biblioteca inteira se incendiará. Toda a cultura helena transformada em cinzas, toda a alta poesia, a herança dos filósofos, de Alexandre, as musas dizimadas, defuntas! Hefesto e sua caldeira. Não. Esse é o fogo divino, forja de armas e acontecimentos. Meu fogo é sua antítese, a destruição mundana e tosca, capaz de apagar no humano as poucas coisas que o aproximam da eternidade, do divino. É o único fogo que poderia destruir este edifício e seus segredos. Já não haveria então nenhuma tarefa para mim, nenhum grande objetivo. Os versos, eu os aprenderia para repeti-los nas ruas, enquanto ando pelo mercado. Algum jogo de adivinhação, alguma rima inteligente para seduzir o lindo rapaz que vende tecidos verdes como seus olhos, e que tem um brinco no nariz. “Venha a minha casa, jovem. Vou te ensinar algumas coisas”.

Calímaco

Acabou-se a garrafa, é hora de ir. Um sono profundo me espera em minha cama. Amanhã terei esquecido estes versos, certamente já não terão nenhum significado. Escorrem como areia entre os dedos, rápido como o vinho que desaparece do meu copo. Uma lembrança mais de minha estupidez e superficialidade. Que assim seja! Um pouco de Homero me fará bem para amenizar a mordida dolorida da vergonha: solidez, constância, é a única coisa que preciso para seguir adiante. Eu sirvo a estes homens inigualáveis, às suas memórias. O que são meus vinhos e meus garotos, diante daquilo que é imortal? Que os deuses me ajudem, eu mal posso levantar-me desta cadeira.

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Gustave Doré (1832-1883).

 

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