Por Arthur Moura [1]
Mano Brown é sem dúvida o maior nome do rap no Brasil. Temos grandes expoentes do rap, mas Brown guarda certa peculiaridade, muito por conta da sua indiscutível contribuição no âmbito da cultura Hip Hop como integrante dos Racionais MC´s. Pois bem. Discutirei de forma radicalmente crítica neste breve texto (escrito no calor do momento) as concepções e ideias políticas centrais desse conhecido personagem da cultura Hip Hop expostos no seu novo podcast, sobretudo no que diz respeitos aos aspectos conciliatórios propostos pelo mesmo em entrevistas que o rapper denomina “polêmicas” funcionando muito mais como um elemento de marketing do que de esclarecimento de problemas sociais históricos. Sei perfeitamente bem que o público de uma forma geral o tem como um totem ou mito inquestionável, sábio e que seria, portanto, uma heresia apontar determinadas contradições [2]. Para estes, é dispensável a leitura do presente texto. O texto proposto pensa Brown como um sujeito histórico, portanto, passível de contradições inerentes ao seu tempo, sujeito, nesse caso, a análises.
“Quando eu chamei você para conversar… porque eu entendo que jovens igual a você têm que ser ouvidos também mesmo não concordando, né? Não pode ser descartável isso. A gente sabe quantos morrem para chegar a aparecer um Holiday. E querendo ou não é diferenciado. Então as pessoas esperam muito de você também, inclusive nós. Não sei se você percebe que nós estamos no mesmo país, você sabe disso, a gente é brasileiro. A gente não pode ter você como inimigo dos nossos como às vezes parece e nem eu como inimigo dos seus, que também têm que ser os meus. Os seus têm que ser os meus.”
Mano Brown – Podcast Mano a Mano“Sempre haverá pobres e sempre haverá ricos.”
Fernando Holliday
Recentemente Brown lançou o seu podcast no Spotify e convidou uma série de personalidades e figuras públicas para conversar, como Drauzio Varella, Lula, Pastor Henrique Vieira e Karol Conká. Pelo time escolhido podemos razoavelmente prever a natureza dos debates, bastante previsíveis e genéricos eu diria. Na chamada do podcast ele ressalta que muitas vezes são “assuntos polêmicos”. Dessa vez o convidado foi Fernando Holiday, atualmente vereador pelo Partido Novo e vinculado também ao MBL (Movimento Brasil Livre). O que se quer quando se convida um sujeito como Holiday para debater ideias? Quais são as possíveis consequências de tal aproximação e difusão do ideário ultraconservador principalmente para o público do rap? No início da entrevista Brown afirma que “muitas pessoas que eu respeito foram contra eu te chamar, mas eu sou eu”, demonstrando certa autonomia no que diz respeito às suas escolhas ou simplesmente pura ignorância com relação a questões políticas centrais, o que não representa nenhuma novidade entre os chamados “formadores de opinião” (que têm como função muito mais confundir as coisas do que esclarecer). Poderíamos pensar a princípio por que há resistência para que se dê palco a figuras como Holiday, já que há consequências nesse tipo de difusão de ideias reacionárias principalmente para o público do rap. Vamos por parte porque o debate deve ser feito com cautela para que as polêmicas de fato sirvam para alguma coisa, já que o próprio rap e os rappers, consequentemente, são aqueles que mais repudiam polêmicas ou debates mais calorosos. Esses que muitas vezes falam em “polêmicas” guardam nada mais que um cadáver na boca.
