Por Lucas Santiago Mattos
1. O Brasil dos Últimos Dias é um filme composto por fragmentos. Um filme feito da costura de cenas pinceladas e costuradas a partir da produção cinematográfica de outros diretores. Faz uso de escritos clássicos da sociologia, economia política, história, poesia e romance de intelectuais distintos, fazendo dessa teia de trechos isolados a narrativa que atravessa toda a trama. A trilha sonora não escapa dessa montagem/colagem, cruzando tal qual uma sinfonia experimental cada momento do filme. E assim, cortando a narrativa dos vencedores da luta de classes que se pretende linear, indo hegelianamente adiante, O Brasil dos Últimos Dias conta a epopeia da formação e desenvolvimento de nossa nação tropical a partir da ótica dos derrotados. Não somente a partir do genocídio dos indígenas, da escravidão dos negros, da exploração do proletariado, mas das suas revoltas, que sempre buscaram interromper a marcha triunfante de nossos dominadores e algozes.
2. Por isso, já que na arte não existe conteúdo revolucionário sem forma revolucionária, como fundamentou Mayakovski, é preciso que na própria estética este filme vá na contramão do evolucionismo positivista, que é o lema máximo tupiniquim, cravado bem no meio da bandeira nacional nos dizeres de Ordem e Progresso. Desvelar a história do Brasil a partir da montagem é uma opção que explicita que o vencedor de cada período histórico que nos formou como nação não estava predestinado a vencer, que foi no terreno da batalha, forjado a sangue, que uma nova etapa burguesa nasceu e se consolidou. Que a história é uma série de tentativas dos oprimidos forjarem caminhos que interrompam os passos da acumulação de capital. Que aos revolucionários, cujo público este filme se destina, cada momento da história traz a brecha da ruptura com a falsa lineariedade com a qual o senso comum apresenta nossa experiência coletiva.
3. A partir destes fragmentos, dessa montagem/colagem, dessa costura subversiva, a forma fílmica escolhida serve como um lembrete constante: nosso passado não é um arquivo morto, não é um museu de lamentações, é a prova de que mudar radicalmente o existente sempre foi, e ainda o é, possível.
4. A história de nosso povo é a da miséria, da catástrofe, da ruína. Se o objetivo de uma obra de arte é se construir a partir desta narrativa, dos de baixo, então o fragmento é sua forma mais fiel. É conhecida a história de que centenas dos operários que ajudaram a construir Brasília, os Candangos, vindo a maioria de estados do nordeste em peregrinações extenuantes e incertas, estão concretados em prédios espalhados pela capital do país. Os fragmentos que compõem O Brasil dos Últimos Dias são esses corpos, com seus pedaços expostos entre o cimento e o tijolo dos edifícios.
5. Na década de 60 foram os situacionistas, liderados por Guy Debord e sua definição de espetáculo, um dos responsáveis diretos pela revolta que se abateu, como um raio no céu azul, sobre Paris. Questionamento das bases da sociedade de consumo que se iniciou entre os estudantes universitários e levou à maior greve operária da história ocidental. Para além das frases pichadas nos muros da cidade, tais quais “Abaixo do asfalto está a praia”, que celebravam as pedras arrancadas do chão pelos revoltosos e lançadas contra a polícia, e também usadas para erguer barricadas no enfrentamento às forças da ordem, os situacionistas deixaram como legado aos subversivos de hoje uma prática menos conhecida: o détournement. A utilização de peças publicitárias, desenho em quadrinhos, e escritos políticos e econômicos de intelectuais que justificavam o governo do General De Gaulle, cujo intuito era celebrar o modo de produção capitalista como o único e melhor sistema social, modificando seu sentido original ao alterar frases e expressões contidas nestas peças e obras, servindo agora como exposições críticas do que antes glorificava.
6. Também Walter Benjamin, em seu enorme, denso e inacabado livro das Passagens, fez uso de fragmentos e ditos de tantos autores distintos, retirando tais trechos de seu contexto original para assim o preencher de um conteúdo explosivo e revolucionário em suas milhares de páginas. O Brasil dos Últimos Dias é tributário dessas práticas.
