Texto de Rodrigo Félix [1] com charge de Ede Galileu [2]

Será que uma ideia pode ser esmagada? Nossa história começa em uma cidade chamada Carrolândia! Cidade onde as pessoas se cortejam pelo ronco dos motores; onde não se olham nos olhos, mas sim pelo reflexo do vidro fumê; onde as buzinadas são a língua oficial. Cidade da saúde via carro (“Drive-thru” da vacina – que esqueceu, num primeiro momento, dos não-motorizados); da cultura via carro (“Drive-in” do cinema cult); do sexo via carro (“Drive-in” do motel). A Carrolândia foi recentemente considerada a segunda melhor cidade do país para se viver, segundo pesquisa [3]. Além disso, ganhou o título de cidade inteligente [4], opssss…., inteligente não, “Smart”! O título adequado seria “Smart Car City” (grifos meus). Mas será que ela é “Smart” e boa de se viver para todos os seus habitantes?

Alguns habitantes da Carrolândia devem ter passado despercebidos nesta última pesquisa sobre qualidade de vida. Trata-se de gente invisível que habita a cidade! É que nem todo mundo é cidadão aqui na Carrolândia. Adivinhem vocês, “carros leitores”, quem é que não é considerado gente nesse reino do motor? Quem adivinhar, aperte a buzina!

Fonfon! Fonfon!

Isso mesmo, são eles, os sem-carros, essa sub-espécie humana que engloba os pedestres, os que andam de ônibus, os que andam de bicicleta, skate, patinete e afins como meio de transporte urbano. Em geral os sem-carro têm o hábito de serem também sem-dinheiro, muitas vezes sem-emprego, mas quase nunca sem-caráter. Costumam ser gente trabalhadora, umas “quase-pessoas” que, seja por opção ou por simples necessidade, teimam em andar por aí, pra cima e pra baixo, sem pagar IPVA, sem comprar gasolina, sem poluir o ar e sem atropelar ninguém – vejam vocês, que desaforados!

Acontece que os sem-carro, aqui na Carrolândia, são também gente sem-cidadania! Isso porque nem todo mundo pode pagar para ser cidadão. Nessas bandas a cidadania vem junto com o IPVA e carteira de habilitação, e requer a compra de um carro, obviamente! Como diz o velho camarada do Uruguai: “A carteira de motorista faz as vezes de documento de identidade: são os automóveis que outorgam identidade às pessoas” [5], e na Carrolândia não poderia ser diferente.

Um desses seres invisíveis e que nunca alcançaram a cidadania na Carrolândia é o Seu Buiú. Jardineiro, 60 anos, morador da “Vila Carros Gomes”. Por necessidade, como muitos, fez da bicicleta seu meio de transporte, justo aqui no reino do motor! Seu Buiú é gente, mas é também um sem-carro, e por isso não perguntaram pra ele, na pesquisa sobre a cidade, como é viver na Carrolândia. Afinal, se perguntassem pra todos os sem-carro, talvez não teríamos o título, recém alcançado, de segunda melhor cidade!

Seu Buiú, numa dessas andanças, desautorizadamente sem-motor, cruzou num sábado de manhã com um motorista de caminhão. Num primeiro olhar, o motorista pode parecer o oposto do Buiú, e em alguns sentidos é mesmo. O motorista, diferente do Buiú, tem cidadania, afinal dirige um veículo automotor na Carrolândia. O motorista também tem emprego fixo e registrado, coisa que o Buiú não tem (os sem-carro tem o estranho hábito de viver de bicos). Além disso, o motorista trabalha para uma grande empresa de entregas, muito conhecida na cidade pelas suas carretas enormes e majestosas, que são muito diferentes da bicicleta frágil e modesta do Seu Buiú.

Mas por outro lado, o motorista, assim como o Seu Buiú, é um trabalhador, preso à máquina, dirigindo por horas a fio, e que parou no seu último farol antes da entrada na garagem, onde poderia deixar o caminhão, pra finalmente descansar, depois de passar a noite dirigindo. Buiú e sua bike pararam ali, bem ao lado do motorista e seu caminhão, no último farol!

Até aí, tudo bem, mas… o problema é que as vias públicas de Carrolândia costumam ser um campo de batalha para os sem-carro. Em geral, estes só querem sobreviver, mas isso não é tarefa muito fácil por aqui, se você não tem um carro! Aliás, as tais vias da cidade, de públicas só têm o nome, pois de fato deveriam ser chamadas de “vias exclusivas para compradores de veículos automotores”.