Em primeiro lugar quem é Fernando Holiday? Por que há essa aproximação de setores da chamada “esquerda” (se assim podemos classificar o espectro político ao qual se situa Mano Brown e demais setores progressistas) com a direita ultrareacionária (ou simplesmente com o fascismo)? Ou “direita liberal”, como afirma Holiday. Esse fenômeno é bastante comum entre políticos profissionais, sobretudo de partidos políticos de “esquerda” (como PT, PSOL, PCB, PCdoB, etc. — que nada mais são que partidos neorreformistas ou simplesmente liberais) que se aproximam desse espectro de forma recorrente como prática tipicamente oportunista e despolitizante, deixando transparecer uma ideia de civilidade ou democracia que, na verdade, trata-se de estratégia típica dos segmentos atrelados fielmente à democracia burguesa liberal, onde a radicalidade das lutas é vista como um problema e não como possível solução para a busca pela emancipação da classe trabalhadora. Não à toa vimos durante todos esses anos pós-2013 a aproximação de Marcelo Freixo com Janaina Paschoal ou recentemente, em manifestações conjuntas do MBL com PCdoB e PSOL, tudo em nome da famigerada democracia (seja lá o que isso queira dizer). Recentemente percebi esse fenômeno quando vi uma postagem de um rapper do Rio de Janeiro postando um vídeo do Kim Kataguiri. O rapper dizia algo do tipo: “até que fim esse rapaz falou algo que presta”, demonstrando completa ingenuidade política com relação ao integrante do Movimento Brasil Livre, depositando nele suas vãs esperanças. Não preciso dizer que ele não gostou de ser questionado com relação ao seu post. Sentiu-se ofendido e incapaz de debater profundamente determinadas contradições. Enfim! Sinal de que a memória para alguns já se perdeu. Sinal também de que a formação política dos rappers de uma forma geral e do público é permeada por hiatos que produzem aberrações medonhas. Nesse sentido é importante adentrarmos também na teoria política e na História, já que sem ambas ficamos reféns do eterno revisionismo [3] tanto dos reformistas progressistas como dos habilidosos direitistas, ambos capciosos no que diz respeito à defesa dos seus interesses privados.
A apresentação que Holiday faz sobre si não entra nos méritos de quem ele realmente é ou a que(m) ele serve. O MBL (Movimento Brasil Livre) é uma organização criminosa forjada na urgência das lutas de classe no pós-2013 para disputar a consciência dos trabalhadores em prol de um projeto de sociedade ultraconservadora, antidemocrática e cirúrgica contra os movimentos sociais, tendo papel central de criminalizar as lutas sociais, trazendo novamente o espantalho do comunismo como pretexto para suas ações. Foi uma iniciativa patronal financiada pelo grande empresariado com o intuito de tomar as rédeas dos processos sociais e econômicos que perigavam tender para a esquerda, como se isso significasse algum empecilho para o capital, sendo, na verdade, mero pretexto para uma reorganização da economia capitalista por meio de golpe de estado seguramente amparado pelos Estados Unidos. Sabemos historicamente que o que conhecemos por esquerda nunca ameaçou o capital e suas estruturas de poder, mas naquele momento nem mesmo o progressismo poderia ser tolerado, muito por conta da própria natureza da crise do capitalismo decorrente dos idos de 2008 [4].
O MBL produziu todo tipo de deturpações, mentiras e envolveu-se com os setores mais nefastos [5] da política nacional sem demonstrar qualquer arrependimento ou remorso, obviamente. O MBL é bastante categórico com relação às suas convicções. Me lembro a primeira vez que vi a patética figura de Holiday fazendo um discurso como se fosse um velho estadista no Youtube, ultracaricato, agressivo, coisa absolutamente deprimente e estúpida, mas que virou uma espécie de modelo para os demais membros do movimento, sempre com seus discursos virulentos e cheios de ódio, acusando, acusando e acusando… O que Holiday chama de “direita liberal” como uma tentativa inócua de diferenciar-se do reacionarismo de Bolsonaro só existe no campo das ideias, porque na prática esses setores não se diferenciam em absolutamente nada [6].
Holiday surge então nesse caldo juntamente com Renan Santos, Kim Kataguiri e Arthur do Val (Mamãe Falei), utilizando-se sobretudo das redes sociais para cimentar suas ideias e angariar apoiadores. Conseguiram avançar em suas propostas por disporem de estrutura e financiamento, o que só aumentou com o tempo, já que o MBL também desenvolveu formas de financiamento, sendo uma delas (ironicamente ou não) atrelando-se ao Estado burguês. O Estado que o MBL quer cortar é o que resta de um assistencialismo rarefeito que míngua a cada ano como forma de privilegiar os setores privados esgarçando ainda mais as contradições de classe. A natureza do MBL foi, obviamente, ignorada por Brown em sua precária e ignóbil entrevista [7]. O totem inquestionável do rap fortaleceu muito mais o inimigo do que se pensa, quer queira, quer não.