7. O proletariado é a única classe social que ao ser apenas fragmento de um dado modo de produção pode aspirar ao todo. Na carga destrutiva que carrega tem os elementos que apontam a futura sociedade sem classes, e por isso reunificada. Até a sua vitória está presa em um paradoxo, ou em termos marxistas, em um processo dialético, qual seja o de ser ao mesmo tempo pedaço e completude, universalidade e fragmento. Por isso, só pode construir remendando. Este filme é um filme de seu tempo, por isso, o seu todo é feito destes panos rasgados, cuja linha de costura, vermelha, é sempre visível.
8. A história do Brasil é a história do imperialismo. Espanhol, Português, Holandês, Inglês. Que o digam os indígenas dizimados e os africanos sequestrados e jogados aos navios negreiros. Norte Americano. Que o digam todos os desaparecidos, mortos e torturados pela ditadura militar de Figueireidos e Médicis, que durou 21 anos. Assim que proletários e oprimidos não têm pátria, como está escrito em certa página de um certo livro clássico. A narrativa tem de escapar aos limites nacionais se se quer minimamente verdadeira. Por isso, na tela desta película Godard encontra Glauber Rocha, Arnaldo Jabor encontra Buñuel.
9. Se a revolução socialista começa no terreno nacional, desenvolve-se na arena internacional e termina na arena mundial, uma obra destinada aos combatentes revolucionários tem de apreender e distribuir em sua narrativa o que salta os limites das fronteiras e barreiras geográficas também no que tange ao âmbito da cultura. A montagem/colagem d´O Brasil dos Últimos Dias não respeita qualquer regra diplomática, não paga qualquer tributo alfandegário.
10. O mundo burguês é o internamente dilacerado. De um lado como falso universal, representante do Estado, do mercado ou da religião. Do outro como representante da família, provedor do lar, com seus interesses pessoais de costas para a comunidade. Nos dois casos representa apenas a sua classe. A representação do burguês no filme faz jus a essa contradição.
11. O burguês tende à esfera privada. É assim a maior parte das cenas que compõem sua aparição no cinema e na literatura. O drama e a novela são expoentes estéticos desta verdade. Os dominadores são políticos apenas no que tange à exploração e as negociatas que atendem seus interesses particulares.
12. O proletário tende sempre a esfera pública. É nas ruas que se dão as revoltas. O espaço privado, acalanto do burguês, é apenas local secreto de conspiração entre os de baixo. Ou então espaço de tortura, de assassinato, de desaparecimento dos subversivos. Não à toa o DOI-CODI funcionava nos porões e em casas clandestinas, que apesar de seu caráter informal ainda são chamadas de casa. Assim, uma das biografias sobre o próprio DOI-CODI se chama “Casa da Vovó”.
13. Foi Nietzsche quem desenvolveu a teoria do Eterno Retorno. Um demônio que lhe surgisse no leito de morte para dizer que tudo o que experimentou em vida, nos mais mínimos detalhes, será revivido em outra vida reencarnada. Os últimos dias deste Brasil mostrados em cena se atêm a essa máxima. A repetição cíclica, como Sísifo, dos males e das derrotas dos oprimidos. Uma nação que só sabe adiantar os relógios regredindo à formas bárbaras de genocídio que estão incrustadas em sua origem. Por isso o filme não é uma análise acadêmica sobre nosso desesperador tempo presente, mas antes um filme sobre as batalhas perdidas e os ensinamentos destas, para que vençamos fora das telas, de uma vez por todas, tanto passado acumulado.
14. Para um pensador alemão do século passado, fantasmagoria eram mistificações que assumiam a aparência das “imagens de desejo com as quais o coletivo procurava tanto superar, quanto transfigurar, as imperfeições do produto social, bem como as deficiências da ordem social de produção”. Elas eram fruto da interação entre o moderno e o antigo, entre o novo e o sempre igual, acumulado pela experiência destas sociedades em seu inconsciente coletivo.
15. A fantasmagoria expressa uma repetição cíclica, o eterno retorno do mesmo, mascarados ilusoriamente como novidade reapresentada infatigavelmente pela moda, sua agente infatigável. A procura pelo novo surge a partir da aversão que a sociedade moderna tem de tudo aquilo que se tornou antiquado, de tudo aquilo que lembra o passado recente. É claramente a expressão cultural da economia capitalista, na qual tem lugar um vertiginoso processo de avanço dos meios de produção, cuja consequência é a obsolescência crescente dos produtos criados no interior deste sistema econômico. Este filme está dirigido contra esta obsolescência no que tange à luta de classes.
