Por Passa Palavra
Bedivere: Qual é o balanço das manifestações bolsonaristas de ontem? Tiveram algum efeito imediato? Ou servem agora apenas para preparar o terreno para as eleições do próximo ano, acusando-as de fraudulentas e tentando manter Bolsonaro no poder mesmo depois de ele as ter perdido?
Galahad: Pude observar em grupos de Telegram e WhatsApp que algumas pessoas que estiveram nos protestos (a favor do governo) ficaram descontentes com o ato ter-se reduzido a um comício político, quando muitos estavam esperando efetivamente uma invasão do Supremo Tribunal Federal (STF). O ato mais radical, na verdade, foi o furo do bloqueio da Polícia Militar (PM) protagonizado por caminhoneiros bolsonaristas, que possibilitou a entrada de veículos na esplanada. A possibilidade de um autogolpe imediato, fatal, foi uma histeria que se transformou em fantasia — “Já que não teve golpe, quer dizer que Bolsonaro está fraco”. A hipótese que me parece mais acertada é a de que todo aquele dinheiro investido pelo agronegócio serviu para “criar uma situação” e, na verdade, abrir caminho para uma ofensiva gradual nos próximos dias, uma escalada fascista em etapas. No dia 8 de setembro houve mais de 30 pontos de bloqueio de caminhoneiros em Santa Catarina. Muitos outros ainda no Espirito Santo e Paraná, com pauta única de “impeachment do STF”. Curiosamente (ou não) vaza um áudio do Bolsonaro pedindo ao Tarcísio Gomes de Freitas, ministro da Infraestrutura, que convença os caminhoneiros a deixarem as vias e liberarem o transporte de cargas na Região Sul, pois, apesar da clara lealdade da categoria, tal ato “prejudicaria a economia”. Já pela noite, pairou a confusão: teorias de que o áudio vazado do Bolsonaro seria fake news, teorias de que, apesar da declaração, ele apoiava os caminhoneiros nas ruas mas “não podia dar esse prato cheio para a imprensa”. A aflição foi notada, inclusive, pelos inúmeros vídeos de súplica de Zé Trovão direcionados ao Presidente da República, pedindo que voltasse atrás e apoiasse o movimento. Já em Brasília, onde, aliás, Zé Trovão afirma estar escondido da polícia, o Deputado Federal Otoni de Paula se dirige aos acampados na Esplanada dos Ministérios desmentindo o áudio confirmado por Tarcísio, dizendo que Bolsonaro é um “estrategista” e que os manifestantes não devem se deixar dispersar.
Não se confirmou a previsão de uma forte adesão de entregadores de aplicativo ao protesto, como foi dito em outro artigo. Se por vezes a categoria aderiu ao ato, essa adesão se deu individualmente, e não como uma prévia para o dia 11 de setembro e sequer teve conotação grevista. Por outro lado, como já falado, apesar de as entidades dos caminhoneiros terem rompido com a iniciativa de Bolsonaro aos 45 do segundo tempo, um racha culminou na forte adesão ativa de caminhoneiros autônomos, o que resultou no furo do bloqueio no 7 de setembro e na “greve” do dia seguinte, que se estendeu até o dia 9.
Quanto à disputa palaciana, seguem as notas de repúdio dos demais poderes. Randolfe Rodrigues, senador e vice-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, promete convocar Jair Bolsonaro para depor na Comissão. Existe também expectativa de fazer o Ministro da Defesa, Braga Netto, depor. Além disso, o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) discutiu no próprio dia 7 o eventual pedido de impeachment de Bolsonaro. Outro balanço que faço é que o bolsonarismo retomou a abordagem anti-establishment, o que se percebe repetindo a cartilha elaborada nos Estados Unidos pelos invasores do Capitólio. Ademais, nota-se a similiaridade com a postura de Trump de incitar e acalmar as massas que protestavam no Capitólio, conforme os danos recaíam sobre sua futura candidatura. Se Bolsonaro pretende se agarrar ao centrão para perpetuar-se governando, também é verdade que o protesto cívico lhe deu coragem para retomar o apoio de suas bases mais radicais conforme vai perdendo força dentro do jogo político. Essa oscilação entre institucionalidade versus revolta cívica parece constituir a cartilha da extrema-direita ocidental, tendo aí o seu principal componente fascista.