Em 2018 fiz uma entrevista com a historiadora Virgínia Fontes e pedi a ela que falasse um pouco sobre o MBL:
O MBL recebe financiamento direto do exterior. Para entender o MBL a gente têm que voltar para 2013. 2013 é para mim uma expressão das lutas populares em grande escala no país. E é expressão de alguma forma do cansaço com relação a uma política levada pelo PT em que há verbas formidáveis, faraônicas para a Copa do Mundo, para as Olimpíadas, para as grandes empreiteiras, o BNDES financia o capital folgadamente e os serviços públicos, os salários, etc., estão parados. Essa expressão que mostra claramente o descontentamento com o PT e com as possibilidades que o PT poderia ter feito assusta. Assusta a burguesia. Tem que lembrar sempre como começa isso; começa com o movimento do passe livre em São Paulo, com a polícia do Alckmin, se eu não me engano já era o Alckmin, batendo na população e nos jornalistas ela bateu indiscriminadamente em todo mundo e foi contra a violência e contra o aumento da passagem que 2013 se alastra no país. Então, portanto, a origem dele é uma origem de classe, é uma origem popular, eu não tenho nem dúvida disso. Na hora que ela se alastra ela assusta. Assusta a Globo, assusta a mídia, assusta as classes dominantes e assusta internacionalmente. No caso brasileiro essa é uma situação bem complexa. O Brasil tem um papel muito importante no conjunto da América Latina e no capitalismo no cenário internacional. Ele não é um país pequeno.
Sobre as manifestações populares, que aí a gente vai assistir uma tentativa de cavalgada dessas manifestações populares por uma série de movimentos. Isso se chama luta de classes. Toda vez que as lutas populares crescem vai crescer também a reação burguesa, a violência burguesa, etc. Não imaginem que quando aumentam as lutas populares a burguesia fica boazinha e aceita. E a gente vai assistir ali, o quê? O surgimento ou pelo menos o aparecimento de grupos treinados para bater em militantes, que iam com soco inglês. Grupos treinados para dissolver a manifestação por dentro de alguma maneira, parapoliciais; vai assistir um peso enorme da mídia no sentido de tentar pautar as manifestações e alguma das bandeiras que eram bandeiras populares podiam ser torcidas como bandeiras anti-populares. Uma delas foi a bandeira anti-partido e anti-sindicato. É compreensível que os setores populares estivessem com raiva dos partidos, estivessem com raiva dos sindicatos, isso faz sentido. O oportunismo da direita é pegar isso para eliminar as formas de organização especificamente populares. O MBL é uma dessas organizações que vão crescer na sua ação direta financiada, porque tem que ter recursos para isso. O que é muito complexo para os setores populares é razoavelmente fácil para os setores dominantes ou para os seus prepostos. Primeiro que eles não têm medo de ser presos, porque eles são amigos da polícia. Eles têm costas quentes. Dois, eles vão para o enfrentamento e, três, eles pagam quem vai para o enfrentamento. Não são eles que vão. Eles vão terceirizar. Eles se comportam como pequenos capitalistas da luta contra a classe trabalhadora.
O MBL recebe dinheiro empresarial e recebe dinheiro empresarial dos Estados Unidos e de grupos da extrema-direita americana. Eu não chegaria a dizer que recebe dinheiro do governo estadunidense porque eu não tenho provas para isso. Não é impossível que o governo americano dê dinheiro para tudo quanto é tipo de organização de direita. Mas o que eu acho que é fundamental é entender as clivagens políticas. É da extrema-direita americana que vem o dinheiro para esses grupos. Como os irmãos Cook, que têm outras fundações nos Estados Unidos, ou do T-Party, ou dos grupos supremacistas brancos nos Estados Unidos, que de alguma maneira vão favorecer esse tipo de atuação. Não só o MBL, Revoltados Online, Vem pra Rua, são vários grupos que sobem; Olavo de Carvalho já tem uma outra trajetória que é uma trajetória anterior. Ele já vem de antes. Ele vai ser convocado nesse momento como uma espécie de liderança intelectual para estes grupos. Ele é um intelectual orgânico do capital, sem sombra de dúvidas. Mas não quer dizer que ele seja o representante do conjunto dos capitais.
