Por Jan Cenek

Robert Walser nasceu na Suíça e escreveu em alemão. Foi uma figura misteriosa. Era obcecado por reduções e encurtamentos, uma espécie de micromania, uma atração pela pequeneza que tendia ao desaparecimento. O que o torna sedutor em tempos de vontade de aparecer e de mania de grandeza. Num texto intitulado Solicitação de emprego, Walser registrou: “Sou, para dizê-lo francamente, […] uma pessoa para a qual tudo o que é pequeno e modesto parece belo e adorável, e terrível e pavoroso tudo quanto é grande e assaz desafiador.”

Walser é a antítese da civilização narcisista, vazia e desesperada para aparecer, que se expressa na mania de escrever livros (grafomania), na presença ostensiva em redes sociais, nas selfies fazendo biquinho com os lábios, nos corpos rasurados por tatuagens, nos automóveis com alto-falantes potentes reproduzindo música horrível. Walser assustava-se com a ideia de ter sucesso na vida. “Eu literalmente desapareço sob essa massa de muitos” – registrou no conto A história de Helbling e praticou no dia a dia. Quando comentavam que seus escritos haviam sido elogiados nos jornais ou no rádio, Walser respondia “isso não me interessa!” Moral da história. Se a boiada vai para um lado, melhor seguir na direção oposta. Se a ordem é aparecer, melhor desaparecer. Se todos querem ser reconhecidos, melhor ser esquecido.

O romancista Enrique Vila-Matas definiu Robert Walser como um pioneiro na arte de desaparecer: permaneceu em sanatórios por vontade própria, fugiu da fama, escreveu com letras pequenas, ilegíveis e dispersas em folhas soltas. No romance de Vila-Matas sobre escritores que abandonaram a escrita, intitulado Bartleby e companhia, Walser é presença marcante. Na vida real, o escritor suíço desapareceu em empregos provisórios, voluntariamente em sanatórios, entre palavras pequenas e ilegíveis perdidas em folhas soltas. No limite, abandonou a escrita.

O escritor, Robert Walser, foi aclamado por Franz Kafka, Robert Musil, Walter Benjamin, Elias Canetti, J. M. Coetzee, Enrique Vila-Matas. O homem, Robert Walser, passou boa parte da vida em sanatórios, às vezes por vontade própria. A partir de 1921, em letras minúsculas e ilegíveis, escreveu 526 microgramas. Eram romances, crônicas, poemas e ensaios registrados em cartões, embrulhos e calendários preenchidos até não caber mais micropalavras. Em 1933, parou de escrever. Foi, provavelmente, a conseqüência inescapável da obsessão por cortes, reduções e encurtamentos.

Walser gostava de caminhar. Percorreu longas distâncias a pé. Não é raro escritores recorrerem a caminhadas como parte do ofício, penso, por exemplo, em Eduardo Galeano e Chico Buarque. Mas para Walser caminhar era essencial. Caminhava para viver, e não apenas para escrever. Caminhar era o que lhe garantia um equilíbrio mínimo. Os textos de Walser, especialmente os curtos, parecem a mirada móvel de um andarilho, registram o que só vê quem está de passagem, a pé.

Imagino Walser caminhando por um bosque, seus passos são discretos, sua respiração é tranquila, ele é apenas contemplação, movimento e integração. “Algumas vezes, Robert me chamava a atenção para alguma campina particularmente bela ou para traços de nuvens e palacetes barrocos” – registrou Carl Seelig, que foi escritor, editor, amigo e companheiro de caminhadas, além de ter publicado Passeios com Robert Walser. Juntos percorreram longas distâncias a pé entre 1936 e 1955.

Seelig conta que, em 1945, conversou com o médico-chefe do sanatório, em Herisau, para que Robert Walser fosse transferido para uma ala “mais adequada”. Walser recusou a proposta dizendo que queria viver e desaparecer com o povo. Parecia-lhe o mais adequado.

Tarde de Natal. 1956. Crianças brincando na neve encontram o cadáver de um homem. A polícia é chamada e fotografa o corpo para compor o inquérito. Posteriormente, as fotos foram divulgadas, talvez devido à sensibilidade estética de algum policial. O que é um contrassenso, mas poderia acontecer nos contos de Walser. Em uma das fotos são vistas pegadas na neve que levam até o cadáver. Pegadas do fotógrafo? Da polícia? Das crianças? Do próprio morto? O homem vestia um casaco preto, o braço direito estava junto ao corpo, o braço esquerdo estava esticado e próximo ao chapéu, como se o sujeito tivesse saudado a chegada da morte.

Era Robert Walser. Tinha 78 anos. Parecia feliz. As fotos do escritor morto inspiraram pintores, cineastas e fotógrafos. Foram reproduzidas diversas vezes e de muitas maneiras. O escritor andarilho encerrou a caminhada pela vida registrado e fotografado para a posteridade.

Em mais de um texto, Walser escreveu sobre mortes em caminhadas, inclusive na neve: “Então, um dia, saiu a passear. Mas o vento soprava tão forte que apagou seus olhos. Ele quis acendê-los de novo, mas não tinha fósforos”– registrou no conto Duas histórias singulares sobre a morte. No romance Os irmãos Tanner se lê: “Jaz entre abetos magníficos, verdes, recobertos de neve. […] Um repouso esplêndido esse jazer congelado na neve, sob os galhos dos abetos.” Outro trecho do mesmo romance: “Perto do Natal, ele subiu a ampla encosta da montanha. Foi à tardezinha e fazia muito frio. Um vento cortante assobiava em torno do nariz e das orelhas, vermelhos e inflamados pelo frio gélido.”

Naquela tarde de natal, em 1956, num bosque suíço coberto pela neve, literatura e caminhada se reencontraram na despedida de Robert Walser: remate interessante para uma existência baseada na arte de desaparecer.

2 COMENTÁRIOS

  1. Essa antiética tensão entre o desejo ou compulsão para escrever e a vontade de desaparecer é uma das mais profícuas da literatura. Também é a atomização da vida cotidiana que eterniza Flaubert. Para um escritor é impossível desaparecer por completo porque o primeiro passo para isso é não tornar-se escritor. Kakfa percebeu isso tardiamente e tornou-se imortal. Parece que foi o mesmo destino de Walser.

  2. Não conheço Walser,mas me recordei do James C. Scott e sua A Arte de Não Ser Governado,onde os povos da Zomia fazem-se invisíveis às relações de Estado,”desaparecendo” dos mapas de poder. Tudo a ver? Talvez.

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