Lancelot: O anúncio feito antes e repetido durante os pronunciamentos do Bolsonaro de que queria “uma foto”, um registro da sua força política, foi um sinal de que o plano não era “invadir o Capitólio” (mesmo que tenha aparecido um chifrudo cover, verde-amarelo, daquele dos EUA, mas foi em São Paulo). Só o fato de reunir essa gente toda, a maior parte dela provavelmente sem cabresto/organização, podia “dar ruim” na foto, e de fato houve tentativas de avanço sobre prédios em Brasília, quando a polícia usou gás de pimenta. A foto foi tirada, mas, para o desgosto do governo, outras fotos também foram, com outros enquadramentos, mostrando que diversos shows musicais em Brasília foram capazes de reunir mais pessoas que Bolsonaro, mesmo com todo o investimento feito. Me pareceu significativo o anúncio — no pronunciamento da manhã, em Brasília — de convocação do Conselho da República, um gabinete de crise convocado em ocasiões muito particulares. Pela lista falada dos convocados, deu a entender que tinha sido mal assessorado (falou de chamar o STF, que não integra esse conselho, mas deixou de falar de várias outras representações, como a da minoria parlamentar, da oposição, que integra). Mas “mal assessorado”, nesse e em outros casos, não deve ser levado ao pé da letra, porque o que está em jogo é desfazer certas formalidades e, mais que tudo, produzir celeuma — Atentai, o gabinete que decide por intervenções “dentro das quatro linhas da Constituição” vai se reunir!!! Desconfio que entre hoje, dia 8 de setembro, e amanhã, no máximo, vai se definir o significado de ontem no que diz respeito ao futuro do governo. Não compartilho o entendimento de que o bolsonarismo tenha saído enfraquecido de ontem, sobretudo porque o bolsonarismo, cada vez mais, vai sendo mais purificado, vai se radicalizando e descolando mais e mais de agendas como o combate a corrupção — a corrupção é tudo aquilo que está à esquerda do mito, o governador que não deixou o povo avançar sobre o STF, que mandou jogar bomba nos bolsonaristas, é corrupto, comunista, traidor, precisa ser eliminado. Atos menores podem até facilitar o trabalho de organização progressiva desse campo. Mesmo assim, acho que a gente pode e deve separar um pouco o governo e o bolsonarismo. O João Cezar de Castro Rocha diz que o sucesso do bolsonarismo tende a significar o fracasso do governo, e eu acho que ele tem razão. Só que, nesse caso, o fracasso do governo pode significar que o governo se torne insustentável “dentro das quatro linhas da Constituição”, pode até ser um recuo antecedendo um assalto. Imaginem essa força toda na oposição? Não sei se Bolsonaro chega como presidente constitucional até às eleições do ano que vem, é muito malabarismo e a eleição não será só dele. Mesmo o empresariado vai ficando cada vez mais marcado. O Jornal Nacional ontem, nos seus 45 minutos de edição, usou cerca de 35 minutos para bater no governo e nos atos bolsonaristas. Acho que é por aí.
Percival: Penso o seguinte:
1) A avaliação de que os atos do dia 7 “floparam” é furada. Em primeiro lugar, porque o número estimado de pessoas atende perfeitamente a regra “10 para 1”, ou seja, de mobilizar 10 pessoas para que 1 compareça. Sites e personalidades do bolsonarismo falaram em “1 milhão de pessoas”, “2 milhões de pessoas” etc. em São Paulo, e há estimativas de que, lá, tenham aparecido entre 125 mil a 250 mil pessoas. Se é assim a regra “10 para 1” continua valendo.
2) Quem sustenta a narrativa de que os atos “floparam” é o Partido dos Trabalhadores (PT). Não a oposição como um todo, mas o PT em particular. Influenciadores de médio porte sustentam essa narrativa, seja em Brasília, seja em São Paulo. No Rio de Janeiro, entretanto, essa avaliação parece ter menos força.
3) Nenhum dos maiores veículos de comunicação comprou a tese petista do “#flopou”. A hashtag subiu bastante no Twitter, mas foi só isso. A Globo, por exemplo, que é abertamente oposicionista a Bolsonaro (não ao governo, mas a Bolsonaro), contabilizou detalhadamente ter havido mais protestos bolsonaristas que antibolsonaristas pelo país. Além disso, analisando semioticamente as imagens veiculadas, enquanto as manifestações bolsonaristas eram enquadradas de cima, usando helicópteros ou drones para mostrar o tamanho gigantesco das manifestações bolsonaristas, o tradicional Grito dos Excluídos era filmado de baixo ou de dentro, passando sempre a impressão de ser menor. E os atos do Grito dos Excluídos mantiveram seu público de sempre, não se registrou nenhum “surto” de participação como uma espécie de contraposição aos atos bolsonaristas.
4) A “convocatória” do Conselho da República feita por Bolsonaro não existe. Há todo um procedimento burocrático-formal para que isso aconteça, e nenhuma das autoridades que deve ser convocada para o Conselho afirmou ter recebido qualquer convite. A meu ver, Bolsonaro tirou essa “convocatória” da cartola, ali mesmo, enquanto discursava. Ele já fez isso outras vezes, não esqueçam (p. ex., a “nomeação” de Eduardo Bolsonaro para embaixador do Brasil nos EUA): o chefe improvisa, e os seguidores transformam o improviso em coerência.
5) A ameaça de convocação do Conselho da República é inócua. O Conselho tem papel meramente consultivo, não deliberativo. Da forma como Bolsonaro o invocou, ele parecia ter alguma competência funcional maior que a dele, enquanto presidente da república — mas não tem.
6) Com os atos de ontem, Bolsonaro mexeu mais algumas peças na disputa contra certos atores de dentro do governo. (Lembrem-se: “governo” não é só o presidente, “governo” não são só os ministros. “Governo” é também o Judiciário, “governo” é também o Legislativo.) A disputa entre Bolsonaro e Alexandre de Moraes é disputa de um fascista populista contra um fascista burocrata. A disputa entre Bolsonaro e os ministros Barroso e Fux é a disputa entre um fascista populista e dois “liberais clássicos”, propensos ao conservadorismo. É isso o que está acontecendo: o burocrata e os conservadores querem conter o populista dentro das “regras do jogo” caras aos burocratas e aos conservadores.
7) No campo institucional, Bolsonaro está acuado. Muito acuado. Seriamente acuado. O PSDB, assim como outros partidos da direita moderada, já discutem abertamente o impedimento [impeachment] dele. Vejo muitos veículos de imprensa elogiando o papel “conciliador” de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Mas o presidente do STF, Luiz Fux, já recusou alguns convites para eventos institucionais junto com Bolsonaro, e chegou a cancelar reuniões depois de ameaças do presidente contra membros do tribunal. Agora que Bolsonaro chamou Alexandre de Moraes de “canalha”, publicamente, e ameaçou não cumprir mais suas decisões, é provável que essa ruptura com o STF se intensifique.