16. A encarnação desta fantasmagoria nos últimos dias de nossa história política se chama Jair Bolsonaro. O representante político que veste a máscara dos bandeirantes, dos mercadores de escravos, do patriarcado, da dizimação da natureza e dos povos indígenas. O mito fantasmático que serve de mediação entre as oferendas que recebe de seus adoradores, e o automatismo mágico do demônio chamado acumulação de capital.
17. Dados do último mês mostram que a população negra no Brasil teve índices duas vezes maiores de morte pela covid-19 do que os brancos, mesmo nos bairros mais ricos. A violência policial bateu recordes este ano, e do montante de assassinados pelas forças da ordem 78% são negros.
18. Os indígenas vêm sofrendo perseguições e ameaças desde o início do governo Bolsonaro, com a intensificação das expropriações de terras forjadas na invasão, na grilagem e no loteamento, que causa uma inestimável destruição da natureza, junto ao aumento também de outros tipos de violências, como ameaças de morte, mortalidade na infância, homicídio e alcoolismo. A recente morte de Jaider Esbell aos 41 anos, artista indígena engajado que se utilizava de linguagens estéticas diversas, é o último duro golpe aos povos originários.
19. A partir do golpe parlamentar de 2016 houve uma intensificação da retirada de direitos trabalhistas, do aumento do desemprego, da precarização do trabalho, da volta da fome. As mulheres são as que mais sofrem com o avanço predatório da burguesia nacional e internacional sobre os corpos e as necessidades dos trabalhadores em meio à crise econômica mundial que se arrasta, sem solução, desde 2008. Além do aumento da violência doméstica resultado da quarentena, em face do genocídio do Estado brasileiro na propagação do coronavírus, são elas que ocupam os empregos mais precários, têm reduzidos os seus salários, e enfrentam uma dupla jornada ainda mais extenuante. O caso emblemático deste período é o de Mirtes, cujo filho Miguel, de cinco anos, caiu do nono andar de um condomínio de luxo em Recife, em meio ao descaso da patroa Sarí Cortes Real, enquanto ela, doméstica, levava o cachorro de sua contratante para passear.
20. A primeira vítima de Coronavírus no Rio de Janeiro também era uma doméstica. Seus patrões voltaram do carnaval na Itália em Março de 2020, e mesmo apresentando os sintomas da doença não liberaram a empregada de 63 anos dos expedientes.
21. A miséria que se abate hoje sobre as classes populares no Brasil tem sua expressão mais nefasta na fila dos ossos. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XXI ainda sejam possíveis não é um assombro que assalta o artista formado no materialismo dialético. “Pois este assombro não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável.” O Brasil dos Últimos Dias é também um combate a este assombro.
22. Este filme traz o Eterno retorno de Nietzsche à luz, não para que fiquemos paralisados diante do horror que sua face nos mostra, nem para admirarmos o grotesco nas paredes do museu da história, como se fossem pinturas de Goya, mas para que, ao vermos seus contornos abjetos, nos indignarmos com a experiência coletiva que nos forjou enquanto nação. Não é fruição estética, mas um chamado à urgência do combate atual a partir do resgate dos combates antigos.
23. O Brasil dos Últimos Dias é uma condensação estético-política da luta de classes tupiniquim. É um filme sobre esta forma particular de violência chamada Brasil. Sendo assim, é uma obra que se movimenta, buscando arrancar dos bueiros da história as utopias que dormem como dinamites abaixo da superfície, por onde passa o cortejo fúnebre da celebração burguesa tropical. Este movimento arrasta atrás de si os últimos dias, por isso é um filme contínuo, que não termina após a última cena.
24. Cabe a nós, espectadores, nos tornarmos conscientes desta tarefa: encontrar no solo real de nossa história estes estilhaços feitos de pólvora dos que sucumbiram antes de nós, coletar seus sonhos e esperanças, para fazer voar aos ares a falsa linearidade temporal e cultural burguesa.
As obras que ilustram esse artigo são, respectivamente, de: Raul Mourão, Jefferson Medeiros, Martha Niklaus e Marília Scarabello.
História ou o mito a-histórico do eterno retorno? Encadeamento caudal, linear, em espiral do tempo, ou ciclos que transcende os arquétipos primordiais retornando-o a eles? Invenção ou repetição? Inovação ou conservação? Détournement ou duplipensamento?
