Por Alfredo Lima

Desde 2018, a partir da greve dos caminhoneiros, o debate sobre os combustíveis volta para o centro das atenções, tanto da esquerda quanto da direita. Foi percebida uma forte adesão do bolsonarismo naquele ano, apesar de o movimento não poder-se reduzir a isso. Diante desse dilema, e também da incerteza da composição real do movimento, vide os inúmeros relatos de lockouts seguidos de articulações mais autônomas, era difícil mensurar se havia um vislumbre de lutas mais solidárias ou se eram processos fadados à fascistização.

Mas nesse cenário de agora, e observando os processos de tentativa de luta no setor, é seguro afirmar que a pauta dos combustíveis foi totalmente capturada pela extrema-direita?

Tanto em 2018 quanto no início deste ano (2021), houve a tentativa por parte de algumas tendências dentro do movimento em convergir pautas econômicas do movimento com intervenções político-ideológicas, mais voltadas para a direita, como foi o caso, em 2018, do pedido por “intervenção militar”, e no início de 2021 “contra os lockdowns”. Não podemos descartar que a soma dessas duas pautas “fim das medidas restritivas” e “redução dos combustíveis”, têm a ver com um insistente discurso do Governo Federal de que a economia só está mal para os trabalhadores porque os adversários políticos do presidente fizeram políticas de isolamento social que restringiram a atividade econômica. Independente da eficácia dessas medidas, a insegurança salarial de muitos — por exemplo, um Auxílio Emergencial insuficiente e que ainda assim sofreu redução — pode ter sido o fator que enquadrou estes no guarda-chuva ideológico da chantagem neoliberal do bolsonarismo.

Mas reduzir estes esforços a uma tendência infalível é rejeitar a intervenção política dentro desses conflitos. Por exemplo, um protesto que envolveu entregadores de aplicativo no Rio de Janeiro terminou pautando o fim do Preço de Paridade de Importação (PPI), que é a política internacional de preços adotada pela Petrobras. Essa pauta não era cogitada antes, foi o esforço de uma articulação com trabalhadores do setor petrolífero, especialmente do Sindipetro-RJ. Na mesma época estava havendo uma mobilização de caminhoneiros de viés mais autônomo, por isso, inclusive, o movimento foi bem mais fraco, tendo sido frustrado pela Polícia Rodoviária Federal em várias rodovias do país, como conta o relato de um companheiro que articulou a greve e preferiu não se identificar:

Eles expulsaram todo mundo que tava no posto “botando pilha” na paralisação. Além de dividir a galera, tem outra questão: se você para no acostamento, a fiscalização pode multar a você e à empresa. Sem poder parar nos postos ou nos acostamentos, e com a pequena quantidade de companheiros que tinha, a única opção era continuar circulando. Ou seja, continuar trabalhando. Isso que dificultou a greve de acontecer. Isso e o fato de muitos terem ficado em casa. Faltou uma mobilização na rua.

A questão do PPI volta a aparecer agora, dessa vez como pauta central dos caminhoneiros, na greve que ocorreu nos dias 25 e 26 de julho, talvez superando o velho verbete de que o problema dos combustíveis se reduz a impostos ou ao clamor populista de “retorno à normalidade”. Além disso, aquele movimento contraditório que víamos de caminhoneiros desviando as críticas da má condução econômica aos governadores e prefeitos teve vida curta dentro do movimento. Temporalmente, uma ou outra tendência acabariam se chocando e a saída mais estratégica para estes prevaleceria para as próximas mobilizações, mas qual delas?

O movimento está em disputa

Jair Bolsonaro tem procurado, talvez para prolongar seu capital político, disputar esses movimentos ligados ao setor logístico e de transportes com motociatas, carreatas e outros tipos de manifestações com as quais consegue dar espaço para trabalhadores mal remunerados desses setores e obter adesão popular como resposta.

Mas além do bolsonarismo, cabe prestar atenção a outras tendências da classe dominante dentro dos movimentos dos trabalhadores.