9) Isso me lembrou outra coisa. A oposição vive agora, contra Bolsonaro, uma situação típica daqueles momentos em que todos sabem que há algo de errado, mas ninguém tem provas cabais. Querem tirar o homem da presidência, mas falta-lhes a arma fumegante, a prova inequívoca de um crime de responsabilidade capaz de justificar um pedido robusto de impedimento. Querem uma prova que obrigue o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, a sentir-se emparedado e a dar encaminhamento ao pedido (pois há centenas de outros em sua gaveta). Olhando a questão por um viés estritamente jurídico, essa prova ainda não existe. Os fatos avolumam-se contra Bolsonaro, mas prova inequívoca de crime de responsabilidade, essa ainda não existe. Há ameaças, há bravatas, mas não há prova cabal. Ameaçar descumprir ordem de um juiz, sendo que a ordem ainda não existe e a ameaça refere-se a uma possibilidade, é diferente de descumprir uma ordem concreta, assinada por um juiz dentro de um processo válido. Essa desobediência concreta, sim, seria a prova inafastável de um crime de responsabilidade. Enquanto essa prova, ou qualquer outra semelhante, não acontecer, a oposição parece ter se acostumado ao papel de promover o desgaste público da imagem de Bolsonaro, e com a escalada de declarações autoritárias.
10) Fora do campo institucional, apesar de as pesquisas apontarem sucessiva queda de popularidade de Bolsonaro, não se pode esquecer que a força do bolsonarismo não está na normalidade, mas na agitação. Se perguntado no dia a dia, é evidente quem um simpatizante do bolsonarismo dirá que avalia mal o governo. Se, entretanto, um governo com cujos valores comunga for ameaçado, este simpatizante deixará as críticas de lado e apoiará o governo. Observem, neste sentido, como as sondagens de opinião têm-se concentrado na avaliação do governo, e não perguntam diretamente se as pessoas concordam com o impedimento de Bolsonaro.
11) Na imprensa, há um nível sem precedentes de pressão externa contra Bolsonaro. Mesmo assim, mesmo naquele que talvez tenha sido o momento mais tenso de todo o governo Bolsonaro, é uma tensão “democrática”, “republicana”, que afirma sem afirmar, que condena sem condenar, que grita a própria impotência. Se levarmos apenas em conta as crises dos governos Collor e Dilma, sabemos que a imprensa derruba governos quando quer. Mas, quanto ao governo Bolsonaro, setores significativos da imprensa “querem, mas não querem” derrubá-lo. E os que “querem, realmente”, derrubá-lo, são impotentes.
12) É claro que a situação toda dá a oportunidade para aparecerem inúmeras teorias da conspiração. Vejam essa, do jornalista e historiador Fernando Horta, para quem teria havido uma tentativa de golpe entre 6 e 7 de setembro, frustrada pela ação decidida de Luiz Fux.
13) O mais interessante, a meu ver, é como toda essa situação evidencia que “as instituições estão funcionando”, e como poderão sair muito mais fortalecidas quando Bolsonaro sair do governo. Todos, de um lado e do outro, são “a favor da democracia”. Todos, de um lado e do outro, “defendem a Constituição”. De um lado e do outro, o discurso é o mesmo, os argumentos são os mesmos, a retórica é a mesma. A diferença está no que é o conteúdo da “democracia” para uns e para outros. Bolsonaro quer dar um golpe de Estado, todas as falas dele convergem, semanticamente, no sentido de que ele está ameaçando dar um golpe sem dar nomes aos bois (afinal, nenhum golpista diz que vai dar golpe) — mas Bolsonaro não pode dizer o que quer em público. Os opositores querem apear Bolsonaro do poder, mas ficam produzindo provas, produzindo provas, produzindo provas, e só. Provas, e, é claro, declarações e manifestos. É como se os dois lados fossem absolutamente impotentes um contra o outro, mas vivessem um estranho tipo de disputa para ver “quem fala mais grosso”. Podem apostar que, se o governo Bolsonaro terminar pelas vias democráticas (impedimento ou derrota eleitoral), TODOS os analistas políticos vão falar que “as instituições democráticas foram testadas até seu limite, mas sobreviveram”.
14) Antes e depois dos atos, entretanto, a vida segue, o gás está mais caro a cada dia, a inflação cresce num ritmo impressionante, o desemprego idem — mas reina uma impressionante sensação de “fazer o quê?”. Fora dos meios militantes, na feira, nos mercados, nas filas… a sensação é a mesma. “Sim, o cara é maluco, mas fazer o quê?”. É como se as pessoas estivessem cansadas. Melhor: exaustas. Não conseguem ter forças sequer para a imaginação política, fundamento de qualquer ação. Quem sai para falar da carestia pela rua, só ouve que está tudo mal, mas não se ouve uma voz dizendo que faria alguma coisa, se pudesse. Nem essa imaginação, nem essa fantasia, nem isso restou. Imaginem uma situação política em que até a imaginação das pessoas está cansada: é esse o nível em que estamos. Se o fascismo é a nação em cólera, é preciso muito cuidado quando os coléricos encontrarem os exaustos.
Tristan: Eu achei os protestos bastante significativos, embora não fossem aquilo que Bolsonaro e os bolsonaristas esperavam.
A meu ver, há no momento diversos focos de resistência ao golpismo de Bolsonaro e/ou à parcela mais extremista do bolsonarismo, tanto em instituições do Estado quanto no meio empresarial.