Pois bem, parados no farol, Buiú e o motorista, a luta está posta, ainda que nenhum dos lados quisesse de fato brigar! Mesmo assim, as condições da cidade obrigam a luta por cada centímetro de espaço, já que os sem-carro não têm lugar por aqui! Postos forçosamente nesse ringue de batalha chamado de Carrolândia, estão ali, ambos em um trajeto de trabalho, ambos esperando no farol, ambos ansiosos por continuar e alcançar seus destinos quando a luz verde se acender. Era o último farol para que ambos pudessem “descansar”, cada um a seu modo. Buiú, por um acidente, relatos indicam que por um susto com o barulho do escapamento do caminhão (ou por qualquer outro motivo), perdeu o equilíbrio e caiu. Foi a nocaute antes mesmo que a luta pudesse começar. Numa fração de segundos, a luz verde… o farol autorizou a partida do motor e a partida espiritual!

Pergunto de novo, “carro leitor”, será que uma ideia pode ser esmagada?

Parece que na Carrolândia, cidade da carrocracia e do carrocentrismo, qualquer coisa pode ser esmagada! Para isso basta entrar sem um carro nesse campo de guerra que são as “vias exclusivas para compradores de veículos automotores”. Buiú tinha ideias, sonhos e planos. Queria voltar a ver seu filho, queria voltar para sua terra natal, sair da Carrolândia (supostamente a segunda melhor cidade para se dirig… opsss para se viver!). Buiú tinha muitas ideias na cabeça, mas essa parte do seu corpo não resistiu à pressão da Carrolândia, que estava toda contida naquela roda de caminhão!

Alguns dizem que foi um acidente. E de fato o motorista não viu o Buiú caído, e ele realmente se desequilibrou e caiu. Mas ali, para aquela “via exclusiva para compradores de veículos automotores” havia, já há mais de meia década, um projeto e uma promessa para construção de uma via para os sem-carro. A ideia do projeto é que sejam feitas vias separadas para esses seres de segunda categoria, porque de fato, como sempre indicam nos jornais de Carrolândia, cada morte dessas criaturas infelizes acaba por fazer o “trânsito ficar completamente congestionado num sábado pela manhã”, vejam vocês! [6]

Se a tal via alternativa, para os sem-carro, tivesse sido de fato construída, Buiú teria ralado o joelho, talvez o cotovelo, e continuaria suas andanças não poluentes e não pagadoras de IPVA e combustível, para cima e para baixo, sem “atrapalhar o trânsito”. Buiú não é o primeiro a “atrapalhar o trânsito na Carrolândia”, e não deve ser o último! Só nos últimos 10 anos, já morreram mais de 69 ciclistas e 314 pedestres que, como Buiú, não têm cidadania por aqui, obviamente!

As ideias e planos do Seu Buiú foram esmagados no asfalto quente num sábado pela manhã! Como diria o Chico, Buiú foi mais um que “morreu na contramão atrapalhando o sábado” e o trânsito [7]. Eu me pergunto, “carro leitor”, até quando a palavra “trânsito” será sinônimo único e exclusivo da palavra “carro” por aqui? E quem será o próximo “a atrapalhar o trânsito” num lindo dia de sol na Carrolândia? A cidade segue priorizando os carros, embora prometa mudar a cada eleição, mas… de fato…, para quê mudar se já somos a segunda melhor cidade para se viver, não é?

Esclarecimento:

Infelizmente essa não é uma história de ficção. Severino Ramos do Nascimento, Seu Buiú, morreu em 06/11/2021 com a cabeça esmagada pela roda de um caminhão, ao cair, como descrito no texto, na cidade de Jundiaí, interior paulista. A via na qual o acidente aconteceu tem um projeto de construção de ciclovia que está no papel desde pelo menos 2016, mas que na prática nunca foi executado. Se o fosse, essas e outras tantas mortes poderiam ter sido evitadas. Os dados de mortes de ciclistas e pedestres são reais e podem ser consultados no link abaixo:

Dados oficiais de óbitos de ciclistas e pedestres em Jundiaí: https://drive.google.com/drive/folders/19mGLfP6W3bgQ5peKXUsplyYGK_bt2p6V

O Coletivo Pedala Jundiaí está organizando um Ghost Bike e doações para a família (informações em https://www.facebook.com/PedalaJundiai).

Notas

[1] Rodrigo Oliveira [Félix], sociólogo, ciclista e cicloativista em Jundiaí.
[2] Ede Galileu, ilustrador, produtor cultural e arte educador.
[3] Jundiaí, a segunda melhor cidade do Brasil: https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2021/02/11/jundiai-e-considerada-a-2a-melhor-cidade-do-pais-em-qualidade-de-vida-segundo-estudo.ghtml.
[4] Jundiaí é a oitava cidade mais inteligente e conectada do Brasil: https://jundiai.sp.gov.br/noticias/2021/09/01/jundiai-e-a-oitava-cidade-mais-inteligente-e-conectada-do-brasil/.
[5] GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso! L&MP Pocket, 1999 (p. 221).
[6] Ciclista morre em acidente [e congestiona o tráfego]: https://jr.jor.br/2021/11/06/ciclista-morre-em-acidente-em-frente-do-maxi-shopping/.
[7] Chico Buarque. Construção. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wBfVsucRe1w.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here