A partir desses brevíssimos apontamos podemos perceber que o MBL representa o que Virgínia denomina “a tropa de choque da burguesia”. O respeito obsequioso de Brown para com Holiday significa, na verdade (e em última instância), uma espécie de submissão ou, em alguns casos, de concordância com o pensamento de Holiday, por mais que se esforce em dizer que tem desacordos com alguns posicionamentos do reacionário vereador, o que nem por isso impossibilita o amigável diálogo entre as partes.
A noção de democracia [8] que Brown defende é genérica e, por que não?, liberal, portanto conservadora. Circunscreve-se tão somente nos marcos do capital, da legislação burguesa e das lutas democráticas dentro dos marcos do capital. Nesse ponto Brown acredita que é possível um diálogo amigável até mesmo com fascistas, onde ele estaria ali apontando erros ou falhas no pensamento de Holiday, com a intenção de disputar a sua consciência e mostrar ao seu público que aquele que era visto como um monstro por setores da esquerda radical é, na verdade, um rapaz confuso e que por ser jovem tem a tendência a mudar as suas convicções. Brown representa uma espécie de figura paternal, compreensível, apesar de ter suas próprias ideias e postura seguramente firmes, o que pode ser somente uma espécie de imagem que ajuda a formatar sua figura mitológica. Isso é o máximo que Brown chega em suas limitadas reflexões, omitindo a essência do problema [9], já que as questões fulcrais são inexistentes no tal bate-papo.
É claro que os debates e as polêmicas muitas vezes apontam para as disputas nas mentalidades. Quando produzimos uma entrevista, música, filme ou artigo, ou quando falamos em público, estamos intencionalmente tensionando as diferentes visões de mundo para que possamos ultrapassar determinados limites, superando um conjunto de contradições na busca pela emancipação social. Mas um dos pontos centrais é que há um limite nessa disputa. Um limite que não pode ser ignorado, pois se assim fizermos denunciamos profundo despreparo e incompetência com relação às dinâmicas das lutas de classe. Não é possível, por exemplo, disputar a consciência de setores convictos, como é o caso dos fascistas. Assim como também não temos a capacidade de convencer a burguesia a abandonar o seu projeto de classe ou as estruturas coercivas, a mudar de lado e ser humana, defendendo o interesse geral. Só pensa assim quem não compreendeu o que significa as cisões e os interesses de classe [10]. O papel da esquerda parlamentar burguesa de se aproximar desses setores é igualmente criminoso, pois deixa transparecer uma série de noções errôneas para a classe trabalhadora, já que essas estruturas de poder são fundamentais nas disputas das mentalidades.
Holiday e os demais integrantes do MBL foram peças fundamentais na retomada de valores fascistas, o que resultou concretamente na eleição fraudulenta de Jair Bolsonaro. O MBL é a base do fascismo hodierno. O teatro produzido por Brown deixa transparecer, na verdade, não a sua convicção e autonomia diante de um problema como esse, mas sim seus próprios interesses e anseios políticos particulares. É como se pensássemos que Janaína Paschoal depois do papo com Marcelo Freixo tenha tido uma luz na sua consciência e passasse a defender valores democráticos e humanitários. Pelo contrário. Ela continua a mesma facínora de sempre. O discurso macio e aparentemente racional de Holiday faz parte da encenação como forma de comover o público, induzindo-os ao erro crasso.
A defesa de uma negritude sem o caráter de classe leva a posições irracionais [11] como a de Mano Brown, onde a politicagem é vendida como algum tipo de alteridade ou até mesmo de afeto. Ao invés do repúdio e combate frontal ao fascismo e ao capital, a amizade e a defesa de interesses comuns, ainda que haja “discordâncias”. Tais discordâncias são pontuais e não representam antagonismo, por isso a necessidade do espetáculo midiático produzido por Brown e Holiday. Isso nos traz novamente a pertinente reflexão de que o rap converteu-se pouco a pouco em instrumento da ordem social estabelecida e não como uma ameaça aos interesses dos setores dominantes, pois a mera articulação com tais setores demonstra cabalmente a impotência do rap e da cultura Hip Hop em oferecer uma alternativa de fato ao projeto conciliatório burguês.