Para além das recentes medidas decretadas pelo Judiciário, como (1) a desmonetização de canais bolsonaristas e (2) a decretação da prisão de Roberto Jefferson e outras figuras menos importantes, temos também (3) pronunciamentos do grande capital em defesa da democracia e do atual sistema eleitoral, (4) a preocupação das Forças Armadas com a possibilidade de episódios de violência no 7 de setembro, inclusive trocando informações com as autoridades de segurança pública dos estados para avaliações periódicas e mantendo um contingente de prontidão para eventual intervenção no 7 de setembro, (5) a determinação de governadores para que a inteligência [serviços de informação] das polícias civis monitore policiais militares bolsonaristas, além das (6) pressões, da fiscalização e de iniciativas próprias de monitoramento exercidos pelo Ministério Público em diversos estados para coibir a adesão de policiais militares a uma eventual insurreição.
Ao que parece, o Estado está “funcionando” para impor limites ao bolsonarismo. O motim de policiais militares no Ceará, o episódio do policial militar surtado em Salvador e acontecimentos semelhantes parecem ter soado o alarme, fazendo com que autoridades civis e militares tomassem providências e se preparassem para impedir ou controlar episódios semelhantes, monitorando e neutralizando ameaças.
O problema é que essas iniciativas mais contundentes são de instituições que compõem o sistema de justiça e o braço armado do Estado.
A CPI da Covid me parece estar funcionando muito mais como uma tentativa de (1) reunir um conjunto de provas e indícios suficientemente vasto para constranger Arthur Lira a receber uma das inúmeras denúncias contra Bolsonaro e instaurar um processo de impeachment (resultado menos provável) ou (2) reunir um conjunto de provas e indícios suficientemente vasto para constranger/convencer a parcela da população que votou em Bolsonaro em 2018 mas não faz parte do núcleo duro de apoiadores mais fanáticos do presidente, impedindo que ela apoie Bolsonaro novamente em 2022 (resultado mais provável). O resultado 1 me parece menos provável porque (1) os parlamentares que dão sustentação política ao presidente no momento não são facilmente “constrangíveis”, afinal para cumprirem o papel que cumprem um dos prerrequisitos essenciais é não ter vergonha na cara, e (2) porque existe uma convergência de interesses entre esses parlamentares e o governo (a discussão em torno do Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas é um exemplo). Substituir Bolsonaro por Mourão significaria perder o apoio da base bolsonarista, prejudicando a implementação dessa agenda comum, e criaria ainda mais instabilidade, pois Bolsonaro usaria o seu afastamento (o impeachment dura meses) para inflamar ainda mais essa base. Nesse sentido, discordo de Percival no ponto 9: não faltam pareceres jurídicos indicando uma série de crimes de responsabilidade já cometidos pelo presidente. Ainda não houve impeachment porque nenhum dos presidentes da Câmara dos Deputados até agora quis — um por julgar que não havia clima para um impeachment e por prezar pela manutenção da estabilidade política, tendo em vista a aprovação das reformas econômicas prometidas por Guedes, e o outro pelos motivos expostos acima — e também porque a instauração do impeachment seria derrubada no plenário.
Por essas razões, a menos que a esquerda e o proletariado entrem em cena de maneira mais incisiva (e no caso deste último, claro, contra o presidente), as últimas linhas de defesa do regime democrático no Brasil, capazes de impedir um golpe ou que Bolsonaro tenha sucesso onde Trump falhou, me parecem ser o sistema de justiça e o braço armado do Estado, ambos recorrendo a um modus operandi que já conceituamos no passado como “estado de exceção dirigido”, o que deve nos deixar (muito) preocupados.
Percival: Tristan, impedimento é processo político. Quem processa e julga é o Congresso, e na atual legislatura a base bolsonarista é “raiz”. A situação é bem diferente, por exemplo, da de Dilma em 2014, porque lá havia base para alguma governabilidade, mas a base era de conveniências, não era uma base “raiz” como agora. Se olharmos para a gaveta de Eduardo Cunha entre 2014 e 2016, a quantidade de pedidos de impedimento contra Dilma era impressionante. Maior que a de pedidos de impedimento contra Lula, maior que aqueles apresentados contra Fernando Henrique Cardoso (FHC) … Por isso Eduardo Cunha segurou tudo. Claro, ele quis vender caro o apoio a Dilma, usando os pedidos engavetados como moeda. Mas a fala dele quanto ao pedido de ele finalmente encaminhou foi reveladora: ele precisava de um pedido que reunisse as condições “técnicas” para levar o caso adiante.
Daí o que falei sobre impotência, sobre cavar provas inquestionáveis e sobre desgastar Bolsonaro. Sem a “arma fumegante”, sem uma prova flagrante e inequívoca para esfregar todos os dias na cara de Bolsonaro por meio da imprensa e das redes sociais, a oposição está de mãos atadas contra a maioria governista no Congreso (ou seja, bolsonarismo “raiz” + “Centrão” + compagnons de route). Todas as provas usadas até o momento são circunstanciais, indiretas, elusivas, frágeis. Basta comparar com o discurso de Trump pouco antes da invasão do Capitólio, e com os resultados no processo de impedimento movido contra ele: só faltou a Trump dizer “invadam!”, e mesmo assim não houve condenação. É disso que estou falando, é a isso que me referi, não aos pareceres e pedidos de impedimento. Certamente são bons e bem fundamentados, mas nenhum deles tem a “arma fumegante”. Levando em conta, também, que no que diz respeito à produção de factoides, versões, alternative facts e cizânia o bolsonarismo é mestre; ou a “arma fumegante” tem esse grau de flagrância ou os meses de duração de um impedimento seriam o tempo necessário para virar o jogo.