Vejamos o caso do movimento Combustível Sem Imposto (CSI). O blog, redes sociais e a empresa a ele associada surgem em 2018, logo após a greve dos caminhoneiros, tirando como saldo daquela luta que:

por falta de experiência e conhecimento técnico, os caminhoneiros foram manobrados pelo governo. A falta de apoio de uma liderança mais preparada fez com que o protesto ficasse muito aquém das suas possibilidades de sucesso.[1]

Em muitas fotos, aparecem “apoiando a luta dos caminhoneiros” contra “a corrupção em cima dos combustíveis”. O movimento surge buscando a adesão daqueles que:

concordarem com o fim da estabilidade do funcionalismo público e o corte de gastos do governo em prol de acabar com os impostos nos combustíveis.

O CSI acredita que o problema do preço dos combustíveis está na existência do imposto que é repassado para o consumidor final, e que teria de ser abolido na sua origem. Mas afinal, como querem fazer isso? Simplesmente tirando o sustento de 500 mil trabalhadores do funcionalismo público com seus direitos trabalhistas garantidos.

A fim de amenizar o discurso, para não parecerem visivelmente reacionários, afirmam que não são trabalhadores que serão prejudicados, mas os “burocratas” e “políticos”. Estratégia igual tem sido usada pelo Paulo Guedes, Ministro da Economia de Bolsonaro, além de outras figuras da direita ou do conhecido “centrão” para justificar reformas econômicas, que os afetados não serão os trabalhadores, mas sim os “parasitas”.

Mas em seus panfletos e em todas as suas abordagens eles deixam claro que se trata de um Projeto de Emenda à Constituição (PEC) que demite concursados. Nenhuma linha sequer direcionada às indicações políticas, de onde sairiam os verdadeiros burocratas a quem os trabalhadores devem direcionar suas críticas.

Grupos como o CSI querem tirar o sustento de trabalhadores que na verdade estão no mesmo patamar de trabalhadores de outros ramos, ao contrário do que grupos pautados pelo empresariado querem afirmar.

O ataque a trabalhadores de outros ramos se justifica para eles porque o objetivo não é “garantir direitos” para os trabalhadores comuns, mas aumentar a liberdade econômica dos patrões em colocar sobre o petróleo o preço que bem entendem.

Em uma live [2] no YouTube que ocorreu recentemente com o ex-entregador e influencer Ralf MT, Alexandre, fundador do movimento, se esquiva da pergunta sobre o problema da PPI rebatendo com críticas ao modelo de arrecadação de impostos. Ele jura ter certeza de que “o problema são os impostos”. Com essa narrativa, busca blindar os acionistas privados da Petrobras e as empresas por trás da privatização do setor.

Além disso, o movimento defende de maneira irrestrita o fim do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho. Questionados na live do Ralf MT sobre o problema de isso tornar mais difícil para entregadores de aplicativo recorrerem judicialmente contra a iFood e outras plataformas, eles respondem que “[é preciso] facilitar a vida de quem emprega (…) o fechamento da justiça do trabalho (…) vai dar o direito do trabalhador de trabalhar da forma que ele quiser”. A grande questão é que essa falsa sensação de liberdade econômica de decisão dos trabalhadores já é prometida pela plataforma “nuvem” onde os entregadores não têm vínculo com empresas de Operação Logística, mas o modelo “nuvem” está muito longe de representar uma liberdade para o trabalhador, pois ele ainda é gerido pelo algoritmo dos aplicativos. É aí que mora a perversidade desses ultraliberais: não admitem que o Estado Amplo, as empresas, pode ser tão tirano quanto o próprio Estado de direito.

É visível que, colocados contra a parede, grupos como esse perdem força em contextos de luta por segurança trabalhista e mais direitos. Mas outras razões tornam necessário um embate com organizações dessa magnitude.