Notas
[1] Graduado em História (UFF) com o TCC Uma Liberdade Chamada Solidão: a formação do rap independente no Rio de Janeiro; mestre em Educação (FFP-UERJ) com a dissertação O Ciclo dos Rebeldes: processos de mercantilização do rap no Rio de Janeiro. É cineasta, tendo produzido, entre outros, De Repente: poetas de Rua e O Som do Tempo, ambos sobre a história do rap no Rio de Janeiro.
[2] Sobre o ódio à crítica, sugiro a leitura do capítulo I “A Crítica da Crítica”, do meu livro O Ciclo dos Rebeldes: processos de mercantilização do rap no Rio de Janeiro, onde traço um panorama sobre o abandono da crítica do rap por conta dos processos de mercantilização da cultura Hip Hop onde, por exemplo, o compromisso como categoria primária fora suprimida por valores de mercado.
[3] Por revisionismo entendamos, resumidamente, a omissão dos fundamentos de um determinado conjunto de contradições que permeiam a história e os processos sociais que são determinantes para a conformação do contemporâneo. Nesse sentido, ambos os espectros políticos (genericamente esquerda e direita) produzem tais revisões do passado sempre com a função de justificar determinadas ações políticas ou econômicas na defesa de determinados interesses particulares. Com isso o que se compromete em última instância é a própria história da classe trabalhadora ao longo de toda a modernidade.
[4] Trata-se da crise do capital financeiro especulativo que teve forte impacto nas economias de capitalismo central, resvalando suas consequências sociais e econômicas aos países de capitalismo periférico como o Brasil. Para maior aprofundamento sobre o tema recomendo a leitura do livro O Enigma do Capital, de David Harvey.
[5] Não podemos deixar de ressaltar que o MBL foi e continua sendo a base ideológica do bolsonarismo (portanto, do fascismo nacional) e demais correntes da extrema-direita que ajudaram a projetar diversas figuras ultrarreacionárias como Kim Kataguiri, Renan Santos, Arthur do Val, Olavo de Carvalho, Bernardo Kuster, Paulo Kogos, etc.
[6] Não há antagonismo entre o fascismo e o liberalismo. Tal distanciamento não se confirma nos processos históricos onde podemos comprovar o fascismo como desdobramento do próprio capital, sendo o liberalismo mais uma das formas de gestão da economia capitalista, mas que em processos de crises acentuadas torna-se insuficiente no que diz respeito à defesa do modelo social e econômico imposto pelo capital. A democracia burguesa é suprimida por uma organização militar, mas que não deixa de representar objetivamente os interesses das classes dominantes. Se nos remetermos, por exemplo, ao nazi-fascismo, as burguesias foram fundamentais para ascensão do regime autoritário.
[7] O que se percebe objetivamente é que a entrevista funciona como uma espécie de negociação entre partes interessadas em tal orientação (liberal e identitária, portanto irracional) onde se evidencia uma defesa genérica de democracia e civilidade, trazendo o debate para o campo dos afetos e da compreensão paternal, encobrindo os reais interesses em jogo, o que é visto pelo público com bons olhos, ressaltando ou construindo uma genialidade e até mesmo sagacidade de ambas as partes numa demonstração pública de superação de determinados limites que podem ser resolvidos numa conversa calorosa funcionando como elemento fundamental de propaganda.
[8] O termo “democracia” em si nada quer dizer objetivamente. A democracia tem um determinado caráter numa hegemonia burguesa e outro radicalmente distinto num regime de fato horizontal e participativo, onde não imperasse os interesses do capital monopolista. No caso do Brasil (e no restante do mundo) o que existe é uma democracia burguesa parlamentar, onde há representantes e representados. Estes, por sua vez, são convocados apenas como sujeitos que votam e que delegam a terceiros as principais decisões políticas, que, por sua vez, são encampados por políticos profissionais que obedecem às regras gerais do capital, determinando as vontades da classe dominante e suas classes auxiliares.