No mais, estamos de acordo. Penso, também, que sem a “arma fumegante” não há quórum para impedimento, e que a alternativa mais plausível para a oposição é “torrar” Bolsonaro até 2022 e tentar conter a influência dele sobre o braço armado do Estado. O problema, novamente, está fora: que dizer desse cansaço generalizado, dessa exaustão até mesmo da imaginação política, que encontro onde quer que vá? Penso que isso talvez gere um “efeito Angela Merkel ao contrário”. Não são poucos os analistas que explicam a longevidade política de Angela Merkel pelo fato de que ela construiu para si própria uma imagem de ponderação e capacidade administrativa, então os eleitores alemães, e também o parlamento, dão a ela seu apoio, porque “já que está aí, deixa, mal não vai fazer”. O “efeito Angela Merkel ao contrário” parte da imagem de que Bolsonaro é maluco, mas que tanto faz, também já deu merda com a esquerda no governo, então, como diz o povo, “vocês que são brancos, que se entendam”. Se com Merkel a inércia é pelo hábito, com Bolsonaro a inércia é pelo extremo desgaste político vivido pelas pessoas nos últimos sete anos, pelo menos. Isso e a pandemia, claro. Antes que me esqueça: a treta de Bolsonaro com Luiz Roberto Barroso e Alexandre de Moraes também tem outro elemento importante. Barroso é o atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE); Moraes, pelas regras de rodízio, será presidente do TSE nas eleições de 2022. Some-se a isso o fato de presidir os inquéritos mais potencialmente danosos contra Bolsonaro, e tem-se um prato cheio.
Lionel: A ideia de que o 7 de setembro fracassou totalmente é um exagero, como também o é a tese de sucesso. Mais importante do que olhar para o dia do ato, é olhar para o dia 8. O PSDB se move uma casa distante do governo, mas não declara o apoio ao impedimento, porque fez as contas e ainda não acha que seria interessante lançar esse movimento. Eu acredito que esperam o próximo ato ou ações de outros grupos políticos. A primeira nota conjunta do Democratas (DEM) e Partido Social Liberal (PSL) critica Bolsonaro no dia 8 de setembro. Com essas informações, concluo que Bolsonaro fez uma aposta grande, mas perdeu, não tudo, mas boa parte do seu apoio, não porque esses grupos ejam confiáveis e acreditem na democracia, mas porque viram que a força que Bolsonaro diz ter não é bem assim como ele fala.
Bohort: 1) As manifestações foram fortemente financiadas pela fração do agronegócio mais interessada na expansão de seus domínios sobre terras indígenas e quilombolas que estão em disputa. A permanência dos manifestantes em Brasília e o bloqueio da Esplanada dos Ministérios estão sendo feitos com caminhões e recursos financeiros de grupos econômicos ligados a esta fração do agronegócio. E na quarta-feira, dia 9 de setembro, é retomado o julgamento do Marco Temporal, o que indica não ser uma coincidência o bloqueio da Esplanada nesse momento, ainda mais com a permanência dos indígenas em Brasília, em um acampamento que chegou a reunir seis mil pessoas e agora permanece mobilizado para a Marcha das Mulheres Indígenas. A manutenção da mobilização bolsonarista serve também para pressionar o STF nesse julgamento.
2) Outro ponto é que nessa equação deve entrar o que vem sendo chamado de interesses do Partido Militar. São mais de seis mil cargos fora do Ministério da Defesa que estão ocupados por militares, cargos que deveriam ser ocupados por civis. Há muitos oficiais de altas patentes em empresas estatais — sendo que um está a receber mensalmente R$ 260.000,00 na presidência da Petrobrás —, houve uma reforma da previdência generosa para os oficiais, foi estourado o teto de remuneração para os mesmos e há notícias de que muitos generais (e também pensionistas) passaram a receber gratificações referentes ao cargo de marechal, mesmo não sendo marechais, já que a patente é dada apenas aos que participaram de guerras. Os militares que ocupam o governo, e que manobraram para essas mudanças na remuneração e previdência, são os que experimentaram de certa forma a administração direta de alguns territórios, seja no Haiti, seja no Rio de Janeiro, durante as ocupações de finais da década 2000 ou no período de intervenção ocorrida no governo Temer, o que para eles é garantia de deterem uma expertise em administração. É também uma fração dos gestores capitalistas, das alas mais autoritárias, a lutar para garantir o controle do aparelho de Estado e, com isso, abocanhar seu naco na distribuição da mais-valia e na condução de que parece ser um projeto de país, mesmo que miserável. E retirá-los do controle não será uma tarefa fácil para os partidos civis, situação que provavelmente é levada em conta na não derrubada de Bolsonaro no momento, mesmo com o saldo de 600 mil mortes pela Covid-19, inflação em crescimento, falta de investimento externo e interno e todas as mazelas pelas quais vem passando a população trabalhadora do país.
A fotografia de destaque e a segunda fotografia que ilustra o texto são de Fernando Madeira, a primeira fotografia do texto é de Ricardo Medeiros, mas não conseguimos identificar o autor da última.
Percival,
Não dá pra fazer análise de disputa parlamentar, cheio de raposa, achando que existe questão “técnica” em jogo, e levar a fala do tipo-ideal de deputado brasileiro, Eduardo Cunha, como se fosse sincera e não simplesmente uma justificativa de ter aberto impeachment naquele momento e não antes. Eduardo Cunha nunca precisou de nada técnico… até porque do ponto de vista jurídico o impeachment de Dilma foi absurdo. Ninguém precisa de nada técnico para abrir impeachment. A questão é puramente política e de interesses. E se isso não ficou claro no impeachment da Dilma, não há como ficar mais claro.