Vínculos suspeitos

Desde a greve dos caminhoneiros até aqui, eles têm assumido atividades desde lives para explicar seus pontos de vista e até panfletagem com trabalhadores para envolver categorias de profissionais em suas reivindicações. Na última paralisação de entregadores de aplicativos na Barra eles foram “na intenção de somar” e fazer valer suas pautas junto ao movimento. Registraram nomes de companheiros de luta, gravaram vídeos defendendo o fim dos impostos, e chamaram a “sociedade civil para ir às ruas”.

O problema é que, por exemplo, se eles garantissem, como bem o querem, o fim do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, a quem os entregadores de aplicativo e caminhoneiros podem recorrer em casos de acidente? Não havendo intervenção econômica por parte do Estado, quem garante que os patrões reduzirão o preço dos combustíveis por boa vontade?

O CSI não é um movimento de trabalhadores. É um movimento conectado com a rede de financiamento Venture Capital que promete aprovar a PEC da demissão dos concursados do setor público. Em suas redes sociais eles sugerem “botar um milhão de pessoas na rua contra os impostos”. Afinal, de onde saem os recursos para tal empreitada? Quem são os “financiadores de risco” que se interessam pelo prejuízo dos trabalhadores?

O CSI nada mais é do que um lobby de patrões, com financiamento privado mascarando-se de movimento social. Vejam na paralisação da Barra, eles trouxeram a sua reivindicação para dentro do movimento, recrutaram apoio das principais lideranças, e nada ofereceram de ajuda material para lutar contra o autoritarismo dos aplicativos, e também em fevereiro deste ano nada fizeram com os caminhoneiros autônomos visando uma união coletiva. Mas chamam todos agora para “parar a Avenida Brasil” no dia 4 de agosto visando acabar com os combustíveis demitindo milhares de trabalhadores. Se estivermos certos, esse movimento não conseguiu ainda — como é o caso do bolsonarismo — encabeçar trabalhadores que ativamente se identifiquem com o movimento. Nem por isso vejo menos motivos para denunciar. É preciso identificar os lobos em pele de cordeiro.

Ilustram este artigo fotografias de Nigel Tadyanehondo.

Notas

[1] https://csibr.org/historia-do-csi/
[2] https://www.youtube.com/watch?v=t8WBd668GXc

1 COMENTÁRIO

  1. A CSI usa a pauta dos combustíveis para se inserir entre trabalhadores autônomos ou precarizados do setor de transportes para criar massa para sua pauta fundamentalista ultraliberal em termos ecinômicos.

    Embora entre redução/fim de imposto e fim do PPI haja uma clara questão de classe nessas pautas (a redução de impostos joga contra o conjunto da classe trabalhadora e o fim do PPI joga contra uma fração das classes capitalistas), a questão da pauta para reduzir o preço dos combusfíveos se torna menor diante do avanço que esse grupo de ideologia “anarcocapitalidta” tem realizado no Rio de Janeiro tem realizado entrr entregadores e motoristas de aplicativo. Eles tem cooptado associações e indivíduos dessas categorias, e literalmente os comprando.

    Mostram que um cenário em que esse proletariado é usado como massa de manobra contra outras catehorias de trabalhadores e contra os interesses gerais da classe trabalhadora é ben palpável. E a situação só não é pior porque essa CSI só está estabelecida no Rio se Janeiro.

    Vale lembrar que a enquete operária nunca foi para os italianos que a difunsiram nos anos 50 e 60 um fim em si mesmo. Apreender a subjetividade dos trabalhadores servia para adequar discurso e tática das organizações políticas militantes. Não se tratava num segundo momento de compreender esse proletariado mas também de disputar seus rumos, de estabelecer objetivos políticos e lutar em seu seio contra outras tendências políticas e ideológicas. Se não houver clareza de que em meio ao neofascismo há uma grande chance desse proletariado no fim das contas cair pra direita, e por isso a necessidade de disputa-lo e combater as tendências de direita.

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