O autor desenvolve um roteiro estranho para o seu filme, o eterno retorno em Nietzsche e um passe de mágica transforma-se em memória, ou seja, o seu oposto. Como poderíamos transformar os retalhos hitleristas em uma colcha revolucionária? Costurar com linhas vermelhas? Um roteiro digno de Tarantino. Teríamos que jogar as contradições pra debaixo do tapete duplipensando com fé. Afinal, isso não faz parte do método? Nada contra usar conceitos desenvolvidos na direita ou na extrema-direita, se servem pra explicar, porque não. Agora, criar um espantalho, misturar água com óleo em um mundo esfacelado, só poderia cair no moralismo. A ideia de decadência sempre produz uma historia moral. Faça-me o favor!
O eterno retorno é a terapia coletiva daqueles que sofrem pelos excessos de história. A extrema-direita detesta a história, irreversível e humana demais para o seu gosto transcendental, já o eterno retorno é o mito resgatado do imaginário arcaico para justificar o seu desprezo pela memória. Teitelbaum está correto em definir que o tradicionalismo, e eu incluiria os fascismos, tem por objetivo lutarem pela eternidade. “E está vivência e está vida são apenas o reflexo de uma eternidade pressentida, a missão misteriosa neste mundo, no qual fomos postos para chegar a ser o que somos” diria o maior teórico do Terceiro Reich. O que é já está dado, não existe movimento, transformação nem revolução, só existe repetição do que já é, tudo já está dado, não há espaço para utopia,para o novo, para a invenção humana, o que existe é o aqui e agora e eterno presente a-histórico. O eterno retorno é a aceitação do status quo, o eterno retorno é a vitória do capitalismo e da hierarquia na cabeça dos reacionários que estão em meio a esse círculo de horrores. O mito do eterno retorno é a espiritualidade arcaica dos fascistas é por ele que reacionários lutaram pela eternidade, pela hierarquia contra a autonomia. Não foi pelo retorno a Grécia clássica que o nacionalista Nietzsche queria direcionar a educação alemã a um caminho hierárquico, militar, restaurador das corporações e da relação mestre a aprendiz? Não foi pela ordem eterna que Nietzsche incitou a expulsão do ambiente educacional os “não aptos”, ou seja, a galera do gueto que retornaria para a quebrada para ensinar aquilo que aprendeu, afinal, o conhecimento faz com que se questione o que está eternamente dado.
Que Nietzsche revolucionário é esse que o autor nos quer vender? Que eterno retorno é esse que coloca o homem na dinâmica do tempo? A não ser que esse retorno, esse passo de volta seja em sentido literal, então que se vá sem passagem de volta.
O eterno retorno é o desejo dos nostálgicos, é a repetição do ato fundador pela divindade ou pelo herói. Pra quem acredita que em 2016 houve um golpe parlamentar, golpe esse dado por aqueles que o PT se aliou para ser eleito é jogar pra debaixo do tapete esse simples contradição. Só que isso faz parte do método, né!? O eterno retorno está em um círculo fechado, está a girar sobre um centro e o centro dos ressentidos de 2016 é Lula 2022!
Mano, mas que filme é esse? Pesquisei na internet e só achei o trailer e esta resenha. Não foi lançado ainda, é isso? Fiquei curioso para assistir… Talvez valesse uma introdução no texto.
A extrema direita e a extrema esquerda hoje tem a mesma temporalidade. Erra quem acredita que o bolsonarismo tem a linearidade como temporalidade, ordem sim, progresso nunca. A temporalidade da extrema direita é cíclica e a política de distribuição do bolsonarismo está vinculada ao eterno retorno do mesmo.
“Os antigos gregos acreditavam que só a eternidade era verdadeira. O ser autêntico é imóvel: o movimento cíclico implica o eterno retorno do mesmo e é a expressão mais perfeita do divino. Dentro do mesmo ciclo há altos e baixos, progresso e, finalmente, decadência, já que cada ciclo será inevitavelmente substituído por outro (a teoria da sucessão de eras em Hesíodo, o retorno à Idade de Ouro em Virgílio). Por outro lado, a predestinação está relacionada com o passado e não com o futuro. O termo arche (ἀρχή) significa tanto origem (“arcaico”) quanto autoridade (“arconte”, “monarca”)”
http://novaresistencia.org/2021/06/24/o-quarto-nomos-da-terra-a-quarta-teoria-politica-e-a-critica-a-teoria-do-progresso/
Disponibilizaram o filme:
https://www.youtube.com/watch?v=rT09AQ1i4Mo