Gostei muito da avaliação do Ruda Ricci no canal do youtube no DCM no próprio dia 7 de setembro. Como ele disse, não dá pra ficar usando a palavra ‘golpe’ a toda hora… tem que seguir o conceito manual básico de política. E acrescentou, golpe já houve, em 2016…
A disputa é interna à burguesia que deu o golpe. A extrema-direita tomou a frente, se elegeu, e agora uma parte da burguesia cujo principal porta-voz é a Globo (e que engloba a maioria dos Ministros do STF) tentam de alguma forma fazer um ajuste fino…
Cansei de falar por aqui a máxima de que golpe se vê quando começa e não se sabe como termina…
Até o cavaleiro negro já deu as caras, direto de Monty Python. Basta falar “impeachment de Dilma” junto com “golpe” que ele vem com a “linha correta”. Parece o tempo que Lobão tinha bots no Twitter pra responder xingamento: bastava xingar Lobão e a resposta vinha em até 30 segundos. O trauma do impeachment nos petistas é mesmo pesado. Bora pra frente, meu povo!
Matter of Britain (ou cego pelo ressentimento com o PT),
Bolsonaro busca Temer de avião. Temer redige a “nota de pacificação” do Bolsonaro. O simbolismo é quase obsceno.
O teu problema com o PT você resolve no psicanalista. Análise política que sirva pra algo não é rixa de clube. Então é isso: PT foi interditado em 2016, continuou em 2018… Viram a possibilidade de implantar um governo ultraliberal basicamente sem contradições. Fizeram. Para tanto despertaram e incentivaram forças que fizeram girar a roda do fascismo. Brigas internas na burguesia e entre burocracias do Estado é o que vemos hoje. Isso em parte fez reabilitarem Lula como candidato e aparentemente desinterditarem o PT.
Para fazer uma analogia, é como se estivesse havendo agora uma disputa entre aqueles que querem o AI-5 e aqueles que lutam contra porque vêem que nesse caso eles perderão poder (Globo, Ministro do STF, parte dos políticos). Evidentemente a esquerda acaba sendo linha auxiliar daqueles que são contra o AI-5. Mas a disputa se dá dentro de um golpe que já foi dado.
No Mastodon o 7 de Setembro é a catarse Descentralizada
É muito difundinda a tese do “golpe de Bolsonaro”. Mas e aí, ele tem a força necessária para fazê-lo? Me parece que não. Os militares vão bem, estão fazendo a festa nos altos cargos e mesmo com a queda do presidente ainda ficam confortáveis, afinal quem será ousará peitá-los? Não sei se o grande capital estaria disposto a participar dessa “aventura”. Tem um setor do agronegócio, que como dito financiou a manifestação, aparentemente mobilizado com o presidente. Em tese dar um golpe não é difícil. Basta as autoridades das forças armadas promover uma coletiva de imprensa e decretar o estado de exceção, como aconteceu na Bolívia. (“Basta um soldado e um cabo para fechar o STF”). Sustentar a panacéia posterior que é o maior problema. A meu ver Bolsonaro não tem força para fazer nem a primeira etapa.
O presidente é tão estúpido quanto uma porta, se mostra inepto para fazer o jogo da “grande política”. Representa a essência do baixo clero. Precisa da mediação daqueles que tem a manha: aos prantos no banheiro clama pela ajuda de uma velha raposa para tomar dicas. Meteu o louco e disse que os ataques às instituições foi coisa do “calor do momento”. Isso dois dias depois de sua grande manifestação, arquitetada por meses. Não se trata de cálculo estratégico aí, ele só é fraco mesmo.
Basta acompanhar o noticiário internacional e prestar atenção ao que se passa em outros países, por exemplo agora na Guiné-Conacri (https://www.reuters.com/world/africa/west-african-leaders-due-guinea-post-coup-calm-pervades-conakry-2021-09-09/), e sobretudo não ignorar os fatos, para chegar-se à conclusão de que tudo aquilo que se passou no Brasil em 2016 não teve nada a ver com um golpe. Mas, enfim, duvido que este breve comentário vá convencer o Leo Vinicius.
O problema é que a lógica que preside ao raciocínio de Leo Vinicius é a mesma que põe entraves a uma unificação da oposição a Bolsonaro, com foco na defesa da democracia (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/09/eleicao-contamina-reacao-a-bolsonaro-nas-ruas-e-trava-manifestacao-unificada-da-oposicao.shtml). A lógica é: não vou me juntar àqueles que apoiaram o golpe (mesmo que eles estejam agora temendo e dispostos a mobilizar para impedir um golpe). E por quê? Porque o golpe já foi dado e agora é apenas uma disputa entre frações da burguesia. Precisamos é fortalecer o nosso campo.
Com isso os bolsonaristas, unificados em torno de pautas comuns, fazem grandes atos. A oposição, por sua vez, perde-se em mais e mais divisões.
Fagner Henrique,
A direções das organizações de esquerda em geral não veem problema por princípio em fazer ‘frente democrática’ e estar junto com organizações golpistas. Quem tem esse problema em geral são alguns militantes. A tal ‘frente democrática’ não sai por motivos políticos bem diferentes. Ninguém quer entrar numa frente em posição subordinada. Há cálculos políticos na direita e na esquerda que impedem tal frente.
Já passou da hora de superar essa tese de que em 2016 o PT foi vítima de um golpe de Estado. Tem que ser muito cego ou membro da seita petista (declarado ou não) para sustentar isso.
Houve um golpe parlamentar em 2016, uma parlamentada.
Inventaram uma tese jurídica para sustentar um crime de responsabilidade inexistente e apear uma presidente indesejada no establishment político e com índices de popularidade rastejantes.
Obviamente, como se vê pelo resultado, o PT no governo era uma contenção (mesmo que parcial) às políticas ultraliberais que os ricos queriam impor (e impuseram e ainda impõem) a nós todos. O que não significa apoiar o PT. É uma simples constatação.