[9] Como as contradições de classe ou as contradições centrais do capitalismo e do regime representativo burguês ou sobre a natureza do MBL, dos interesses deste setor, do histórico de Fernando Holiday que fora substituído por um romântico passado, ao invés de pensar o papel criminoso do MBL e de seus integrantes, que não se limitaram obviamente a um engajamento em torno da destituição de um determinado presidente, mas que defendem um determinado projeto de sociedade que ao ver de Brown não representa nenhum tipo de antagonismo.
[10] Dentro dessa dinâmica, trabalhadores e burguesia defendem interesses historicamente antagônicos, onde enquanto um busca a emancipação social por meio da superação das relações capitalistas, outro se mantém firme na posição de classe dominante, assegurada não só pela dominação do capital, mas pelo aparato militar e jurídico, o que acaba forjando a dominação política.
[11] Neste caso sugiro a leitura do artigo “Identitarismo: a nova cara do liberalismo”, disponível no site lavrapalavra, onde discutimos profundamente os limites do identitarismo burguês muito defendido por rappers como Mano Brown.
As obras que ilustram este artigo são da autoria de Francesco Clemente (1952-).
O artigo é muito interessante, pontua questões fundamentais – e urgentes. O MBL é de fato o chorume do chorume dentro do miserável deserto da política brasileira hoje. Mas Fernando Holiday já deixou o MBL no início deste ano de 2021, e muito provavelmente por razões e novos oportunismos ainda piores do que aqueles que o fizeram protagonizar, junto a Kim ta Katiguria, Rubinho não sei o quê, Arthur Mamãe Falei et caterva um dos maiores e mais nefastos estelionatos políticos, socioculturais e digitais também (pois se trata de uma das várias milícias políticas digitais da extrema-direita recentemente surgidas no Brasil) a partir de junho de 2013.
Aqui um dos registros desse rompimento, ou separação amigável, entre o neo-Capitão do Mato e o seu berço político de serpentes: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2021/01/29/o-combate-ao-aborto-e-a-causa-lgbt-nao-sao-bandeiras-do-mbl.htm
Esse texto não é o suficiente para entender o que estava em jogo com aquele podcast. É preciso escutá-lo para se chegar a conclusões que destoariam desse texto. O autor compartilha da majoritária opinião daqueles que inundam as redes sociais defendendo que Mano Brown não deveria entrevistar o fascista. “a entrevista” — dizem os sacrossantos da esquerda — “deu espaço a ele”. O que se vê, no entanto, é um entrevistado a todo momento contra a parede, expondo as suas contradições e as do grupo que fazia parte. Brown o faz porque sabe que nas periferias brasileiras existem muitas pessoas que são perseguidas pela polícia mas que defendem ideias punitivistas, pessoas excluídas do mercado de trabalho mas que defendem com unhas e dentes o empreendedorismo e a iniciativa privada, by the way, punitivismo e livre mercado são o que mais se tem em periferias brasileiras. Mano Brown entendeu que a tática de ignorar os fascistas não funciona. Concordo contigo que é inestimável dissecar o rap brasileiro bem como o funk para entender parte das contradições em que estamos inseridos, mas esse texto passa longe desse objetivo. Mas registro meu respeito pela coragem de abordar essa temática.
É muita autoestima.
Tem coisas que só a idade conserta. Daqui 10 anos o autor vai lembrar deste dia que se julgou um Farol.
Se a tática de ignorar fascistas não funciona, o que dizer da de dar espaço e dialogar. Cada espaço que se esperava antifascista ou ao menos afascista que um fascista adentra normalizado é uma conquista mesmo que ele não tenha tido obtido uma vitória clara sobre o oponente, pois antes ele não era aceito ali. Não entenderam isso da estratégia duginista de cooptação esquerdista?
“Já faz algum tempo que Mano Brown, um dos principais nomes do rap nacional, aparece por aí trajado com várias peças da PUMA, mas sem ele ou a marca se manifestaram a respeito de uma possível conexão.
No entanto, na tarde de ontem, a PUMA Brasil se pronunciou e apresentou uma nova campanha com o MC à frente dos Racionais, oficializando o início da parceria da dupla.
Bem que poderíamos ver uma coleção especial para ele, né?!” (https://sneakersbr.co/mano-brown-esta-a-frente-da-nova-campanha-da-puma/)