Nesse sentido, concordo com Leo Vinicius quanto aos motivos para Lira não dar inicio ao impedimento do PR: não se trata de questão técnica. Aliás, eles estão se lixando para técnica jurídica.
Segundo Baltazar, a derrubada da Dilma se explica pelo campo jurídico. Aliás, o campo jurídico constituído (ou seja, pelo aparato estatal estabelecido), e não um novo. Mas o pior é que o pessoal defensor da tese do golpe se perde no personagem que eles criaram.Ai falam em segunda fase do golpe, terceira fase do golpe, ducentésima fase do golpe. Tudo é golpe. E depois vão “defender a democracia” (mas essa não tinha sido derrubada?)… com os golpistas.
A algumas pessoas duas coisas fariam bem: 1)Interpretação de texto e 2) uma leitura de Maquiavel.
Se Paulo Henrique estivesse casando sua filha, seria até aceitável (ainda que um tanto controlador e obsessivo) a preocupação sobre a ficha corrida do pretendente, mas aqui estamos discutindo política, território onde o moralismo fica recluso às seitas políticas irrevogavelmente irrelevantes.
A queda da Dilma explica-se pelo campo político (como disse no meu primeiro comentário). O Governo Dilma perdeu base de apoio no Parlamento e foi apeada com o impedimento – sem bases legais para tanto, já que crime de responsabilidade não houve. Ora, apear do poder uma PR eleita sem observar a legislação chama-se golpe.
Os próprios adversários políticos do PT reconhecem:
(1) https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2018-09-13/psdb-tasso-jereissati.html
(2) https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/ciro-gomes-sobre-impeachment-rasga-constituicao-e-repudia-supremacia-popular-69234/
Os adversários de direita e de centro-direita reconhecem que não havia base jurídica para o impeachment.
Reiterando o que disse, discordando de Percival e concordando com Leo Vinicius: a essa gente (parlamentares) pouco importa o que está disposto na lei; o impedimento de Bolsonaro (a despeito dos crimes de responsabilidade cometidos) não acontece (e não acontecerá) por inexistir vontade política para tanto.
Em meu primeiro comentário alertei para a necessidade de comparar a situação brasileira com a de outros países, mas os defensores da tese do golpe de 2016 parecem incapazes de fazê-lo.
Fosse como dizem ter sido, igualmente poder-se-ia alegar ter havido um golpe na Coreia do Sul, para tirar Park Geun-hye do poder. E por que os ardorosos defensores de Lula não saem também em defesa do pobre Jacob Zuma, que pouco depois de deixar o poder foi também processado e preso por corrupção? A esquerda que protesta contra a Lava Jato e vê na operação uma tenebrosa conspiração dos Estados Unidos para privar los pueblos de latinoamérica de seus amados governantes talvez devesse fazer procissões ao túmulo de Alan García, que encurralado pelas autoridades resolver pôr um fim à própria vida.
Mas não. Preferem ignorar a realidade internacional e abraçar a tese do golpe de 2016 elaborada pelo PT.
Ainda bem que alguma esquerda protesta contra a Lava Jato.
Difícil mesmo é a esquerda que se deixa fotografar com o ex-Juiz Sergio Moro ou uma outra esquerda (que publicou textos neste site) defendendo que a Lava Jato estava a elevar o nível do capitalismo brasileiro aos protocolos anti-corrupção internacionais.
Mas deixando um pouco de lado aqueles cuja monomania pelo PTismo é maior que qualquer coisa, hoje saiu na Folha de Sao Paulo esta coluna assinada por Patricia Campos Mello:
https://outline.com/esznuh
Parece razoável crer que o caminho de Bolsonaro seja esse. Cumprindo a revolta na ordem, de avanços e recuos, Bolsonaro segue dimensionando, reconhecendo e organizando sua base para avançar.
O Presidente declarou suas intenções golpistas e de enfrentamento no 7 de setembro. Como diz Campos Mello: – quem irá evitar essa aventura?
Ou como diz Percival: o que ocorrerá quando os coléricos encontrarem os exaustos?
No link postado acima se lê: “Trump passou meses disseminando dúvidas sobre a integridade do sistema eleitoral, numa espécie de golpe preventivo”. O descrédito em relação às eleições burguesas, capitaneado à direita e à extrema direita, agora virou golpe. Há ainda os que acreditam que o golpe já foi dado (e pelo jeito ninguém ficou sabendo), como aqui, embora seu autor esteja fora do espectro político da esquerda: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/09/07/villa-golpe-esta-deflagrado-se-nao-fosse-o-stf-ja-estariamos-na-ditadura.htm
E tudo isso começou lá em 2016, com o esgarçamento do conceito de golpe, de fascismo, etc., como uma forma de esconder as contradições sociais que levaram à queda daquele governo capitaneado por um partido de esquerda, mas com uma gama de apoiadores (até o próprio Bolsonaro fez parte da base do governo por um tempo). E assim, de delírio em delírio, a esquerda vai galopando.
E aqui está uma definição rápida e sobre golpe de Estado, retirado em uma rápida busca na Wikipedia (sim, Wikipedia):
“Golpe de Estado, também referido internacionalmente como coup d’État (em francês) e Putsch ou Staatsstreich (em alemão), consiste no derrube ilegal, por parte de um órgão do Estado, da ordem constitucional legítima.[1] Os golpes de Estado podem ser violentos ou não, e podem corresponder aos interesses da maioria ou de uma minoria.
O ato do golpe de Estado pode consistir simplesmente na aprovação, por parte de um órgão de soberania, de um diploma que revogue a constituição e que confira todo o poder do Estado a uma só pessoa ou organização.
Tem este nome de golpe porque se caracteriza por uma ruptura institucional repentina, contrariando a normalidade da lei e da ordem e submetendo o controle do Estado (poder político institucionalizado) a pessoas que não haviam sido legalmente designadas (fosse por eleição, hereditariedade ou outro processo de transição legalista).”
Desde o lançamento de sua candidatura em plena AMAN, em 2014 logo após a segunda eleição de Dilma, Bolsonaro é um desengonçado marionete manipulado pelos Generais herdeiros de Sílvio Frota.
Os Generais só reconquistaram protagonismo político por conta de uma Crise de Representação, sendo esta consequência da Crise de Hegemonia dilacerando o Brasil desde Junho de 2013.
A lumpenburguesia manda, mas não comanda. Não consegue viabilizar lideranças políticas próprias. E não o faz por incapacidade ideológica de apresentar seu interesse particular como sendo coletivo.
Em outros termos: nenhum milagre, como após o AI-5, nenhum Plano Real, como com FHC, nenhuma nova classe média, como no Lulismo.
Só lhe resta a ditadura: militar ou neo-fascista.
Nas manifestações de 7-SET ficou claro o alto risco do neo-fascismo para a classe dominante, e mesmo para seus gestores no aparato do Estado.
Movimentos de massa são literalmente incontroláveis ao ganharem dinâmica própria, a não ser com o alto custo político de uma brutal repressão.
Por isto foi preciso convocar os caminhoneiros de volta ao trabalho.
Os seguidores de base da extrema-direita querem o mesmo que nós deveríamos querer. Ou seja: mudar o Brasil.
Os extremos se encontram, mas toda a diferença está no sentido da mudança.
Frente ao cadáver apodrecido da Nova República se impõe a busca de uma solução anti-sistema. Não haverá qualquer saída por dentro da ordem. É preciso mudar tudo.
Frente a esta constatação, uma expressiva parte da população vê a solução vindo através de uma liderança redentora: seja ela Bolsonaro ou Lula.
Mas tanto um quanto o outro são parte do problema, e só irão agravá-lo.
Após a frustração com o recuo programado do “mito”, tão somente em busca de salvo-conduto para si e a prole, a quem seus seguidores irão recorrer?
Abre-se um vácuo. Quem saberá ocupá-lo?
Com certeza nenhuma terceira via, o que a baixa adesão às manifestações do MBL são um indicativo.
O desejo por mudança vive intensamente na maioria dos brasileiros. Ele só pode se materializar em relações sociais através de uma Revolução.
E uma Revolução exige o encontro dos coléricos com os exaustos, para juntos se dirigirem no mesmo sentido da emancipação.
Como agenciar esse fluxo?
É engraçado o Paulo Henrique criticar quem apontou e nomeou o golpe em 2016. Pois foi em geral quem apontou o golpe de 2016 que previu o caminho que se abria com ele, sem surpresa de onde estamos. Até mesmo a profundidade de ataque, nunca antes vistos no país, aos diretos e condições de vida da classe trabalhadora, os desdobramentos óbvios de ascensão de uma direita cada vez mais extrema, uma bagunça no tabuleiro político institucional que não beneficiaria a esquerda num contexto em que a derrubada era operada pela direita, tudo isso era tão óbvio e fora do curso normal dos últimos 30 anos que em si determinavam que se chamasse o esse evento disruptivo com o conceito que existe em política: golpe. Um corte, um desvio de caminho. Golpe também por manual de política como já apontei aqui em comentários a outros textos.
Falta explicar o que nomear golpe de golpe tem a ver com esconder contradições sociais. Muito pelo contrário, aquele golpe explicitou a forma que as contradições de classe estavam tomando no Brasil (mas evidentemente houve um componente de incapacidade política do governo de plantão para bloqueá-lo ou retardá-lo).
Publicação de uma figura universitária conhecida em suas redes sociais:
“Fiz um comentário aí embaixo sobre impunidade da corrupção. Um amigo petista comentou: “resultado do golpe” [de 2016].
É a memória seletiva em ação.
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Golpes são movimento súbitos, violentos, que liberam grande energia, provocam uma ruptura e alteram a correlação de forças em algumas horas ou em poucos dias.
O golpe de 1964, no Brasil, foi chefiado pelo marechal Castelo Branco.
O golpe no Chile foi chefiado pelo general Pinochet.
O golpe na Argentina foi chefiado pelo general Videla.
Todos tinham posições de comando nas respectivas Forças Armadas.
As tentativas de resistência foram violentamente abafadas. No Chile e na Argentina, houve milhares de mortes nos primeiros dias.
Lá como cá, seguiram-se prisões, cassações de direitos políticos e exílio forçado de muita gente.
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O “golpe” de 2016, no Brasil, foi chefiado por Michel Temer, Moreira Franco e Geddel Vieira Lima, políticos bisonhos. Foi executado passo a passo, à luz do dia, seguindo mil e uma formalidades. Durou um ano e meio.
No fim, prevaleceu a continuidade: todos os ministros do novo governo eram ou haviam sido ministros dos governos anteriores.
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Se eu fosse do PT, evitaria falar em golpe para descrever um processo com tais características. Soa desmoralizante.
Afinal, por que o partido não resistiu? Onde estavam as dezenas de milhões de famílias que haviam saído da pobreza? Onde a militância?
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Tamanha facilidade se explica: o ciclo do PT já havia acabado. 70% do povo brasileiro queriam ver Dilma Rousseff pelas costas, e o PT já era um partido anômico. Suas principais lideranças estavam muito ocupadas em enriquecer, como “palestrantes”, como “consultores” de grandes empresas ou sei lá como.
A memória seletiva sepultou tudo isso. O PT foi vítima de um golpe, e ponto final.”